Contas à Vista

Fé no que virá: mestres com mestrado

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

21 de maio de 2013, 8h01

Spacca
Continuo achando que o Tiririca errou! Pior do que está pode ficar.  Mas existe esperança no horizonte. Como cantou Gonzaguinha, é preciso ter “fé no que virá”. Nunca pare de sonhar.

Não existe o determinismo histórico (desculpem-me os marxistas). É o homem em sociedade que faz seu caminho, que pode ser de ampliação das liberdades ou de submissão do seu semelhante, dentre várias outras opções que surgem pela frente. O caminho não está pré-determinado, o escrevemos com nossos passos.

Faço esta introdução como contraponto à última coluna que escrevi neste espaço, quatro semanas atrás (Pior do que está pode ficar: mestres sem mestrado), em que critiquei a Lei 12.772/2012 que impedia as Universidades Federais de exigir pós-graduação para o ingresso na carreira docente.

Pois bem, no intervalo entre estas duas colunas, a vedação foi revogada pela Medida Provisória 614, transformando em facultativa a exigência, o que está corretíssimo e atende ao critério da autonomia didático-científica das universidades, previsto no artigo 207 da Constituição.

Existem variáveis que devem ser consideradas para este requisito acadêmico — peculiaridades geográficas e áreas de conhecimento. Exigir mestrado ou doutorado para o ensino de música, por exemplo, não encontra ressonância no meio artístico em geral. Por outro lado, existem lugares onde a pós-graduação ainda não se instalou gerando novos frutos e permitindo que o ensino e a pesquisa sejam melhor sistematizados — por isso, a exigência de titulação para ingresso na carreira docente deve ser relativizada.

Ter diploma de mestre ou doutor não é nenhuma garantia que o profissional venha a ser um bom docente ou pesquisador. Existem doutores que são péssimos em sala de aula, outros que estudam apenas uma ínfima fração do universo do conhecimento (lembro sempre de uma jovem doutora que passou uma temporada no Museu Paraense Emílio Goeldi pesquisando drosófilas — aquelas pequenas moscas que aparecem sobre as frutas quando apodrecem. Essa jovem estudava especificamente as drosófilas das bananas podres. Por favor, não me pergunte a importância desse objeto de estudo. Dirija sua dúvida a um entomólogo).

Então, para que serve o diploma de mestre ou de doutor? Se não é a garantia de melhores docentes, serve para quê?

No meu ponto de vista, é uma garantia que o profissional tem mais anos de estudo sistematizado e capacidade para analisar um determinado ponto do conhecimento humano, de forma a produzir, a partir dali, novos conhecimentos. E isto deve ser comprovado por uma banca qualificada de docentes, os quais terão que atestar estas qualidades naquele profissional, reconhecendo suas habilidades para ensinar e pesquisar naquela área. É por isso que o sistema de pós-graduação se caracteriza como o lugar da formação dos formadores, pois através dele é que se agrega valor ao conhecimento humano.

Desse sistema surgem diferentes níveis de conhecimento teórico: o mestrado e o doutorado. Aos mestres é exigido que produzam dissertações, nas quais deve ser sistematizado o conhecimento existente em determinada área do saber. Do mestre não se exige inovação, mas sistematização. Aos doutores exige-se inovação, além da sistematização – uma tese (conheço quem entenda que a diferença na área jurídica reside no tamanho do trabalho apresentado — até 200 páginas é dissertação; a partir de 300 páginas é tese —, mas isso é uma deturpação). Surgiu há alguns anos outro tipo de mestrado, o profissional ou profissionalizante, que a meu ver nada mais é do que uma nova roupagem para as especializações, que foram banalizadas por falta de controle do sistema educacional.

Outro engano usual é entender que o conhecimento profissional substitui o acadêmico. Eles se completam. Falemos de Direito: um desembargador, procurador de Justiça ou advogado estudam para resolver casos, problemas que surgem sobre suas mesas. E são treinados para resolver estes casos concretos. Esta percepção é diferente no conhecimento acadêmico, que deve ser sistematizado. Veja bem: em um caso o foco é colocado no verbo “resolver”, no outro é no verbo “sistematizar”.Pode-se partir do estudo de caso, mas deve-se gerar a partir dele um conhecimento que abranja outros casos idênticos e permita distinguir os que são apenas semelhantes, conectando pontos que demonstrem a existência de um sistema ou sua quebra, com formação de outras correlações.

Docentes buscam resolver teoricamente problemas hipotéticos, que podem ou não se concretizar. Os demais profissionais jurídicos buscam a teoria já criada para resolver problemas concretos que estão sobre suas mesas. Muitas vezes, a teoria existente é insuficiente ou inadequada para resolver aquele “abacaxi” que chegou na mesa do juiz, promotor ou advogado — daí se diz que “na prática a teoria é outra”. Não é bem isso. Eventualmente se utiliza a teoria inadequada para a solução de casos da vida real. A realidade é muito mais rica e dinâmica que a teoria, por isso que esta persegue aquela, como regra.

O que isso tudo tem a ver com o Direito Financeiro? A questão do gasto público presente e futuro. Gastar melhor hoje pode permitir que as próximas gerações não se deparem com os problemas vividos atualmente. Vou dar um exemplo. Participei dias atrás de uma banca de mestrado de um aluno orientado por uma docente de Direito Ambiental. Ele apresentou em sua dissertação a descrição de três empreendimentos minerários implantados na Amazônia em diferentes épocas — um na década de 50, outro na década de 70 e o terceiro na primeira década deste século. As normas de proteção ambiental avançaram muitíssimo ao longo desse tempo, e foram colocadas em prática, o que foi demonstrado na comparação temporal entre os três projetos econômicos. Isso é fruto de pesquisa teórica e aplicação prática do conhecimento haurido. E, além da parte ambiental, diz respeito ao Direito Financeiro, pois novos gastos públicos foram evitados através da melhor proteção das diferentes gerações e do uso mais adequado de um patrimônio nacional esgotável. Poderia apresentar outros exemplos, mas paro por aqui.

Enfim, quatro semanas se passaram e o governo voltou atrás em uma medida errada que havia adotado. Agiu correto o Poder Executivo ao enviar uma Medida Provisória para corrigir isso. A urgência é mais do que justificada, pois poderiam ser realizados concursos públicos para docentes sob a regra anterior, com perversas consequências intergeracionais. Espero que o Congresso Nacional também aja corretamente, não colocando jabutis em árvores (não entendeu? A explicação fica para outra coluna).

Não sei se fui ouvido, mas sei que juntei meu brado ao de incontáveis outras pessoas que também gritaram. Fiquei contente. Posso sair por aí assobiando a música do Gonzaguinha que fala ser preciso ter “fé no que virá”. Jamais se deve parar de sonhar. E lutar pelos seus sonhos, até mesmo porque, pior do que está sempre pode ficar.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!