Embargos Culturais

O conceito de justiça fiscal na tradição ocidental

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

19 de maio de 2013, 8h01

Proponho que se conceitue justiça fiscal como conteúdo realisticamente aferível que alcance todas as concepções de Justiça que a tradição ocidental nos coloca, devendo-se levar em conta, também, os benefícios e os custos da vida social.

A justiça fiscal é justiça de algum modo comutativa, distributiva, repressiva, social, legal e equitativa. E ainda que justiça, em sentido amplo, seja conceito metafísico, oponível, por exemplo, à ideia de eficiência, que é percepção nuclear de outro campo das ciências sociais aplicadas — refiro-me à economia — pode-se transitar em torno de uma ideia de justiça que contenha alguma objetividade. É o que seria necessário para uma conceituação prospectiva de justiça social.

A justiça fiscal sugere comutatividade, na medida (tanto quanto possível, exata) que se deva extrair de cada um o quanto efetivamente devido. Refiro-me, evidentemente, à taxa de extração fiscal, que fixa o montante que o poder tributante está autorizado a retirar de quem recolhe tributos, direta ou indiretamente. Isto é, mediante cobrança de tributos ou por intermédio de políticas inflacionárias.

Por outro lado, porque a justiça comutativa demanda uma troca perfeita, em termos aristotélicos, deve-se ajustar o conceito à entrega de bens e de serviços, por parte do Estado, a menos que se assuma — definitivamente — que o modelo que se conhece no Brasil contemple apenas fórmulas de transferência de renda.

A justiça fiscal sugere também distributividade porque engendra a distribuição de encargos entre todo o corpo social. Reconheça-se, no entanto, que há sobrecarga de quem economicamente menos portentoso, de onde o princípio da regressividade. Critérios ad hoc de seletividade não enfrentam o problema do outorga de maior encargo relativo e real para os mais pobres, o que justifica, entre outros, retórica constitucional que dispõe que, sempre que possível, os impostos devam ter caráter pessoal e que seriam graduados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte.

O critério é relacional. Por óbvio, deve ser sempre aferido em relação a alguma coisa ou a alguém; busca-se realidade proporcional e simétrica entre situações tributáveis e sujeitos passivos.

A justiça fiscal sugere ainda repressividade porque o não recolhimento voluntário de tributos, de todos exigidos, demanda enérgica atuação do Estado. Na hipótese de não recolhimento voluntário das obrigações tributárias há dois efeitos mefistofelicamente malignos. Refiro-me a desvios de concorrência e ao abuso do free-riding.

Nesse último caso o inadimplente se vale de serviços públicos sem ter contribuído, enquanto que naquela primeira hipótese o devedor pode praticar preços mais atraentes, porque expurga do quanto cobra a carga fiscal. Nas duas hipóteses, desvios de concorrência e free-riding, há necessidade de intervenção penal.

É esse o nó górdio que desafia qualquer reflexão a propósito da suspensão da exigibilidade do crédito tributário (e do interesse do Estado na persecução penal) nas hipóteses de adesão do réu a parcelamento, com recolhimento de fragmento da dívida. A justiça fiscal é uma justiça social porque promove socorro mútuo. A questão pode-se dimensionar de modo superlativo na gestão do sistema previdenciário, em sua quantificação atuarial, pagando-se o pensionista com recursos coletados do servidor ativo. Critérios de progressividade (comuns na tributação sobre a renda) podem fomentar mecanismos de cooperação e de realização de justiça social.

A justiça fiscal é uma justiça legal (locução nada eufônica que decorre da falta de traduzibilidade de legal justice) justamente porque informada pela reserva legal e pelo devido processo, em sua quantificação substantiva. Recolhem-se tributos porque a lei assim o determina. Discute-se o recolhimento do tributo, judicial ou administrativamente, nos exatos termos da lei e dos regulamentos. Tributação é matéria de lei, em sentido estrito.

A justiça fiscal é uma justiça equitativa, numa dimensão anunciada por John Rawls e recentemente retomada por Amartya Sen, no sentido de que uma imaginária razão pública deve nortear a formulação de nossas instituições para que estas possam — substancialmente — se revelarem como efetivamente justas.

A justiça fiscal seria, assim, um combinado de justiças distributivas, comutativas, repressivas, equitativas e legais. Seu exato termo médio consistiria na adequada distribuição de encargos, com a não menos adequada distribuição de resultados, informando instituições justas, punindo os desviantes, sempre, no também não menos importante contexto de leis devidamente discutidas e aprovadas. Justiça fiscal é indicativo de funcionamento de instituições democráticas.

Nesse último sentido, legal, acrescento que a conceituação de justiça fiscal é também um problema de legística — isto é, de estudo de qualidade de leis. A justiça fiscal exige normas que tenham qualidade, que não exijam altíssimos custos de aquiescência, tomando-se estes últimos pelo quanto se gasta para se cumprir as determinações das autoridades fazendárias. Retoma-se (e reformula-se) a clássica lição do moralista e economista escocês defensor do autointeresse como fator de crescimento econômico, Adam Smith, para quem o bom tributo seria aquele cujo recolhimento subtraísse recursos materiais, e não tempo e paciência de quem paga…

Um conceito de justiça fiscal exige, como premissa, que se defina que tipo de Estado se quer. Com um PIB de US$ 15 trilhões, os Estados Unidos da América têm carga fiscal de 28,40 % deste valor. A China, com PIB em torno de quase US$ 7 trilhões, contempla carga fiscal de 20% do referido valor. O Japão apresenta PIB em torno de um pouco mais de US$ 5 trilhões, com carga de 28,10%. A Alemanha apresenta PIB de pouco mais de US$ 3 trilhões, com carga muito maior, que chega a 39,20% do aludido PIB.

A França, com PIB de US$ 2,7 trilhões matiza carga tributária mais elevada ainda, que chega a 42,30%. A Índia, com PIB de cerca de US$ 1,8 trilhão, apresenta carga bem mais baixa, que gira em torno de 12,1%. O Brasil, em 2011, teria conhecido uma carga fiscal de 34,70 % de um PIB que ultrapassou US$ 2 trilhões.

A dependência do cidadão brasileiro para com o Estado é muito maior no Brasil do que é nos Estados Unidos. E é também superlativamente maior do que a dependência direta do chinês para com a China ou do indiano para com a Índia. Pode-se argumentar que uma ampliação de programas de transferência de rendas via tributação pode ter elevado a carga fiscal de 30,03 % do PIB brasileiro no ano de 2000 para os patamares atuais.

Por outro lado, oportuna a comparação de números de crescimento do PIB (ainda que não reflitam, de fato, o nível de vida da população de um país, como argumenta Amartia Sen), para efeitos de apreensão de um conceito de justiça fiscal. Se em 2012 a China pode crescer 8,2%, a Índia, 6,3% e os Estados Unidos apenas 2,0%, as diferentes cargas poderiam justificar os quase 35% do Brasil em relação a um crescimento (otimista) de 3,9%. Como?

Justifico. Programas de governo que impulsionam o país exigem recursos muito expressivos. Apenas na segunda versão do Programa de Aceleração do Crescimento (o PAC-2), concluiu-se 17,9% das ações em 2011, com o gasto aproximado de R$ 127 bilhões. Rodovias, aeroportos e portos teriam tomado R$ 6,1 bilhões. Geração e transmissão de energia, exploração e produção de óleo e gás, refino e petroquímica, gás natural e indústria naval teriam absorvido R$ 33,8 bilhões. Saneamento e prevenção de áreas de risco teriam exigido investimento de mais de R$ 100 milhões.

O programa Minha Casa Minha Vida, relativo à contratação de unidades habitacionais, financiamento, urbanização e cuidados com assentamentos precários teria exigido R$ 85,1 bilhões. Sistemas de esgotamento sanitário, água em áreas urbanas e eletrificação teriam exigido quase R$ 2 bilhões.

As inúmeras rubricas que a lei orçamentária de 2012 contempla demandam recursos expressivos. Há imperiosa necessidade de manutenção do refinanciamento da dívida pública mobiliária e de cuidados para com os encargos financeiros da União, como condição mesma de manutenção de estabilidade institucional, nacional e internacional.

Encargos para com a Previdência Social, transferências para estados, Distrito Federal e municípios, valores destinados aos vários ministérios (custeando respectivos programas), bem como aos demais poderes, demandam captação enérgica de recursos. O conceito de justiça fiscal, nesse contexto, a par de qualificar-se pelas várias formulações conceituais de justiça na tradição ocidental, deve, necessariamente, pautar-se também sobre reflexões relativas ao tamanho e funções do Estado que se espera, numa sociedade democrática, patrocinadora da inclusão social e da plena realização do ideário dos direitos humanos.

Conceituar-se justiça fiscal como mero tipo ideal weberiano, isolado da realidade que nos cerca, sem referências aos custos da ação política social, pode ser, no limite, um exagero de abstração teórica em desfavor da possibilidade de genuíno exercício de engenharia institucional.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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