Rebelião de promotores

Fenômeno gera debates sobre dever profissional nos EUA

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3 de março de 2013, 10h56

Um novo fenômeno está intrigando a comunidade jurídica americana. Os promotores estão se recusando a defender o Estado em casos que se baseiam em leis consideradas inconstitucionais ― ou em casos tecnicamente indefensáveis, que sempre resultam em desperdício de recursos públicos. É uma espécie de rebelião dos promotores contra "defesas supérfluas", de acordo com o Jornal da ABA (American Bar Association).

"Da mesma forma que ninguém quer que os advogados movam ações frívolas, os promotores também não querem fazer defesas frívolas. Isso está abaixo da dignidade da profissão e é um desperdício de recursos públicos", diz o professor de ética profissional do promotor, da Faculdade de Direito da Universidade de Boston, R. Michael Cassidy.

"Se um promotor estadual ou federal sabe que não há uma probabilidade razoável de sucesso, então ele tem a responsabilidade ética de se recusar a defender o Estado (ou uma lei), quando fica claro que se trata de uma defesa frívola", ele afirma.

A postura dos promotores acionou o debate sobre o "grau de discrição" dos promotores. Alguns especialistas em ética jurídica argumentam que os promotores são obrigados a defender a lei em sua jurisdição, a qualquer custo. "Um promotor não pode escolher as leis que ele quer defender ou não", diz o juiz aposentado do Tribunal de Recursos de Illinois David Erickson, que também é diretor do programa de litígio criminal da Faculdade de Direito de Chicago. "E se o promotor não aprovar a lei que define crimes de ódio? Ele não pode ser recusar a defendê-la por causa de suas opiniões pessoais", ele afirma.

Essa é uma questão complexa, na opinião do promotor André Luís Alves de Melo, que atua em Araguari (MG). "No Brasil, praticamente um terço do CPP é inconstitucional", ele diz. "O problema é que se começarmos a desconsiderar leis por serem ‘inconstitucionais’, com base em critérios subjetivos, nossa insegurança jurídica será grande". O CPP brasileiro, concebido em 1941, durante a ditadura, foi inspirado no Código Italiano, que já passou por duas grandes reformas, entre 1998 e 2005. O do Brasil não mudou. O ideal, segundo o promotor, seria seguir o modelo alemão de controle de constitucionalidade, que evita a pulverização de temas constitucionais.

Ele ressalta ainda a diferença de que não existe concurso para promotores e juízes nos EUA ― eles são eleitos direta ou indiretamente, o que, para o bem ou para o mal, resulta em um maior controle social. "Aqui poderia haver um forte aspecto de tecnocracia. No entanto, de fato, ainda estamos tímidos no controle de constitucionalidade no Brasil, notadamente na área penal", disse.

Ações frívolas
Muitos promotores americanos também se recusam a mover "ações frívolas", especialmente em casos criminais, porque a lei em que a acusação se baseia é considerada inconstitucional. Ou o caso é indefensável.

Um exemplo é o de uma ação movida contra uma pessoa por posse ou porte de arma. Em Illinois, uma lei estadual criminaliza "a mera posse de arma ― não o uso ou ameaça de uso ― que a polícia encontrar em um lugar teoricamente errado ou em alguma espécie de recipiente errado", diz o promotor Ronald Dozier, que atua no condado de McLean. "Não iremos mais usar o poder e a autoridade desse departamento para criminalizar ou punir cidadãos decentes, que obedecem a lei, que optam por exercer os direitos que lhes são concedidos pela Constituição", disse o promotor, em nota.

A Segunda Emenda da Constituição dos EUA garante aos cidadãos americanos o direito de possuir e portar armas. Mesmo que questionado ultimamente, devido a uma série de atrocidades, possuir e portar armas ainda é um direito constitucional, lembra o tribunal de recursos de Chicago. Em dezembro, juiz Richard Posner escreveu, em uma decisão da corte, que "a emenda confere ao cidadão o direito de portar armas para autodefesa, o que é mais sentido fora de casa do que dentro dela".

Juramento constitucional
O caso mais recente da "rebelião dos promotores" tem relação com um tema quente do momento nos meios jurídicos americanos. A Suprema Corte poderá extinguir, em uma cajadada só, duas leis, uma federal e outra estadual (da Califórnia), que configuram o casamento como uma união entre um homem e uma mulher. A decisão será tomada em 26 de março.

Em Illinois, a promotora Anita Alvarez se recusou a defender o estado em um caso que teria de defender uma lei semelhante. O caso envolve 25 casais do mesmo sexo, que moveram uma espécie de ação coletiva contra a autoridade do Condado de Cook, que teria se recusado a lhes conceder licença de casamento. Os casais pediram ao tribunal que derrube a lei do casamento.

Illinois permite a "união civil" entre pessoas do mesmo sexo. Mas não o casamento. De acordo com os demandantes, permitir uma "união civil" e negar o casamento os relega a um "status inferior" na sociedade. Anita Alvarez concordou com a alegação dos demandantes de que a lei estadual viola a Constituição.

A promotora justificou sua atitude nos autos do processo, com um forte argumento: "Eu fiz o juramento, quando tomei posse no cargo, de defender a Constituição de Illinois e, portanto, acredito que estou fazendo a coisa certa". E declarou à agência Associated Press: "Não vou defender algo que acredito estar violando a Constituição".

A procuradora-geral de Illinois, Lisa Madigan, protocolou um pedido para um tribunal se pronunciar sobre a constitucionalidade da lei, indicando, desde logo, que a Promotoria de Illinois não vai defendê-la. A autoridade do Condado de Cook, que foi processada pelos 25 casais, divulgou uma declaração afirmando que ele mesmo considera que a lei discrimina contra os casais gays. "Ninguém deveria ser submetido a um teste de gênero para ter direito a se casar", ele escreveu.

Exemplo presidencial
Recentemente, os promotores passaram a tomar atitudes semelhantes em todo o país, de acordo com o jornal da ABA. E o exemplo vem de cima. Também recentemente, o presidente Barack Obama orientou o Departamento de Justiça dos EUA a parar de defender a constitucionalidade da Lei de Defesa do Casamento (DOMA). Essa é a lei que será examinada pela Suprema Corte dos EUA neste mês.

"Ninguém pode afirmar que a responsabilidade de defender uma lei federal ou estadual tem mais valor do que a responsabilidade de defender a Constituição do país ou do estado", diz o professor Michael Cassidy. "Se um promotor acredita, verdadeiramente, que uma lei viola a Constituição, seu dever de defender a Constituição sobrepuja o de defender a lei", declara.

O procurador-geral de Wisconsin, J.B. Van Hollen, e o governador Scott Walker se recusam a defender a "Lei de Parceria Doméstica" do estado. A lei, aprovada em 2009, permite a casais do mesmo sexo a se registrarem como "parceiros domésticos", para terem direitos relativos à herança, morte que gera responsabilidade civil (wrongful death) e outros benefícios.

Questão de recursos
Alguns casos geram polêmicas, por causa de conotações políticas. Em Nebraska, o procurador-geral do estado Jon Bruning se meteu no centro de uma controvérsia por declarar que não iria defender uma lei estadual sobre o aborto, assinada pelo governador. A lei obriga as mulheres a se submeterem a uma triagem clínica, se quiserem fazer um aborto. Uma organização de planejamento familiar entrou na Justiça contra a lei e a juíza federal Laurie Smith a bloqueou temporariamente.

A porta-voz da Procuradoria declarou à imprensa que ficou evidente, pela decisão da juíza, que a lei seria declarada inconstitucional, no final das contas. "Não vamos desperdiçar os recursos do estado defendendo uma causa, em que praticamente não temos probabilidade de ganhar", disse a porta-voz Shannon Kingery.

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