Emenda derrubada

Calote em precatório vem de jurisprudência do STF

Autor

  • Rogerio Neiva Pinheiro

    é juiz do Trabalho da 10ª Região foi juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST nas gestões 2016/2018 e 2018/2020 e juiz auxiliar da Presidência do CSJT na gestão 2020/2022. Autor do livro “Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista" mestre e doutor em Ciências do Comportamento pela Universidade de Brasília.

19 de março de 2013, 7h18

No dia 14 de março, última quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, declarou a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62, a qual trata da execução contra a Fazenda Pública e do pagamento de precatórios, no julgamento de várias ações de inconstitucionalidade (ADIs 4.357, 4.372. 4.400 e 4.425). Apesar da euforia pela qual alguns possam ter sido tomados, principalmente pelo apelido atribuído à emenda (de “Emenda do Calote”), tal decisão pode ter graves conseqüências a exigir alertas e reflexões.

Diz a célebre frase de Georges Ripert que “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”. Ao se pensar em execução contra a Fazenda Pública não há como ignorar a necessidade de consideração desta relação entre a realidade e a interpretação do direito. E isto decorre de um motivo muito simples: satisfazer créditos judiciais depende de orçamento disponível e considerar a execução desta despesa pública como prioridade.

Ou seja, se não há orçamento, não há como pagar. Da mesma forma, se há orçamento, mas há outras prioridades, também não há como pagar. Afinal, concorrer com construções de hospitais e escolas, bem como com compra de livros e medicamentos não é fácil.

O sistema de precatórios corresponde a um dos mecanismos de requisições para que a União, estados, Distrito Federal e municípios, bem como suas autarquias e fundações, paguem dívidas decorrentes de condenações judiciais. Para que o precatório emitido em favor do credor seja pago, é preciso que exista previsão no orçamento de recursos para pagamento.

Antes da Emenda Constitucional 62, prevalecia um cenário determinado pela lógica da tese consolidada na jurisprudência do STF, segundo a qual os entes públicos que não incluíssem dotação orçamentária suficiente ao pagamento de precatórios, alegando a falta de disponibilidade de recursos, não caberia seqüestro de verbas e nem intervenção federal.

Exemplo emblemático consiste no precedente firmado na ADI 1.662. Na referida decisão foi declarado inconstitucional dispositivo da Instrução Normativa 11/1997 do TST, o qual autorizava o seqüestro para pagamento de precatórios, no caso de falta de inclusão em orçamento. A tese adotada pelo STF era exatamente a do não cabimento do seqüestro na referida hipótese.

Não há como negar que esta jurisprudência, firmada não apenas nos casos de pretensão de seqüestro, mas também diante de pedidos de intervenção federal, contribuiu para que muitas entidades públicas não pagassem precatórios, o que fez com que este passivo, quanto aos estados, DF e municípios, passasse da casa dos R$ 85 bilhões. Cerca de R$ 87,5 bilhões para tentar ser mais preciso.

Com a Emenda Constitucional 62, na minha visão injustamente e equivocadamente chamada de “Emenda do Calote”, foi criado um sistema de comprometimento de receitas (mensais, ainda que para pagamento anualizado) dos estados, Distrito Federal e municípios, em percentuais que variam de 1% a 2% da receita corrente líquida. Muitos estados, o Distrito Federal e muitos municípios começaram a fazer repasses, sendo que a Justiça no Brasil inteiro se organizou para receber estes repasses e pagar precatórios, o que fez com que credores recebessem seus créditos.

Eu mesmo, como juiz de execução, tive a felicidade de assinar inúmeros alvarás e despachos de extinção de execução, graças a este comprometimento de receitas. E pude ver muitos rostos felizes no balcão da Secretaria da Vara, ainda que um pouco enrugados pela demora em receber o esperado crédito judicial.

Apesar de muitos chamarem a Emenda 62 de “Emenda do calote”, esta norma criou algo que nunca existiu antes: comprometimento de receita para pagar precatórios. Algo nunca antes visto e valorizado por qualquer especialista em administração financeira e orçamentária (AFO). Até porque nenhum especialista em AFO vai achar bom e saudável, em termos de gestão orçamentária, a vinculação de receitas.

Por isso, pessoalmente, prefiro chamar a EC 62 de “Emenda da Solução” e a jurisprudência do STF, que perdurou durante anos, de “Jurisprudência do Calote”. Ou seja, o calote não veio da EC 62, veio de uma jurisprudência que permitiu que o passivo chegasse à casa dos quase R$ 90 bilhões.

Com a decretação da inconstitucionalidade da Emenda 62 só há duas possibilidades: (1) volta-se à situação anterior e, como não há mais comprometimento de receita, os pagamentos e repasses cessarão; (2) se entende que todo o passivo deve ser pago de uma só vez.

Para a 2ª possibilidade teria que haver recursos suficientes para saldar a dívida do dia para a noite. E dificilmente os estados e municípios terão R$ 87,5 bilhões para pagar do dia para a noite.

Inclusive cabe indagar: será que o STF fez esta conta? Será que o ministro Ayres Brito, no seu brilhante voto condutor, no qual desenvolve belos fundamentos, fez a conta de quanto é a receita dos estados, Distrito Federal e dos municípios e a comparou com o tamanho da dívida? Será que os ministros que acompanharam o referido voto fizeram este cálculo? Arrisco e ouso sustentar a hipótese de que não.

E se não há recursos para pagar e a 2ª possibilidade antes levantada (quitar todo o passivo de um dia para o outro) não ocorrer, só sobra a primeira. Ou seja, voltamos à paralisia anterior, de um modelo no qual não havia comprometimento de receitas e nem a possibilidade de seqüestro por não inclusão de verbas na proposta orçamentária.

O que é preciso saber agora é qual será a solução, já que não temos mais receitas vinculadas para pagar precatórios.

Desde a divulgação da notícia da decisão, fico imaginando, por exemplo, no caso do Distrito Federal (considerando que esta é a minha área de atuação como Juiz do Trabalho), o qual tem uma dívida de precatórios em torno de R$ 6 bilhões e arrecada a cada mês em torno de R$ 800 milhões. Para que se pagasse a dívida de forma instantânea, de um dia para o outro, conforme a lógica das teses que sustentam que a EC 62 consiste na “Emenda do Calote”, o presidente do TJ, TRT e TRF teriam que sentar na frente de um computador para, por meio do “Sistema Bacenjud”, zerar completamente o caixa do Distrito Federal durante 7 meses e meio consecutivos. Imagine o que significa um ente público que fica sem absolutamente um centavo sequer, para pagar salários, contas de água, luz, suprimentos e outros gastos, incluindo oxigênio para hospitais e medicamentos, durante sete meses consecutivos.

A quitação imediata de precatórios, conforme a lógica dos fundamentos do voto condutor que levou à decretação de inconstitucionalidade da EC 62, consiste, na minha visão, num verdadeiro delírio utópico.

É bem verdade que poder-se-ia sustentar que 15 anos é muito. Ok, mas o que é pouco ou razoável? Dez anos? Cinco anos? Um ano? Um mês? E como apurar este número?

A resposta é simples: por meio de um cálculo de viabilidade orçamentária. E daí cabe indagar: será que alguma das teses das ADIs ou votos dos ministros do STF contaram com este cálculo de viabilidade orçamentária? Acredito que ninguém fez esta conta.

Como juiz de execução, tenho todo o interesse na quitação de precatórios. Enquanto estive à frente do juízo de precatórios do TRT da 10ª Região (a qual integro), havia assumido um passivo de cerca de R$ 1,2 bilhão, sendo que quando deixei a referida missão institucional, após cerca de dois anos, este passivo girava em torno R$ 300 milhões. Mas as muitas execuções não foram resolvidas na “canetada” ou com belas e quase poéticas teses jurídicas. Foram resolvidas com muito esforço, negociação, empenho e criatividade. Um das soluções foi a realização de convênios para repasses mensais, filosofia semelhante à da EC 62.

Mas, infelizmente, não pude contar à época com um mecanismo de vinculação de receitas, como aquele estabelecido pela EC 62. Portanto, a garantia da vinculação de receitas, inerente ao regime especial para pagamento de precatórios, declarado inconstitucional, na minha visão, havia sido um grande avanço. Enquanto durou.

Agora a pergunta que fica é: o que ocorrerá, já que não temos mais vinculação de receitas? Os presidentes dos Tribunais de todo o país vão zerar os caixas dos estados, Distrito Federal e municípios numa teclada só de Bacenjud? Ou vamos voltar ao modelo anterior?

Como diz o ditado, “quem pariu Mateus que o embale”. Ou seja, quem questionou a constitucionalidade da EC 62 e quem decidiu neste sentido que dê a solução. Porém, recomenda-se que antes faça alguns exercícios de matemática e de administração financeira e orçamentária, pois a administração da Casa da Moeda é de responsabilidade apenas da União, e não dos estados, Distrito Federal e municípios.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!