Loteamento de cargos

Alteração na Lei Orgânica da PGE-SP cria neocoronelismo

Autor

  • Márcia Maria Barreta Fernandes Semer

    é procuradora do Estado de São Paulo. Especialista e mestre em Direito do Estado pela Fadusp. Presidente do Conselho Consultivo da Associação Nacional dos Procuradores integra ainda a Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-SP.

12 de março de 2013, 14h08

Em passado recente, mais precisamente no ano de 2008, a PGE de São Paulo viu alterados diversos dispositivos da lei orgânica que regulamenta a carreira de procurador do Estado. Referido processo de alteração legislativa foi bastante tumultuado, pois o projeto original, gestado sem qualquer participação da carreira, sofreu, à época, séria reprovação dos procuradores, que se levantaram e terminaram por impor recuos em boa parte da proposta, a exemplo daquela que visava alterar o sistema de promoção da carreira para estabelecer normativa diversa da que orienta todo o serviço público e em especial as carreiras típicas de Estado no país.

Não obstante a forte e importante movimentação empreendida, esse mesmo processo de alteração legal que atropelou os procuradores em 2008 acabou por aprovar algumas mudanças que, aparentemente cosméticas, tornaram-se combustível ou álibi para interpretações canhestras, responsáveis por retrocessos importantes e perigosos, que estão desfigurando a face da PGE enquanto órgão público e pondo em risco a higidez da instituição.

Refiro-me aqui às alterações promovidas em dispositivos como o artigo 27, da Lei Orgânica, que cuida das consultorias jurídicas, e que, infelizmente, ao que tudo indica, abriu a porta para a implantação na PGE do que podemos chamar de “neocoronelismo”.

O coronelismo, como todos sabem, é o termo utilizado para identificar a estrutura histórica e pervertida de poder, em que o “coronel”, usando sua privilegiada condição de dominação ou influência, determina a escolha dos governantes e também dos ocupantes de diversos cargos públicos. Consiste, enfim, em prática odiosa, cujo traço característico fundamental está no trato da coisa pública como se privada fosse.

Pois bem, na PGE de São Paulo, em função de interpretação abusiva, porquanto equivocada, de dispositivo de sua Lei Orgânica, o comando institucional vem fragilizando garantias que têm esteio justamente no caráter eminentemente público de nossa função.

E o faz promovendo o preenchimento de postos de trabalho próprios de ocupantes de cargos de provimento efetivo, estrategicamente situados nas consultorias jurídicas das secretarias de Estado e autarquias, a partir de decisões pautadas em critério de avaliação exclusivo do chefe da instituição.

Assim, hoje, na PGE de São Paulo, os mais de 200 procuradores lotados na área da consultoria (aqueles mesmos responsáveis pela orientação jurídica das autoridades e pela análise da legalidade das licitações, contratos, convênios, etc firmados pela Administração), e que prestam serviços em 25 diferentes secretarias de Estado e em mais de dez autarquias, têm sua lotação absolutamente dependente de decisões imotivadas do Procurador Geral do Estado, transformando-se na prática em ocupantes de cargos em comissão.

Com isso, todos esses profissionais que, fugindo do “coronelismo” e confiantes no Estado verdadeiramente republicano, submeteram-se, para ingresso no serviço público paulista, a concurso de provas e títulos vivem, dentro do estado de São Paulo, no exercício dessa importante e estratégica atividade consultiva, submetidos ao desígnio da chefia da instituição, que se atribui o poder de indicar pessoalmente o procurador que será ocupante de cada um dos postos da Consultoria Jurídica.

A Constituição da República estabelece em seu artigo 37 que a Administração Pública deve pautar-se por uma série de princípios, entre os quais o expressamente nominado princípio da impessoalidade.

A observância da impessoalidade no trato da Administração com a população é fundamental tanto para impedir privilégios quanto para evitar preterições. Mas é igualmente indispensável na condução dessa mesma Administração, exatamente para garantir que o Estado não sirva ao arbítrio nem caia nas mãos de “coronéis” de plantão.

Denunciar a construção de um modelo que acarretará a submissão profissional do advogado público é uma das coisas que devemos fazer. Alertar a sociedade para a consequência que isso representa nas entranhas do Estado é outra. Chamar a atenção para o trato privado daquilo que é público é mais uma.

Mas a lição que também fica, e que só reforça toda preocupação dos procuradores com propostas autoritárias de alteração de sua lei orgânica, é a que nos dá, com admirável crueza, o brocardo espanhol: “cria cuervos y te sacarán los ojos”.

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