Lei aberta

'CLT foi sábia ao criar muitas opções de se fazer Justiça'

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19 de maio de 2013, 9h55

Spacca
Há quem critique a CLT por suas normas genéricas, que permitem interpretações diversas e criativas. O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, com sede em Campinas (SP), Flávio Allegretti Cooper, enxerga esta característica como a sua maior qualidade. A flexibilidade, como classifica o desembargador, reduz a burocracia e dá ao juiz a opção de combinar a aplicação da CLT com outras leis e códigos que a tornem mais eficiente.

“Você quer uma sabedoria maior do que a de uma lei tão aberta que permite o uso de muitos instrumentos para fazer Justiça? Eu acho isso muito sábio”, declarou Cooper em entrevista para o Anuário da Justiça do Trabalho 2013, que será lançado em junho. A Consolidação das Leis do Trabalho completou 70 anos no dia 1º de maio. Foi criada pelo Decreto-Lei 5.452, assinado pelo presidente Getúlio Vargas no estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, em 1943.

Flávio Cooper está há seis meses na presidência do TRT-15, o qual tem jurisdição sobre uma área correspondente a 95% do estado de São Paulo, onde vivem 21 milhões de pessoas. A execução das sentenças é o principal entrave na corte. São 299,6 mil reclamações trabalhistas em fase de execução e 32.261 delas são consideradas frustradas, porque quase impossíveis de finalizar. É comum a empresa fechar e os donos não terem bens, sem deixar qualquer esperança ao trabalhador.

No ano passado, a corte recebeu quase 127 mil processos novos e julgou 119.870. Com as decisões, os trabalhadores receberam quase R$ 2,5 bilhões e a arrecadação para os cofres da União foi de R$ 300 milhões.

O presidente do TRT-Campinas gosta de contar casos, tem 57 anos e nasceu no Rio de Janeiro. Nesta entrevista, além de falar bem da septuagenária CLT, Flávio Cooper se disse preocupado com o fato de que o trabalho escravo ou análogo à escravidão ser cada mais recorrente no estado. E, diferente do que se possa pensar, tão comum na cidade quanto no ambiente rural.

Durante os dois anos no comando da corte, o desembargador vai focar em investimentos na implantação do processo eletrônico. Atualmente, 16% das varas estão informatizadas. A aprovação de projetos de lei que criam varas e cargos de apoio também está entre as prioridades de sua gestão.

Também participaram da entrevista os jornalistas Maurício Cardoso e Fernanda Bonadia.

Leia a entrevista

ConJur — A CLT acaba de completar 70 anos. Ela continua aplicável às novas modalidades de relações de trabalho?
Flávio Cooper
Eu adoro a CLT. Ela é muito moderna. Previu muitos direitos trabalhistas que foram constitucionalizados, transplantados para a Constituição de 1988. Trata do funcionamento da Justiça, da questão da segurança no trabalho, da rescisão contratual, dos intervalos dentro da jornada ou entre uma jornada e outra. É muito rica. Não vejo necessidade de mudanças radicais. Claro que aperfeiçoamentos sempre podem ser feitos. Dizem que na parte processual é muito lacônica. Eu gosto disso, porque traz informalidade à Justiça. A audiência é melhor quando é mais informal, menos burocrática. A CLT traz normas abertas, é super aberta. Permite que quem aplica a norma preencha o seu conteúdo.

ConJur — O que, por outro lado, permite interpretações diferentes.
Flávio Cooper
— Sim, muitas pessoas reclamam: “Em Bauru a audiência é diferente de Jundiaí”. Para mim, isso é rico, porque cada região é diferente, as causas não são as mesmas, os advogados são diferentes. Aqui tem mais acordos, lá se faz menos. Então, o juiz tem liberdade para moldar as audiências, os procedimentos, a própria organização da maneira que for melhor. Não acho que a Justiça deva ser padronizada.

ConJur — Alguns juízes, se entendem ser mais vantajoso para as partes, preferem aplicar o Código de Processo Civil mesmo quando a CLT trata do tema. Qual a sua opinião?
Flávio Cooper
— Isso é bom. A CLT é sábia quando diz: “Além de mim, juiz, você tem outros instrumentos. Pode buscar a solução no Processo Civil, no Código Civil, na Lei de Execução Fiscal, no ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]”. Você quer uma sabedoria maior do que a de uma lei que é tão flexível, tão aberta, que permite que você tenha muitos instrumentos para fazer Justiça? Eu acho isso muito sábio. Se o CPC inova na execução, é possível juntá-lo à regra da CLT para torná-la mais eficiente. Não se trata de uma substituição. O juiz pode usar a CLT com agregados normativos, que vão desde leis, normas administrativas, norma profissional coletiva, até princípios. Há tantas convenções internacionais ratificadas pelo Brasil.

ConJur — Os desembargadores do TRT-15 costumam aplicar as súmulas e a jurisprudência do TST?
Flávio Cooper —
A jurisprudência do TST não é obrigatória, mas normalmente seguimos os seus entendimentos. Inclusive, se o tema for coincidente com a nossa jurisprudência, o relator pode julgar monocraticamente, sem levar para a Câmara. Um ou outro desembargador não concorda e diverge. Se o tema é novo, as posições são variáveis. Às vezes, há duas ou três correntes e câmaras que julgam diferente. Por isso, no segundo semestre, nos reuniremos para identificar os temas mais polêmicos e convidar professores e juízes de outras regiões para discuti-los e editar súmulas. Mas o aumento na demanda não tem relação com o conteúdo das decisões. Há, por exemplo, muitas ações por acidente de trabalho. O país é muito precário em relação a isso, tanto que o TST faz campanha pelo trabalho seguro. Aumentou muito o número desses processos.

ConJur — Quais são as reclamações que mais chegam atualmente?
Flávio Cooper —
São muitas as ações contra negociações coletivas. Há ainda um número enorme de reclamações por hora extra com base na lei que regula a profissão de motorista [Lei 12.619, de 30 de abril de 2012]. Nossa! Essa lei é muito polêmica, de difícil interpretação. O motorista de carga fica o tempo todo na estrada. Hoje, a tecnologia permite que o empregador controle a jornada dele. Sabe quando o caminhão anda, quando para. A CLT diz que se você puder controlar a jornada, quando houver excesso, tem de pagar hora extra. Os caminhoneiros vêm ganhando as ações. É até um perigo esse pessoal na estrada dirigindo tantas horas, cansados. Eles são responsáveis pela carga, muitos dormem dentro do caminhão para cuidar dela. Se dormirem no hotel, podem perdê-la. É alto o índice de assaltos, de extravio de cargas. Temos recebido com maior frequência também muitos casos de discriminação. Nem tantos de discriminação racial, mas contra a mulher, religião, homoafetiva.

ConJur — A quantidade de ações com pedido de dano moral aumentou muito?
Flávio Cooper —
Sim.

ConJur — É um problema?
Flávio Cooper —
Antes de 1988, a jurisprudência não estava muito segura quanto às lesões morais. Esse item entrou expressamente na Constituição Federal, o que despertou o brasileiro para essa questão. Há reclamações que eram impensáveis. Antigamente, se a empresa atrasasse em 30 dias o pagamento da rescisão, o trabalhador entrava com ação para pedir as verbas rescisórias, valor que recebia com juros e correção monetária. Hoje, o advogado acrescenta que o cheque especial do cliente estourou, que não pode pagar a conta de luz, o que provocou dano moral. A Justiça concorda. Outro problema de dano moral no trabalho rural: o banheiro. Se não há separado para mulher e para homem, o banheiro é degradante. Ou se o refeitório fica sob o sol, não tem tenda, o trabalhador também alega dano moral. As pessoas estão mais sensíveis para essa questão moral do que antes.

ConJur — Além da Constituição, a Reforma do Judiciário [Emenda Constitucional 45/2004] trouxe o dano moral decorrente de acidente de trabalho.
Flávio Cooper —
Na verdade, apenas passou para a Justiça do Trabalho a competência para julgar ações sobre dano moral em acidente de trabalho. Mas julgamos diversos outros tipos de pedidos de indenização por dano moral. Eu fui relator do caso em que uma jogadora de basquete foi dispensada do time e quando perguntaram para o técnico por que, ele respondeu: “Ela está muito velha”. Ela era tricampeã nacional e alegou que outros times poderiam ter receio de contratá-la após a declaração do técnico à imprensa. Ele se defendeu dizendo ter usado linguagem normal no esporte, que não há ofensa quando se diz que o jogador de futebol de 30 anos está velho. O técnico pode ter alguma razão, mas ao verbalizar publicamente causou prejuízo moral, passou a impressão de que ela não poderia mais jogar, o que não era verdade. A Justiça condenou o técnico, o time e o patrocinador, todo mundo teve culpa.

ConJur — Quais são os critérios usados para a condenação por dano moral?
Flávio Cooper —
Normalmente, avaliamos a culpa do empregador. E essa culpa pode ser por omissão também. Analisamos se ele não investiu em dispositivos de proteção de máquina, se o ambiente de trabalho foi propício para uma doença, se o intervalo era respeitado. As pessoas não se preocupavam muito com essas coisas. Agora o empregador está muito mais preocupado e tomando mais precauções. O Ministério do Trabalho também vem editando normas administrativas para orientar as empresas.

ConJur — A 15ª Região tem uma característica bem diferente da 2ª [que tem sede em São Paulo e jurisdição sobre a região metropolitana e a Baixada Santista], que trata mais do trabalho urbano. Aqui tem tanto urbano, industrial, como rural também.
Flávio Cooper —
Sim, organizamos inclusive um Congresso de Direito do Trabalho Rural. Neste ano, estamos pensando em fazer um congresso inter-regional, em parceria com Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Brasília. Um dos principais temas a serem discutidos é o trabalho escravo, que está sendo recorrente.

ConJur — É quase sempre rural?
Flávio Cooper —
Não. Recentemente, houve um caso em Valinhos. Um empreiteiro ganhou uma licitação, foi até a Bahia e prometeu salário de R$ 3 mil para quem viesse para São Paulo. Encheu um ônibus e trouxe o pessoal para cá. Não registrou ninguém, não pagou salário nenhum, fez um alojamento degradante e à noite levava pinga para o pessoal não sentir fome nem frio. Após uma denúncia, o Ministério Público do Trabalho foi resgatá-los e a prefeitura teve de assumir, pagar os seus direitos trabalhistas e a volta para a Bahia. Isso é trabalho análogo à escravidão.

ConJur — Esses casos têm aumentado?
Flávio Cooper —
É tão preocupante que o Congresso Nacional analisa proposta de emenda à Constituição [57A/1999] que prevê sanções para quem usar mão de obra escrava. Não é uma coisa isolada, é um fenômeno preocupante. Os casos são sucessivos.

ConJur — Os empregadores reclamam que falta uma definição do que é trabalho escravo. Para o senhor é claro o que seja o trabalho escravo?
Flávio Cooper
Claríssimo. Agora, há também o trabalho análogo à escravidão. O escravo é aquele em que o empregador leva os trabalhadores para uma área rural, por exemplo, e eles ficam isolados. Não têm como ir para a cidade, não têm dinheiro para comprar comida, já que o que recebem têm de usar para pagar o aluguel, luz, água e vão acumulando dívidas. Esse é um fenômeno moderno, não é coisa de 1800. Nos casos análogos à escravidão, não há anotação na carteira, o salário é bem menor do que o prometido, os trabalhadores vivem em condições subumanas, são vilipendiados em sua dignidade.

ConJur — E como o tribunal trata o trabalho infantil?
Flávio Cooper
— Há uma discussão em relação às escolinhas de futebol, se é trabalho proibido ou não. As escolinhas prometem mandar o dinheiro para a família, supervisionar a escola, assistência médica, dentária. Ele está se divertindo? Não, está trabalhando. Quando crescer, vai ter o passe vendido para outros clubes, ficar longe da família e está trabalhando com menos de 16 anos. Aí quando ele quer voltar a família diz: “Não, meu filho, fique aí, você tem um futuro pela frente”. Ele se sente responsável pela família, não tem direito de brincar, como o Estatuto da Criança e do Adolescente garante, perde a infância. O governo não vê com bons olhos. Os clubes se defendem: “Estamos tirando jovens da marginalidade, dando toda a assistência e a oportunidade dele ser um grande profissional”. Sem contar os casos de crianças que vivem nas ruas vendendo coisas para ajudar a família. O trabalho infantil é outra chaga grave que temos aqui.

ConJur — Presidente, qual o seu projeto de gestão do TRT-15?
Flávio Cooper —
A expansão do processo eletrônico está entre as prioridades da minha gestão. Na primeira vara em que o PJe-JT foi instalado, em Piedade, o tempo do processo foi reduzido de forma surpreendente: em 70%. Diversas atividades administrativas desapareceram. Os carimbos não são mais necessários, nem a numeração das páginas, o deslocamento do processo de servidor para servidor, não há mais pilhas de papéis. “Onde é que estão os autos? Não encontro os autos.” Essa pergunta não tem mais sentido. O grande desafio é a mudança de cultura.

ConJur — É comum juízes e desembargadores dizerem que o processo tem problemas e ainda precisa ser aprimorado. O que precisa melhorar?
Flávio Cooper —
Adaptar a tecnologia ao procedimento judiciário não é nada simples. Precisamos, por exemplo, de um indexador. Aqui no tribunal, não precisamos ler cada peça do processo. O recurso trata de alguns pontos e é sobre eles que temos de ler. O indexador nos ajudaria nisso. O desenvolvimento do PJe-JT está centralizado no Conselho Superior da Justiça de Trabalho. A Justiça do Trabalho de todo país está andando no mesmo ritmo. Mas precisamos de especialistas em tecnologia da informação dentro do tribunal. Cada tribunal tem as suas peculiaridades e é possível que surjam problemas locais e tenhamos que prover soluções caseiras. Seriam necessários 120 técnicos e hoje só temos 53. O tribunal é extenso, ocupa 95% do território paulista. Por enquanto, há um anteprojeto de lei que cria esses cargos. Se ele virar projeto de lei e for aprovado, teremos de fazer concurso público para contratá-los.

ConJur — Quantas varas já estão totalmente informatizadas?
Flávio Cooper —
O PJe está em 16% das varas. Na segunda instância está implantado nos processos de competência originária, como mandados de segurança, ações rescisórias, dissídios coletivos. Gostaríamos que até o final deste ano todas as varas já trabalhassem com o processo eletrônico.

ConJur — Quais são os outros desafios que terá de enfrentar na presidência da corte?
Flávio Cooper —
Temos uma carência muito grande de servidores. O processo eletrônico, ao contrário do que se possa pensar, aumenta a quantidade de trabalho e a sua intensidade. Será preciso pensar na saúde do magistrado, porque ele tem de ter tempo para se recuperar. O PJe pode ser aberto em casa, em qualquer lugar. Outro dia uma colega desembargadora contava que chegou em casa, ligou o computador e caiu um pedido de liminar em Mandado de Segurança. Há essa questão de saber separar o tempo.

ConJur — Quantos são os servidores do TRT-15 e quantos mais são necessários?
Flávio Cooper —
O nosso tribunal já nasceu com uma deficiência. A corte é um desmembramento da 2ª Região [São Paulo] e foi criado sem servidores. Apenas as varas tinham servidores. O tribunal teve de pedir funcionários da primeira instância, que ficou desfalcada. É que eu chamo de vício de origem. O TRT em Campinas tem 25 anos e nunca conseguiu corrigir esse problema. Hoje, são 3.200 servidores mais 500 terceirizados. E nós somos descentralizados. O TRT-SP, por exemplo, tem cinco mil servidores. Há um projeto tramitando no Conselho Superior da Justiça do Trabalho que prevê a criação de 981 servidores. Precisamos de um pouco mais, mas ficaríamos felizes se esse contingente fosse aprovado. Em outro projeto, pedimos a criação de 66 varas. De qualquer forma, depois do CSJT ainda há um longo caminho até o Congresso Nacional.

ConJur — Há vagas de juiz para serem preenchidas?
Flávio Cooper —
Mais ou menos 30 vagas. Há um concurso em andamento que deve acabar só em outubro. Estou me concentrando muito nesse processo e temos esperança de preencher todas as vagas. No último concurso, apenas 10 foram aprovados.

ConJur — Por quê? O TRT-15 é muito rigoroso?
Flávio Cooper —
O nosso objetivo é fazer um concurso razoável para selecionar pessoas com maturidade jurídica e que sejam vocacionadas. Mas as bancas são diferentes em cada concurso. Neste, convidamos os juízes de primeira instância para participar do processo de seleção. Eles se sentiram prestigiados, me mandaram e-mail: “Você se lembrou de nós”. Na prova oral, sempre convidamos um ministro do TST e um representante da OAB. A prova oral é terrível. Quando você chega lá, já é 90% juiz e se não fizer uma boa prova, aquela expectativa se frustra, é muito ruim.

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