Proposta ineficiente

Debate sobre férias de juízes é demagógico e irracional

Autor

  • Rogerio Neiva Pinheiro

    é juiz do Trabalho da 10ª Região foi juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST nas gestões 2016/2018 e 2018/2020 e juiz auxiliar da Presidência do CSJT na gestão 2020/2022. Autor do livro “Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista" mestre e doutor em Ciências do Comportamento pela Universidade de Brasília.

4 de março de 2013, 15h55

O debate sobre propostas que buscam mudar as férias dos juízes é pautado por um misto de ignorância, demagogia e irracionalidade. Ignorância no sentido da falta de conhecimento da sistemática, inclusive em termos operacionais, do trabalho dos juízes e do funcionamento do Poder Judiciário. Demagogia, pois alguns pretensos paladinos da moralidade, que sempre buscam espaço midiático às custas do discurso fácil e altamente adjetivado para a platéia, usam o tema para viabilizar esta estratégia de busca de audiência. Irracional, pois do ponto de vista lógico, não é racional nem eficiente para a sociedade esta modalidade de proposta.

Mas para chegar à conclusão acima anunciada, é preciso entender alguns conceitos, bem como, principalmente a sistemática de trabalho dos juízes, inclusive à luz dos mecanismos e engrenagens do mundo do trabalho no sistema capitalista.

Assim, um primeiro conceito importante a ser compreendido consiste na noção de que, neste mundo do trabalho no sistema capitalista, no qual a retribuição pelo serviço prestado ocorre por meio de remuneração financeira, ou seja, dinheiro, existem três modelos básicos de retribuição pelo labor executado, os quais correspondem aos seguintes: (1) sistema de remuneração por duração; (2) sistema de remuneração por produção; (3) sistema misto, na forma simples ou complexa.

No primeiro, isto é, no sistema de remuneração por duração, o critério que determina a contraprestação (pelo serviço executado por meio da força de trabalho) consiste no tempo. Dessa maneira, por exemplo no caso do regime empregatício, regido predominantemente pela Consolidação das Leis do Trabalho, o tempo de trabalho, nos termos do artigo 4º da CLT, em regra, consiste naquele em que o empregado-trabalhador executa tarefas ou aguarda ordens à disposição do empregador. Conforme previsto inclusive no texto constitucional (artigo 7º, XIII e XVI da Constituição Federal), caso ocorra a extrapolação do limite de duração diária e/ou semanal, garante-se o pagamento do tempo extrapolado, com adicional de 50%, ou seja, o pagamento de horas extras.

Ainda para o universo de trabalhadores sujeitos ao regime empregatício, também por previsão constitucional, há o direito ao repouso semanal remunerado, conforme prevê o artigo 7º, XV, da Constituição Federal. Ainda que, para os trabalhadores remunerados por duração e que recebem por periodicidade mensal ou quinzenal, exista a presunção de que é embutido no salário o valor do repouso, segundo os termos da Lei 605/1949, no seu artigo 7º, parágrafo 2º.

Caso o repouso semanal remunerado não seja gozado, os trabalhadores que ostentam a condição de empregados devem receber de forma dobrada, conforme a tese da Súmula 146 do Tribunal Superior do Trabalho. Inclusive caso o gozo do repouso ocorra apenas na semana seguinte, conforme também pacificou o TST, por meio da Orientação Jurisprudencial 410 da SBDI-1.

No sistema de remuneração por produção, por sua vez, a retribuição pelo serviço prestado é determinada não em função do tempo, mas do resultado da produção. Exemplo comum consiste no vendedor comissionista, o qual recebe em função de percentual sobre as vendas, as quais consistem na sua produção. Dessa maneira, quanto mais vende, isto é, quanto mais produz, mais recebe. Cabe esclarecer que o TST firmou a tese de que este trabalhador também tem direito ao limite de jornada e, portanto, às horas extras, ainda que recebendo apenas o adicional de 50%, conforme os termos da Súmula 340.

Já no sistema misto, conjuga-se produção e tempo, o que consiste em característica típica dos modelos fordistas e tayloristas de produção. Por exemplo se estabelece que, se determinado resultado é alcançado em tempo menor que o previsto, paga-se um valor adicional por este resultado. Aliás, a Lei 12.436/2011 proibiu este sistema para os trabalhadores do transporte de cargas por meio de motocicletas, isto é, os motoboys, inclusive como medida de prevenção de acidentes.

Estabelecidas e compreendidas tais mencionadas premissas acerca dos modelos de remuneração no mundo do trabalho no sistema capitalista, a grande pergunta que se coloca é: em qual destes modelos se enquadra o juiz? Em qual destes modelos se encaixa este trabalhador do Estado?

Façamos um exercício de reflexão para tentar descobrir.

Primeiramente, o juiz não recebe por duração, até porque não tem limite de jornada. Assim, também não tem direito às horas extras. Repito, o juiz não tem direito ao recebimento de horas extras, mesmo que extrapole a jornada, o que, diga-se de passagem, é fato público, notório e extremamente corriqueiro e comum.

O mesmo se diga quanto ao repouso semanal remunerado. Caso o juiz não goze repouso semanal em função do volume de sentenças, o que também é muito comum, nada acontece. Isto é, não recebe pelo dia de trabalho e pela falta de descanso de forma dobrada, tal como ocorre com os trabalhadores em geral regidos pela CLT.

Para ilustrar de forma mais visível este fato corriqueiro, basta imaginar a situação dos juízes que conduzem os julgamentos no Tribunal do Júri, principalmente os que se transformam em grandes espetáculos midiáticos, os quais ajudam a aumentar em alguns pontos a audiência de veículos de comunicação, contribuindo com os resultados financeiros destas sociedades empresárias, em função do que pagam os anunciantes.

Daí cabe indagar: quanto será que estes juízes ganhariam se recebessem horas extras, tal como ocorre com os demais trabalhadores? E não se diga que há compensação, pois a demanda de processos e a pressão por resultados continua no dia seguinte à finalização do júri midiático.

Por outro lado, o juiz também não recebe por produção, vez que pouco importa, para efeito de definir a remuneração, o quanto produz. Porém, o juiz cada vez mais tem sido cobrado por resultados, inclusive por meio de metas.

Por exemplo, a denominada “Meta 1” estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça consiste em julgar a cada ano uma quantidade de processos ao menos igual à quantidade que entra. Isto pouco importando a capacidade de trabalho do juiz, o que deixaria qualquer engenheiro de produção ou especialista em gestão de processos de trabalho assustados.

Neste sentido, caberia refletir sobre uma situação na qual, no caso do regime empregatício, o empregador de um vendedor lhe cobrasse mais vendas, mas não lhe pagasse mais conforme as vendas realizadas. De qualquer maneira, caso este vendedor extrapolasse o limite de jornada, ao menos recebia horas extras, nos termos da tese da Súmula 340 do TST. Além disto, caso este mesmo vendedor trabalhasse no dia do repouso semanal remunerado, também receberia o valor do dia em dobro. Contudo, nada disto ocorre com o juiz. Dessa forma, definitivamente, o juiz também não se trata de um trabalhador por produção.

Considerando a falta de resposta até o momento, cabe indagar: em qual modelo se enquadra o juiz? Resposta: o juiz recebe sua remuneração como se fosse um trabalhador por duração, mas não tem direito ao recebimento de horas extras caso trabalhe além do limite de jornada, tampouco ao repouso semanal. O juiz também não é trabalhador que recebe por produção, mas é cobrado por resultados e metas.

Assim, uma primeira constatação importante a ser considerada neste debate sobre as férias, é que o fundamental no trabalho do juiz não é quantos dias de férias há no papel. O fundamental é o quanto se produz! São quantas audiências foram realizadas ao longo do ano e quantas sentenças foram proferidas.

Vale salientar que é fato público, notório, óbvio, lógico e matemático —ao menos para quem sabe fazer contas de somar, multiplicar e dividir e olha as estatísticas e sabe quantos dias tem o ano e quantas horas tem o dia, que o juiz trabalha nas férias. Basta fazer contas, pois do contrário a conta não fecha. Se eu não trabalhasse nas férias, além dos finais de semana, seria matematicamente impossível produzir a quantidade de sentenças que produzo ao longo do ano.

Nestes termos, avançando no raciocínio, caberia imaginar o que ocorreria se os juízes, para a felicidade de todos (os juízes), fossem tratados como os demais trabalhadores por duração, batendo cartão para registro de horário, trabalhando de 2ª a 6ª feira, totalizando o limite 44 horas por semana, porém produzindo a metade das sentenças que produz. O mesmo se diga quanto às audiências.

Se os juízes dessem expediente e batessem cartão, ou o Judiciário gastaria muitos recursos orçamentários com o pagamento de horas extras, ou o sistema implodiria, pois o critério relevante deixaria de ser o resultado e passaria a ser o expediente, isto é, a duração.

Não se pode ignorar, e é preciso que se entenda, que o juiz tem quatro principais espécies de atividades, quais sejam: (1) atividades típicas de Secretaria de Varas, o que envolve principalmente a supervisão do trabalho dos servidores e a prática de atos ordinatórios praticados para dar andamento nos processos, consistindo em atividade que tem natureza judiciária e administrativa; (2) atividades de gabinete, envolvendo o julgamento de incidentes com certo grau de complexidade, mas que não envolvem a solução dos processos, ainda que contando com o apoio de assessores; (3) realização de audiências, principalmente para a colheita de provas orais, o que não conta com qualquer limite de horário, por vezes desafiando a capacidade de um ser humano normal trabalhar sem descansos, inclusive em função de pautas de audiências por vezes desumanas; (4) prolação de sentenças, ou seja, julgamento de processos. Atender advogados e partes, o que é obrigação do juiz e ocorre com alguma freqüência, sequer está sendo colocando neste rol, vez que geralmente demanda um tempo significativamente inferior, bem como não exige tanto esforço como as demais.

Das atividades acima listadas, as três primeiras necessariamente devem ser executadas no ambiente judiciário, ou seja, nas Varas. Já a quarta, correspondente ao julgamento de processos, o que consiste em tarefa tipicamente e puramente intelectual, não necessariamente precisa ser executada na Vara. Geralmente é executada em casa e fora do horário e dos dias de expediente forense.

Some-se a isto o fato de que, matematicamente, considerando o tempo de audiência e o tempo que se passa na Secretaria e no Gabinete, o que sobra é humanamente impossível para os julgamentos, considerando a demanda de processos a serem julgados. Mesmo trabalhando nos finais de semana.

Assim, se um juiz recebe 120 processos conclusos para julgamento por mês, o que equivale a 30 processos por semana, e resolve apenas 20 por semana, sobram 10 a cada semana. E nas semanas seguintes ocorrerá o mesmo. Daí a pergunta que se faz é: e quando é que este resíduo será zerado? Resposta: nas férias!!! Nas privilegiadas férias!!!

Portanto, a grande verdade é que se colocar em discussão o sistema de trabalho do juiz, a qual terá que ser enfrentada no debate sobre as férias, o sistema irá ruir.

Isto é, se o debate for conduzido sem hipocrisia, sem demagogia e de forma racional, será preciso transformar o juiz em trabalhador por duração em todos os sentidos. Repito, rediscutir as férias, exige rediscutir em qual modelo de trabalho se enquadra o juiz, considerando os modelos existentes no sistema capitalista. E isto irá inviabilizar o Judiciário.

Imagine um juiz, no meio de uma audiência de instrução, enquanto interroga uma testemunha, parar o interrogatório e dizer: “agora chegou ao fim o meu expediente, vamos parar por aqui”.

Quanto ao enquadramento do juiz como trabalhador por produção, isto sequer pode ser cogitado, pois há um problema de conveniência e viabilidade. A falta de conveniência seria a inadequação de pagar o juiz por sentença proferida ou audiência realizada. A inviabilidade consiste na falta de condições para estimar quanto tempo se gasta para elaborar uma sentença ou realizar uma audiência, ante a total imprevisibilidade e manifesta complexidade destes processos de trabalho.

Definitivamente, quanto às pessoas sérias e de bem, não há dúvida de que estas não conhecem o risco que se corre ao abrir esta discussão das férias de 60 dias do juiz. Se os juízes passarem a receber tratamento isonômico com os demais trabalhadores, o Judiciário entra em colapso.

Seguramente, todos os juízes sonham em trabalhar 44 horas por semana ou ganhar horas extras no caso de extrapolação, bem como receber de forma dobrada pelos repousos semanais não gozados. Isto incluindo na contagem do tempo de trabalho aquele gasto na Secretaria, no gabinete, sala de audiências e, também, prolatando sentenças.

Não há qualquer dúvida, considerando o número de processos ajuizados e os que circulam nas Secretarias das Varas, bem como a quantidade de juízes, de que a conta não fecha. Ou o Judiciário quebra o seu orçamento em função do pagamento de horas extras ou entra em colapso com o acúmulo de processos.

A grande questão não é quantos dias de férias há no papel. É quantas sentenças são produzidas e quantas audiências são realizadas no ano. Qual o sentido faz em diminuir no papel a quantidade de dias de férias e diminuir o número de julgamentos no ano? Afinal, é óbvio, matematicamente, que o juiz terá reduzido o seu tempo para a atividade intelectual de produção de sentenças.

Portanto, para que este debate seja conduzido de forma séria, é preciso acabar com a ignorância, com a demagogia e a hipocrisia. E ter consciência e assumir os riscos das conseqüências.

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