Ideias do Milênio

Embora distante, reunificação das Coreias é inevitável

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15 de março de 2013, 9h13

Entrevista concedida pelo especialista em assuntos asiáticos Victor Cha ao jornalista Luís Fernando Silva Pinto, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

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A Coreia dividiu um país que existia há 4 mil anos em duas partes. Uma sob a influência dos Estados Unidos e a outra sob a influência da União Soviética, em plena Guerra Fria. O conflito, que quase levou o mundo à 3ª Guerra Mundial, teve o cessar-fogo declarado depois de três anos, mas até hoje não foi assinado um tratado de paz. A Coreia do Sul tornou-se um regime democrático enquanto a Coreia do Norte virou um dos regimes mais repressivos do planeta. Não há liberdade política ou sindical, não há imprensa independente ou acesso à internet. Boas escolas e moradias melhores são reservadas à elite do partido na capital. Para a maioria da população, a Coreia do Norte nem chega a ser um país, é uma prisão. Apesar de ser uma das nações mais pobres do mundo, a Coreia do Norte tem tecnologia bélica sofisticada. Produz armas químicas, mísseis de longo alcance e, segundo analistas militares, até 2009 já havia construído seis bombas atômicas. Nos próximos dois anos o regime planeja ter 48. O líder Kim Jong-un, que herdou o poder do pai e do avô, pouco depois de anunciar no discurso de Ano Novo que buscaria um acordo de paz com o Sul, respondeu à última rodada de sanções comerciais impostas pelas Nações Unidas com um novo teste nuclear. Mas mesmo com as promessas bélicas, a Coreia do Norte é uma impossibilidade segundo o especialista Victor Cha. O regime, ele diz, não tem futuro. Depois de ser diretor para a Ásia no Conselho Nacional da Casa Branca, Victor Cha retornou à carreira acadêmica como especialista em assuntos asiáticos no centro de estudos estratégicos e internacionais em Washington e como professor catedrático da Escola de Estudos Internacionais da Universidade de Georgetown, onde ele deu essa entrevista.

Luís Fernando Silva Pinto — O que é a Coreia do Norte além do que já sabemos? Ou seja, além dos seis enormes campos de presos políticos, dos problemas na produção de alimentos, da total limitação das liberdades individuais, o que há mais? É só isso? Esse é o retrato do país?
Victor Cha — Com certeza é o retrato que muitos conhecem no Ocidente. Como você mencionou, falta de alimentos, campo de presos políticos, armas nucleares, mísseis balísticos, violações aos direitos humanos e recessão econômica, isso é o que vemos. Mas acho que o outro lado da história, claro, é que se trata de uma sociedade em que há pessoas que não passam necessariamente a vida toda construindo armas nucleares. Há pessoas que vão trabalhar todos os dias, há crianças que vão à escola. Onde mais vemos essa parte da sociedade norte-coreana é na capital, Pyongyang, onde a vida se aproxima de um cotidiano normal. As pessoas têm emprego, vão trabalhar, vão à escola. Mas isso é uma pequena parte da sociedade norte-coreana. Na verdade, é a elite da sociedade norte-coreana. A outra parte dela, que não vemos, é a que está fora da capital, e a situação lá, na minha opinião, é bem ruim.

Luís Fernando Silva Pinto — É um país que seguiu um caminho de repressão e é agressivo, é uma ameaça? Ou é uma país que tem uma profunda noção de sua delicadíssima posição, entre a China e os EUA, e que apenas está fazendo o que pode para melhorar sua posição nessa negociação?
Victor Cha — É uma boa pergunta, e eu acho que, em determinado momento da história da Coreia do Norte, houve um desejo de realmente prosperar e ter sucesso. Durante a Guerra Fria, do período que vai da criação do Estado até os anos 1970 e 1980, o país ia muito bem. Recebia muito apoio da União Soviética e da China. Tinha indústria pesada, indústrias químicas. O país ia muito bem e, comparado à Coreia do Sul, sua renda per capita foi maior durante toda a década de 1970. Então, o país ia muito bem e, como você disse, ele precisava se equilibrar entre a China, de um lado, e a União Soviética de outro — ambos buscando alianças com a Coreia do Norte, já que competiam pela liderança do movimento comunista. Então, foi um belo período para a Coreia do Norte. Mas, na década de 1980, as coisas começaram a decair. Porque, em primeiro lugar, os soviéticos interromperam os auxílios entre os anos 1980 e 1990. Tanto a União Soviética quanto a China normalizaram suas relações com a Coreia do Sul, que, nesse mesmo período, se tornou uma potência econômica. Dali em diante, acho que a Coreia do Norte passou a apenas tentar seguir em frente, tentar sobreviver. E isso coincide com um grande desenvolvimento dos programas de armamento do país.

Luís Fernando Silva Pinto — Por que seu livro se chama The Impossible State, referindo-se à Coreia do Norte?
Victor Cha — Bem, eu escolhi esse título porque, em muitos aspectos, a Coreia do Norte é um lugar impossível. Após o colapso da União Soviética e após a Primavera Árabe, muito poucos regimes como o norte-coreano conseguiram sobreviver no mundo atual. No entanto, esse pequeno país continua prosperando e fazendo coisas que chama a atenção do mundo. Para mim isso parece muito difícil. É muito difícil para qualquer país, mas especialmente para a Coreia do Norte, que não tem muitos recursos naturais e que precisa da economia mundial para prosperar e sobreviver. Para países como esses, é difícil ser uma autarquia, que é o que a Coreia do Norte tenta fazer. Por essa razão, eu realmente acho que como foi para muitos países com regimes autoritários no passado, é difícil que a Coreia do Norte sobreviva assim para sempre. É muito difícil imaginar algo assim. E, em muitos aspectos, é um resultado impossível. Foi por isso que nós, meu editor e eu, escolhemos esse título.

Luís Fernando Silva Pinto — Um país como esse, com todo esse controle sobre a sociedade. É engraçado que, quando vemos um dos caminhos possíveis para a resolução dos problemas, as “conversas de seis lados”, no âmbito dessas conversas entre as duas Coreias, a Rússia, a China, o Japão e os Estados Unidos, todos têm um pleito. E alguns têm interesse em deixar a situação exatamente como está: duas Coreias. Estou errado?
Victor Cha — Eu acho que, por um bom tempo, muitas pessoas consideraram o status quo na península aceitável, em grande parte, porque mudar isso era uma ideia assustadora demais para ser pensada. Mas eu acho que cada vez mais países têm aceitado o fato de que esta é uma situação temporária na história da Coreia, e de que o final da história, digamos assim, será a unificação. E eu diria que, dos países que você mencionou, a maioria está disposta a aceitar isso. O Japão, os EUA e a Rússia estão. O único país que não está disposto a aceitar isso é a China.

Luís Fernando Silva Pinto — Para a China, excluindo o fato de que eles fornecem energia e alimento à Coreia do Norte, e de que a Coreia do Norte é uma zona tampão para a China, por que ela não iria querer que o país se reunificasse ou fosse diferente do que é hoje?
Victor Cha — Acho que eles gostariam que ela fosse diferente. Eles gostariam de ver reformas econômicas no país, com certeza. Mas eles não conseguiram, nos últimos 20 anos, promover reformas na Coreia do Norte. Por isso, eles preferem manter o status quo inalterado. Para a China, as mudanças são algo difícil. Para eles, é extremamente difícil imaginar uma mudança em um país de fronteira. A China tem questões fronteiriças com vários países ao longo da sua periferia. O único país com o qual essas questões foram resolvidas foi a Coreia do Norte, na década de 1960. Eles fizeram muitas concessões para a Coreia do Norte, o que não fazem com nenhum outro país. Na cabeça dos chineses, isso significa que essa fronteira, essa parte específica vizinha à China, precisa ser segura e estável. Por isso, no fundo do pensamento estratégico chinês, eles não podem correr o risco de a península da Coreia ser instável.

Luís Fernando Silva Pinto — Eles não podem correr o risco de as duas Coreias se unificarem?
Victor Cha — Sim, porque o processo de unificação seria uma situação instável. Acho que é o que eles pensam. Historicamente, sempre que houve instabilidade na península da Coreia, a China levou desvantagem. Os japoneses invadiram a China através da Coreia. A guerra entre os EUA e a Coreia do Norte, em1950, quase levou os EUA até a beira do Rio Amarelo, na China. Então, para os chineses, ter instabilidade na península não é algo aceitável. Eles aceitariam uma Coreia unificada em si? É bem possível. Mas é o processo de transição que os assusta.

Luís Fernando Silva Pinto — Você trabalhou na Casa Branca, você conhece as tendências e percepções do governo americano. O que fala mais alto, um discurso como o de Ano-Novo do líder da Coreia do Norte ou o teste e a colocação de um satélite em órbita?
Victor Cha — Eu acho que é o último. Porque é o ato contra o discurso, que são só palavras. Além disso, a Coreia do Norte, nos últimos 25 anos, tem buscado essas armas de uma maneira muito ameaçadora, tanto para os EUA quanto para seus aliados na região. O lançamento de um satélite, que eles colocaram em órbita com sucesso em dezembro de 2012, pode parecer algo inocente para as pessoas em geral, pois eles só estão botando um satélite meteorológico em órbita, mas a preocupação dos EUA com relação à Coréia do Norte é que, para lançar esse satélite em órbita, eles usam tecnologias militares, tecnologias de míssil balístico. O que, obviamente, significa que eles podem ter a capacidade de atingir os EUA com mísseis balísticos de longo alcance. Isso é algo muito preocupante.

Luís Fernando Silva Pinto — E o valor estratégico, para a Coreia do Norte, de ter, ainda que seja a única, uma arma que possa atingir qualquer país do mundo continua sendo uma prioridade e um motivo de orgulho?
Victor Cha — Para o país, é, sim, um motivo de orgulho. Eu acho que eles veem essas armas como a maior garantia de segurança, pois acreditam que ninguém irá prejudicá-los se eles tiverem essas armas. Eles, infelizmente, também venderam todos os sistemas de armas que desenvolveram para outros países.

Luís Fernando Silva Pinto — Como a Líbia.
Victor Cha — A Líbia, o Irã, o Paquistão e outros. E é claro que isso também é preocupante. Mas eu acho que, de maneira bem geral, esse é o país mais fechado e imprevisível do mundo, e ele está prestes a ter ogivas nucleares que podem ser colocadas em mísseis balísticos de longo alcance. Não há muitos países no mundo capazes de fazer isso. A Rússia, a China, os Estados Unidos, o Reino Unido, a França…

Luís Fernando Silva Pinto — E Israel.
Victor Cha — Talvez Israel. Mas a maioria desses países, embora tenha suas falhas, é um membro ativo do sistema internacional, e há certo grau de transparência no que eles fazem. A Coreia do Norte é um país imprevisível, e, por isso, acho que é um caso único.

Luís Fernando Silva Pinto — Agora temos um novo líder na Coreia do Norte e uma nova presidente na Coreia do Sul, a senhora Park Geun-hye. Como você acha que será isso? Em primeiro lugar, como você acha que será o governo dela?
Victor Cha — É interessante. Eu conheça a senhora Park Geun-hye. Ela é uma figura única na história política da Coreia do Sul, pois é filha de um antigo ditador, que foi presidente do país e que foi responsável, de muitas maneiras, por violações aos direitos humanos, mas também pelo crescimento econômico do país. Ela é a primeira presidente mulher da Ásia democrática. Mas ela também é a primeira presidenta sul-coreana a ter visitado a Coreia do Norte e ter se reunido com o líder de lá antes de se tornar presidente. Ela disse que quer adotar uma abordagem mais equilibrada com relação à Coreia do Norte, em alusão ao seu antecessor, que era visto como alguém de linha dura com a Coreia do Norte. Não sabemos exatamente o que isso significa. Eu acho que ela se refere a mais ajuda humanitário ao país, mas os problemas dela são os mesmos dos presidentes anteriores. A Coreia do Norte é um país que não está nem perto de poder competir com a Coreia do Sul. Por outro lado, eles estão desenvolvendo essas armas capazes de destruir a península toda.

Luís Fernando Silva Pinto — Nós podemos dizer que os alemães sempre viram a divisão da Alemanha como algo temporário, como resultado do conflito. Eles não tinham dúvidas de que o país seria reunificado. Esse mesmo sentimento prevalece entre os coreanos dos dois lados?
Victor Cha — Eu acho que sim. Eu acho que a maioria dos coreanos considera isso uma aberração para a história deles. Durante milhares de anos, a Coreia foi um país unificado. Essa foi uma divisão artificial ditada por potências externas. A Coreia não participou da Guerra do Pacífico, ela era apenas uma colônia do agressor, o Japão. E, no final, quando as colônias foram libertadas no Sudeste Asiático e outros lugares, as grandes potências intervieram e partiram a Coreia ao meio por questões meramente geopolíticas. Não havia nada de orgânico nessa decisão. Então eu acho que muitos coreanos veem isso como uma aberração e acham que, cedo ou tarde, o país será reunificado. Essa é a opinião de norte e sul-coreanos.

Luís Fernando Silva Pinto — Uma curiosidade sobre Kim Jong-un antes de falarmos mais sobre o estilo dele. Ele é o mais novo de três irmãos.
Victor Cha — É.

Luís Fernando Silva Pinto — Por que ele foi escolhido? Um irmão mora na Coreia do Norte e o outro vive entre China e Cingapura. O que aconteceu aí?
Victor Cha — Bem, só podemos fazer suposições, porque eles não revelam o que acontece no país. Mas, em geral, na tradição asiática, é o filho mais velho que herda os negócios, e esse filho mais velho, Kim Jong-nam, era o mais cotado para substituir o pai. Mas ele tinha alguns problemas aparentemente. Ele gosta de jogar, gosta de ir a Macau, de visitar os cassinos. E houve uma história muito noticiada sobre ele tentar entrar no Japão com um passaporte falso. Acho que era porque ele queria levar o filho à Disney de Tóquio. Foi algo muito constrangedor para a família e muitos acham que ele perdeu a preferência do pai depois disso. Sobre o filho do meio, Kim Jong-chul, nós conhecemos muito pouco. Há muito pouca informação sobre ele, não há fotos dele. As pessoas acreditam que ele também estudou na Europa, mas não se sabe nada sobre ele. Então sobrou o terceiro filho, o mais novo.

Luís Fernando Silva Pinto — Que, na sua opinião, está fazendo que tipo de trabalho?
Victor Cha — Acho que o que se pode dizer sobre ele é que seu feito mais importante após pouco mais de um ano no poder é ele continuar onde está. Não se poderia imaginar circunstâncias mais difíceis para isso acontecer: um ataque cardíaco fulminante e repentino do líder quando ele tinha 28 anos e estava longe de estar preparado para o cargo, uma ditadura muito inflexível e, de repente, ele estava no poder. E ele conseguiu sobreviver mais de um ano. Nesse aspecto, ele merece crédito, porque eu não achei que ele fosse conseguir, não achei que o sistema fosse suportar após o choque que foi a morte do pai dele.

Luís Fernando Silva Pinto — Você imagina alguma situação em que, sem contar a curiosidade pessoal de Eric Schmidt, o Google poderia ser parte de um processo de mudança na informação na Coreia do Norte?
Victor Cha — Eu adoraria ver algo assim, adoraria ver o Google fazer algo nesse sentido. Acho que o problema é que a Coreia do Norte está interessada na mudança, em entrar na era digital. Eles estão interessados na internet, na tecnologia e em celulares. O problema é que eles querem isso segundo as suas condições. Ou seja, eles querem todas essas ferramentas da modernidade, mas não querem que a sociedade se conecte com o mundo, pois isso permitiria um influxo de informação que acabaria com o isolamento em que a sociedade tem vivido pelos últimos 50 anos. Não podemos esquecer que essa sociedade aprendeu que Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte, joga golfe e acerta 15 buracos em uma só jogada. Contam isso a eles com se fosse verdade. Então, permitir que se veja o que acontece no mundo externo à algo difícil para a liderança.

Luís Fernando Silva Pinto — Para terminar, o que deixaria mais surpreso: uma crise nuclear com a Coreia do Norte ou a reunificação?
Victor Cha — Hoje, provavelmente, a reunificação, embora eu acredite que isso irá acontecer na história da Coreia. Eu acho que, hoje, estamos mais próximos de uma crise nuclear do que da reunificação. Eu me preocupo muito com a direção que a questão nuclear está tomando. Você falou das conversas de seis lados, mas não temos uma reunião dos seis países há anos. E os programas nuclear e de mísseis balísticos se desenvolveram sem obstáculos durante anos.

Luís Fernando Silva Pinto — Se houver uma crise nuclear, qual você teme que seja o alvo?
Victor Cha — Há duas coisas que eu temo. A primeira é que, de certo modo, a Coreia do Norte tente passar suas tecnologias para outros atores do sistema internacional. Há o caso não mais tão secreto de os norte-coreanos tentando construir um reator para a Síria. Ele foi peremptoriamente destruído pelos israelenses. Então eu me preocupo mais com esse tipo de incidentes, que obriguem os países a retaliar a Coreia do Norte e que poderiam desencadear uma crise na Península. Essa é a situação que mais me preocupa. Não acho que a Coreia do Norte irá lançar um míssil nuclear nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental. Isso seria…

Luís Fernando Silva Pinto — Eu estava pensando no Japão.
Victor Cha — Eu não sei se eles… Isso seria um passo bem grande. Mas eu acho que muitas crises começam com algo pequeno, sabe? Ela pode começar com algo muito pequeno, como uma disputa entre as Coreias do Norte e do Sul sobre uma questão pesqueira. Isso poderia se tornar algo muito pior.

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