Constituição e Poder

A espetacularização prejudica os julgamentos

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12 de março de 2013, 10h59

Spacca
Néviton Guedes - 19/07/2012 [Spacca]Há muitas razões para as pessoas não serem prepotentes com o mundo que idealizam. Entre as principais está a constatação simples de que entre as ideias que acalentamos e o mundo que de fato conseguimos construir habita sempre uma desconcertante oposição. T. S. Eliot disse-o em estilo bem mais agradável: “Entre a concepção e a criação, entre a emoção e a resposta, cai a sombra”.

Todas as vezes que se põe em discussão o problema da presença de câmeras de televisão dentro de salas de julgamento, o que se percebe é que as pessoas deixam de lado a realidade e passam a argumentar com desejos, utopias e idealizações. Infelizmente, para todos os utopistas, os fatos são teimosos e não desaparecem só porque alguém insiste em desconsiderá-los.

Recentemente, a acreditar no que li nos jornais, em famoso caso submetido ao Tribunal do Júri, um respeitável magistrado brasileiro justificou a sua decisão de permitir a transmissão ao vivo por um pool de empresas de rádio, televisão e internet, com a necessidade de, além de permitir a melhor compreensão do público em geral sobre o que acontece num julgamento, “trazer” maior responsabilidade aos envolvidos no julgamento (promotores, advogados e juízes), já que, consoante o esclarecido magistrado, com a presença da mídia, os atores do processo se “preparariam melhor”.

Confesso que fiquei especialmente preocupado com fato de saber que a presença de câmeras e holofotes fosse necessária a um julgamento para provocar maior responsabilidade em quem, entretanto, pela própria imanência de suas funções (promotores, advogados e juízes), já deveria se conduzir com a máxima gravidade de seu múnus. Por outro lado, mais preocupante ainda foi a ideia que me ocorreu, ao imaginar que, a estar correto o ilustre magistrado, na ausência de câmeras de televisão, julgamentos em todo o Brasil poderiam ocorrer sem a necessária responsabilidade funcional dos atores processuais. Se a premissa fosse realmente válida, fiquei me perguntando se não seria mesmo o caso de garantir a todos os julgamentos que, cotidianamente, se desenvolvem em nosso imenso país, a presença de algumas câmeras de televisão de ordem a estimular em nossos juízes, promotores e advogados, a gravidade e a responsabilidade que se esperam de suas funções. Para lembrar o grande ministro e professor Moreira Alves, aqui, o absurdo da conclusão denuncia a invalidade das premissas.

No entanto, o argumento sequer é novo e tem, é necessário admitir, um relevante exército de defensores. Em outras palavras, não são poucos os que defendem a ideia de que a presença de câmeras de televisão no ambiente dos julgamentos seria benéfica ao seu resultado. Será mesmo? Vejamos.

Como se sabe, a questão das câmeras na sala de audiências tem sido um tema sempre controvertido onde quer ele seja considerado. Partidários de coberturas televisivas de julgamentos gostam de argumentar com a publicidade dos atos estatais e com o maior controle que se deve impor aos atores do processo — referindo-se, especialmente, aos juízes. Os críticos lamentam a atmosfera de espetacularização que as câmeras de televisão quase sempre impõem, não raras vezes carnavalizando um espaço que, por sua própria natureza, exige compenetração, seriedade e prudência.

Parece básico a qualquer espírito democrata e movido por um senso mínimo do que seja o princípio do Estado de Direito que as câmeras de televisão, eventualmente presentes nos ambientes de um tribunal, não poderiam influenciar o comportamento dos participantes de um julgamento, isto é, do juiz, dos advogados, do Ministério Público e, o mais importante, não poderiam influenciar o comportamento das testemunhas e do acusado.

Ao contrário da hipótese de meios de comunicação de massa transtornando o resultado de julgamentos, a possibilidade de alguém perder sua liberdade, ou sua propriedade, exige nada menos do que “absoluta justiça e equidade” dos tribunais, já que o objetivo e prioridade de qualquer julgamento público é permitir um ambiente e um tribunal “livre de preconceito, paixão, agitação e poder tirânico” [1].

Infelizmente, não é difícil imaginar — e a experiência o comprova — que uma testemunha pode preferir não depor, ou mesmo modificar sua versão sobre os fatos, quando se perceba num programa de televisão transmitido para milhões de pessoas. Diante de câmeras, testemunhas podem ter medo, ou podem querer glamourizar sua versão dos acontecimentos, ou até mesmo “ajustar” sua verdade à expectativa e vontade do grande público.

Para o infortúnio dos que confundem publicidade dos julgamentos com espetacularização, pesquisas têm demonstrado que a mera presença de câmeras dentro da sala de julgamento pode ter uma impacto psicológico prejudicial (harmful psychological impact) sobre os jurados, testemunhas, advogados, promotores e juízes. Nos Estados Unidos foram muitos os casos em que a Suprema Corte, à semelhança do que ocorreu em Sheppard v. Maxwell, reverteu a condenação do acusado por negação do devido processo legal, já que o magistrado não teria conseguido administrar a presença prejudicial das câmeras de TV no edifício do tribunal onde ocorrera o julgamento.

O grande problema, nesses casos, é saber se, permitida a presença de televisão no ambiente sagrado do julgamento, seria necessário ao acusado demonstrar o prejuízo de uma eventual condenação[2].

Também nos Estados Unidos, país aqui referido apenas por ser, até onde sei, o local onde se desenvolve esse tipo de pesquisa, tem-se constatado que, de regra, a acusação é favorável às câmeras nos tribunais, enquanto os advogados de defesa manifestam-lhes oposição. De fato, enquanto apenas um pequeno número de promotores entende negativa a presença de câmeras nas sessões de julgamentos, a maioria dos advogados de defesa entendem que a superexposição é prejudicial aos seus clientes. Em 1981, uma pesquisa encomendada pelo Conselho Judicial da Califórnia “revelava que somente 13 por cento dos advogados de defesa eram favoráveis à cobertura eletrônica de procedimentos criminais”. No âmbito de júris populares, é também fácil perceber que, “graças às câmeras de televisão e às análises desinformadas e apaixonadas dos leigos”, as chances de uma decisão favorável aos acusados nos julgamentos em que haja superexposição pela mídia são consideravelmente reduzidas[3].

Thomas Meyer, em um instigante livro (Mediokratie: Die Kolonisierung der Politik durch das Mediensystem[4]), demonstra como tem sido possível a “colonização” do mundo da política e da esfera pública pelos meios de comunicação. Em consistente pesquisa, o autor demonstra que o mundo celebrizado dos “mass media” (meios de comunicação de massa) converteu os homens públicos em reféns dos interesses das grandes empresas de comunicação social. Homens públicos, ao invés de se moverem pela lógica do tempo, das tarefas e eficácia do interesse público, têm se submetido à lógica, ao tempo e à eficácia e aos interesses dos meios de comunicação de massa. Infelizmente, como demonstra o autor, suportado em inúmeros e sérios trabalhos científicos, existem algumas irrecusáveis incompatibilidades entre os sistemas dos “mass media” e as instâncias e os processos públicos de decisão em que estão envolvidos os valores mais caros à sociedade[5].

No momento em que muitos entendem que também o processo judicial deva se submeter à lógica dos meios de comunicação de massa, essas incompatibilidades não podem ser desprezadas por quem tem a responsabilidade de julgar pessoas, colocando em risco sua liberdade pessoal e seus direitos fundamentais. Se a maioria quer mesmo transformar um julgamento penal em espetáculo carnavalesco, para mantermos alguma sobriedade em seu comportamento, devemos considerar seriamente algumas características da mídia em geral, a começar pela existência de um sistema de competição entre as várias entidades que são, antes de tudo, empresas produtoras de informação, que, visando lucro, não vão às salas dos tribunais desinteressadas e neutras, já que estão sempre em busca de notícias que possam conquistar o maior público e a maior clientela possível[6].

As empresas de comunicação de massa, sob o influxo da competição, filtram as informações que transmitem ao público, valendo-se de duas lógicas distintas, mas complementares: (1) por intermédio de uma lógica de seleção (Selektionslogik), a mídia alcança seus fins escolhendo acontecimentos que revelem em primeiro lugar valor de notícia e de informação (Nachrichtenwert) e (2) por uma lógica de apresentação (Präsentationslogik), a mídia se move pelo dogma de valorização da forma de encenação dos fatos a serem noticiados, visando a um crescente índice de atração e de interesse do telespectador, ou seja, de seu público destinatário.

Em síntese, compreensivelmente, a mídia busca, em primeiro lugar, maximizar o interesse do seu público. As empresas de comunicação buscarão, pois, subjugar todas as informações vindas dos outros sistemas sociais (Direito, Economia, política) de ordem a simplesmente torná-las mais atrativas ao seu telespectador — que, em síntese, é seu cliente. Obviamente, uma informação para a mídia é relevante — consideradas as lógicas de seu sistema — não por ser justa, ou conforme o Direito, mas, antes, por ser de apelo e de interesse do público.

A capacidade de sucesso e de prender a atenção do público é o que move, portanto, a atuação das empresas de mídia. Presentes estão nos cálculos de sua atuação em qualquer lugar, inclusive, nas cortes e julgamentos, a preocupação com oferecer ao público episódios de curta duração e de fácil compreensão, consistentes em verdadeiros dramas e minidramas que se mostrarão tanto mais eficazes quanto mais forem de simples compreensão e conclusivos.

Essas informações dramatizadas revelam de regra as mesmas figuras e arquétipos sempre presentes em narrativas de gosto popular — o pai, a mãe, o amigo, o inimigo, o poderoso, o bom, o mal, o traidor, o inocente, o sábio, o competente, o mentiroso, o vagabundo, o violento, o pacificador, o que promove a intriga[7].

Outra distinção substancial, segundo Thomas Meyer, entre os procedimentos públicos (do Legislativo, do Executivo e do Judiciário) e o sistema criado pelos meios de comunicação de massa é, sem dúvida, a diferença quanto ao fator “tempo”[8]. O tempo da mídia é indiscutivelmente diferente do tempo exigido pelos procedimentos do Estado, especialmente, acrescentemos nós, o tempo exigido pela função que deve cumprir o processo judicial. O tempo da mídia é curto, o do processo é, de regra, mais alargado.

Há uma evidente incompatibilidade entre, de um lado, a lógica do processo estatal (no nosso exemplo, o judicial) e, de outro, a lógica da seleção e apresentação dos fatos pela mídia. Enquanto os procedimentos públicos (políticos, administrativos e judiciais) são compostos de inegável complexidade a envolver fatores de múltiplas e recíprocas relações, a mídia, visando simplificar para o seu público, seleciona desse sem-número de fatores aqueles que sejam de maior interesse e apelo popular. Assim, enquanto a lógica que move o processo judicial envolve fatores como contraditório, devido processo legal, ampla defesa, prazos, pretensões resistidas e justiça, os fatores que movem os meios de comunicação são completamente outros: proeminência e celebridade dos personagens, surpresa e paixão, conflitos entre personalidades, curiosidade e o valor da encenação e da curta duração dos episódios e informações[9].

Por fim, há uma indesculpável confusão entre uma benfazeja e necessária publicidade dos atos de um processo judicial com a sua indevida espetacularização. Realmente, tenho uma grande dificuldade em compreender como espíritos desarmados e sérios, numa discussão honesta sobre direitos fundamentais do acusado, conseguem confundir uma e outra realidade. Por tudo o que se viu acima, confrontando todas as diferenças entre os processos judiciais e os interesses da mídia, não parece difícil compreender que as idealizações que movem os espíritos apaixonados em torno da espetacularização dos julgamentos muito raramente se cumprirão na realidade dos fatos. Mas, como dizia o impagável Roberto Campos, nós brasileiros, temos tido a triste virtude de, ao enfrentar nossos problemas, preferir “a chupeta das utopias à bigorna da realidade”.


[1] Marjorie Cohn e David Dow. Cameras in the Courtroom: television and the pursuit of justice. Versão Kindel, location 378-386.

[2] Marjorie Cohn e David Dow. Cameras in the Courtroom: television and the pursuit of justice. Versão Kindel, location 419-427.

[3] Marjorie Cohn e David Dow. Cameras in the Courtroom: television and the pursuit of justice. Versão Kindel, location 427-434.

[4] Thomas Meyer. Mediokratie: Die Kolonisierung der Politik durch das Mediensystem. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001.

[5] Thomas Meyer. Mediokratie: Die Kolonisierung der Politik durch das Mediensystem. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001, p. 8 e seguintes.

[6] Thomas Meyer. Mediokratie: Die Kolonisierung der Politik durch das Mediensystem. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001, p. 45 e ss.

[7] Thomas Meyer. Mediokratie: Die Kolonisierung der Politik durch das Mediensystem. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001, p. 51.

[8] Thomas Meyer. Mediokratie: Die Kolonisierung der Politik durch das Mediensystem. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001, p. 63 e ss.

[9] Thomas Meyer. Mediokratie: Die Kolonisierung der Politik durch das Mediensystem. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001, p. 45.

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