Constituição e Poder

A colisão entre direitos da imprensa e do cidadão

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19 de março de 2013, 11h31

Spacca
Néviton Guedes - 19/07/2012 [Spacca]Não há verdadeiro Estado Democrático de Direito sem a mais ampla liberdade de imprensa. Um comércio de livre circulação de ideias e de informações é condição imanente à ideia de Democracia. De outro lado, a ausência de informações que abasteçam a crítica e a mais ampla possibilidade de fiscalização por parte dos cidadãos constitui fraude à possibilidade de verdadeiro controle e fiscalização das ações do Estado.

Entretanto, permanece o grave problema de conjugar liberdade de imprensa com o respeito e observação a direitos que a própria Constituição, no artigo 220, parágrafo 1º, entendeu por bem ressalvar. Além disso, a memória de casos flagrantes de violação à imagem, à intimidade e à honra das pessoas, por parte da imprensa, nos dá a certeza de que essa preocupação tem inequívoco interesse prático. Sob a escusa de uma liberdade de imprensa sem contrastes, a sociedade brasileira tem hoje que conviver envergonhada com casos famosos de espetacularização da notícia, de denuncismo irresponsável e de sensacionalismo vazio, a exemplo das denúncias criminosas de abuso sexual na Escola Base, da incriminação dos “assassinos” do Bar Bodega e do sequestro da menina Eloá.

Nada obstante, como todos sabem, o Supremo Tribunal Federal, ao declarar a incompatibilidade da antiga Lei de Imprensa — a Lei 5.250/1967 — com a atual ordem constitucional, optou — ao meu sentir, corretamente — por uma hermenêutica que radicaliza ao máximo a ideia de que o Estado Democrático de Direito só pode sustentar-se na mais ampla liberdade de expressão e na livre circulação de ideias entre os seus cidadãos. Com efeito, a Democracia pressupõe não apenas cidadãos livres, mas, antes e sobretudo, cidadãos bem informados, que possam participar, com responsabilidade, do processo de formação soberana da vontade política do Estado. Contudo, mesmo a Suprema Corte, ao professar a sua fé inabalável na importância da liberdade de expressão, de imprensa, criação e de informação, não deixou de reconhecer que também esses direitos fundamentais, a princípio, incontrastáveis por quaisquer outros interesses, encontravam limites na própria Constituição (extrato da ADPF 130): “O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição[1]”.

A própria Constituição, como não podia deixar de reconhecer o Supremo, no regime de liberdade de imprensa e de expressão que instaura em nosso país, um dos mais amplos do mundo, ressalva o respeito a outros bens também protegidos constitucionalmente (cito): “(…) O art. 220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma CF: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV) [2]”.

Isso considerado, na sequência das discussões em que se considerou a antiga Lei de Imprensa totalmente não recepcionada pela nova ordem constitucional, não é segredo que alguns ministros — Gilmar Mendes, Ellen Gracie (aposentada) e Joaquim Barbosa — manifestaram a convicção de que o melhor seria a declaração de parcial procedência do pedido, protegendo o cidadão quanto àqueles direitos que a própria Constituição põe a salvo de eventuais abusos pelo exercício da liberdade de expressão. De fato, a Constituição, como não deixara de reconhecer o Supremo, no artigo 220, parágrafo 1º, ao proteger a liberdade de informação jornalística, ressalvou expressamente que se deve observar o artigo 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV.

Ocorre que, ao declarar incompatível com a Constituição todo o texto da Lei de Imprensa, como insistiu o ministro Gilmar Mendes, a decisão do Supremo, como efeito colateral e certamente involuntário, acabou por desequilibrar a relação entre a liberdade de imprensa e os direitos dos cidadãos (cito) “(…) agravando a situação do cidadão, desprotegendo-o ainda mais; nós também vamos aumentar a perplexidade dos órgãos de mídia, porque eles terão insegurança também diante das criações que certamente virão por parte de todos os juízes competentes”. Retirou-se, pois, do cidadão alguma proteção a eventual abuso contra a sua vida privada, sua imagem e sua honra.

Pior do que isso, ao declarar revogado todo o texto, impôs-se insegurança também aos órgãos da própria imprensa, que estarão à mercê da criatividade e da ação dos juízes chamados a resolver conflitos que envolvam a liberdade de imprensa e os direitos de cidadãos eventualmente atingidos.

Por seu turno, o ministro Joaquim Barbosa manifestava a convicção de que o melhor teria sido declarar apenas a parcial procedência do pedido, ressalvando os artigos 20, 21 e 22 da Lei de Imprensa, pois esses dispositivos, que veiculavam figuras penais (calúnia, injúria e difamação) seriam importante instrumento de proteção ao direito de intimidade e seriam úteis para coibir abusos “não tolerados no sistema jurídico”[3]. Na época, o ministro Joaquim Barbosa acentuava o entendimento de que “a liberdade de expressão deve ser a mais ampla possível no que diz respeito a agentes públicos, mas tenho muita reticência em admitir que o mesmo tratamento seja dado em relação às pessoas privadas, ao cidadão comum[4]”.

A maior surpresa, no caso, aliás, é a de que, no saudável desejo de eliminar de nossa Democracia um instrumento reconhecidamente marcado pela origem autoritária de sua concepção, não se atentou sequer para o fato de que, no que dizia respeito aos tipos penais, a Lei de Imprensa dava um tratamento penalmente menos rigoroso do que o Código Penal. Com a revogação da lei, remanesceu a perplexidade quanto à possibilidade de agora aplicar-se a legislação ainda em vigor, o Código Penal, que, entretanto, confere tratamento mais severo às mesmas condutas antes cobertas pela a lei não recepcionada. Obviamente, nada mais contrário à hermenêutica libertária que inspirou o Supremo.

Mas, por tudo o que se disse, não são poucos os que, buscando defender precisamente a liberdade de imprensa, afirmam que o melhor teria sido acompanhar a opinião da minoria formada naquele julgamento para julgar o pedido apenas parcialmente procedente.

Alguns problemas, entretanto, permanecem sem uma adequada solução ao juízo daqueles que se interessam, simultaneamente e sem preconceitos, pela defesa tanto da liberdade de expressão e de imprensa, como pela defesa da intimidade, da honra e da imagem dos cidadãos. Entre eles se destacam as seguintes questões: (1) até que ponto a Democracia deve permitir que a liberdade de imprensa interfira na intimidade, na honra e na imagem da pessoas; e (2) existiria distinção plausível entre os direitos (honra, intimidade e imagem) de agentes públicos e de particulares?

Valho-me mais uma vez do Direito Comparado para tentar uma aproximação razoável do problema.

Em 29 de março de 1960, o New York Times havia publicado um anúncio em nome de entidades e ativistas dos direitos humanos (civil rights) no estado do Alabama, no qual eram solicitados fundos para atividades de proteção aos direitos humanos nos estados do Sul dos Estados Unidos. O anúncio, tomando toda uma página do jornal, trazia informações e descrições de fatos — algumas das quais falsas – sobre a repressão por parte da força policial da cidade de Montgomery, no estado do Alabana. O Comissário L. B. Sullivan, em cujas atribuições incluía-se a supervisão do Departamento de Polícia, sem que seu nome fosse expressamente citado, mas sendo claramente identificado em razão do seu cargo, foi objeto de acerbas críticas e afirmações infundadas[5]. Com base na legislação do Alabama, Sullivan promoveu ação de reparação de danos contra o New York Times, obtendo de um tribunal do Júri uma condenação pecuniária contra o jornal no valor de US$ 500 mil[6]. Como a decisão foi mantida pelos demais tribunais ordinários, o jornal, mediante recurso, levou o caso à Suprema Corte americana.

Na Suprema Corte, a decisão foi reformada. E esse tribunal pode fazer isso porque procedeu a uma definição dos tipos de manifestações difamatórias que poderiam estar ao abrigo da liberdade de expressão conferida pela Primeira Emenda da Constituição norte-americana. Como esclarece Nimmer, a corte empregou a ponderação de bens (o balancing) nesse caso, não com o simples propósito de determinar qual dos litigantes mereciam ver seu interesse prevalecer naquele caso concreto, mas com a finalidade de definir quais formas de manifestação de opinião deveriam ser consideradas como “expressão” legitimamente inserida no significado da Primeira Emenda[7]. No caso, estava em questão determinar se mesmo manifestações difamatórias estariam sob a proteção da liberdade de expressão garantida pela Primeira Emenda da Constituição norte-americana.

Enfrentando o caso, a Suprema Corte determinou que, no mínimo, as manifestações difamatórias dirigidas a agente público (public official) estariam protegidas pela Primeira Emenda, pois, segundo sua interpretação, a norma da Constituição impõe, em benefício da liberdade de expressão, uma regra de abrangência federal que impede agentes públicos de alcançar indenizações por conta de manifestações em razão de sua função pública, a menos que a manifestação fosse produzida maliciosamente com conhecimento de sua falsidade, ou com irresponsável indiferença sobre sua falsidade[8].

Nesse interessante caso, portanto, a Suprema Corte não se limitou a afirmar a existência de um interesse a ser protegido pela Primeira Emenda diante daquelas circunstâncias. Foi realizada uma ponderação em que o tribunal, ao mesmo tempo em que afirmava a possibilidade de que manifestações, mesmo com conteúdo difamatório, estivessem garantidas pela liberdade de manifestação, também deixava claro, entretanto, que tal julgamento não se poderia verificar em qualquer circunstância. Caso a corte aqui se limitasse a questionar e responder se naquelas específicas circunstâncias apresentadas o interesse dos anunciantes e do New York Times em publicar sua manifestação preponderava sobre o direito do queixoso à proteção de sua reputação, certamente, estaríamos diante de um ad hoc balancing[9]. Mas o tribunal vai além e, como demonstra Melville B. Nimmer, estabelece critérios para aferir quando manifestações difamatórias estariam ao abrigo da liberdade de expressão. Assim, desde que presentes os parâmetros e critérios definidos pelo tribunal, as manifestações difamatórias estariam por definição — e por isso que vinculantes para decisões futuras — garantidas pela liberdade de manifestação. Quais critérios ou parâmetros seriam esses? A resposta é facilmente extraída da decisão: (i) que a manifestação se refira a agente público; (ii) que a manifestação tenha se dado em razão de sua função pública e (iii) que o emissor da manifestação não tenha conhecimento que seu conteúdo era falso (difamatório) ou que pelo menos não tenha sido negligente quanto a saber de sua falsidade[10].

Naturalmente, a própria complexidade inerente a uma inabarcável variedade de expressões que podem ser manifestadas sob a garantia da Primeira Emenda torna bastante difícil a tarefa de eleger critérios e parâmetros a partir dos quais se possa definir o que está e o que não está sob a garantia da liberdade expressão. Não obstante isso, por diversas vezes, diante das contínuas demandas pela garantia da liberdade de expressão ou de imprensa, a Corte Suprema empenhou-se em fixar as situações em que manifestações controversas estariam sob o pálio da Primeira Emenda e de sua garantia de liberdade de expressão. Nessa tarefa, a Corte, evitando um juízo de tudo ou nada, em que poderia escapar do problema simplesmente excluindo ou incluindo em absoluto uma determinada forma de manifestação da garantia da liberdade de expressão, preferiu valer-se inúmeras vezes do instrumento da ponderação como fórmula de julgamento que lhe propiciava decidir a qualidade e situação jurídica da manifestação tomando em consideração o contexto, isto é, as circunstâncias em que ela fora produzida. Só aí, então, é que a Corte chegava à conclusão quanto a estar ou não determinada conduta sob a proteção da Primeira Emenda, às vezes fixando critérios de avaliação que poderiam vincular suas decisões futuras (definitional balancing), às vezes limitando sua decisão às estreitas fronteiras do caso concreto (ad hoc balancing) [11].

Portanto, das lições impostas por esse caso, em primeiro lugar, temos que consentir com a ideia de que, no Estado de Direito, a liberdade de imprensa tem um maior âmbito de proteção quando se cuida da crítica e das informações referidas a agentes públicos. Em segundo lugar, podemos prever que, na falta de legislação que possa disciplinar a difícil relação entre liberdade informação jornalística os direitos dos cidadãos resguardados no artigo 220, parágrafo 1º, muito provavelmente o Supremo será chamado a atuar, à semelhança da Suprema Corte norte-americana, para mediar e definir, de forma geral, algumas fórmulas definitivas para essa espécie de colisão de direitos fundamentais.


[1] (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009.)

[2] (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009.)

[3] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=107402

[4] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=107402

[5] O anúncio, apesar de não se referir nominalmente ao Comissário Sullivan, deixava bem claros pelos seus próprios termos que era dele que se tratava. Cfe. 376 U.S. 254, 265 a 292.

[6] 376 U.S. 255, 258.

[7] Melville B. Nimmer, The Right to Speak from Times to Time: First Amendment Theory Applied to Libel and Misapplied to Privacy, p. 942.

[8] 376 U.S. 254, 280/81. Veja-se também em Melville B. Nimmer, The Right to Speak from Times to Time: First Amendment Theory Applied to Libel and Misapplied to Privacy, p. 943.

[9] Melville B. Nimmer, The Right to Speak from Times to Time: First Amendment Theory Applied to Libel and Misapplied to Privacy, p. 943.

[10] 376 U.S. 254, 280. Cfe. Melville B. Nimmer, The Right to Speak from Times to Time: First Amendment Theory Applied to Libel and Misapplied to Privacy, p. 943.

[11] Confiram-se, e.g., Jenkins v. Georgia, 418 U.S. 153 (1974); Gooding v. Wilson, 405 U.S. 518 (1972). Ver também Melville B. Nimmer, The Right to Speak from Times to Time: First Amendment Theory Applied to Libel and Misapplied to Privacy, p. 944/5.

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