Diário de Classe

Presidencialismo de coalizão, um velho dilema brasileiro

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18 de maio de 2013, 8h01

Spacca
Nas últimas duas semanas, discuti com os meus alunos de Ciência Política e Teoria do Estado, do primeiro semestre da graduação em Direito, o conhecido artigo de Sérgio Abranches intitulado Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro.[1] Para mim, é surpreendente pensar que, quando planejei pautar as discussões desse conjunto de aulas sobre o sistema de governo brasileiro a partir desse texto, o tema da Medida Provisória 595 (ou, simplesmente, MP dos Portos) sequer se projetava no horizonte político nacional nos termos que presenciamos nos últimos dias. Calhou de, em vários aspectos, as análises realizadas por Abranches ajudarem-nos a compreender o que se passa, institucionalmente, nesse delicado momento da relação entre o Legislativo e o Executivo.

Com efeito, embora o texto remonte ainda ao período constituinte (os editores notificam o seu recebimento para publicação em novembro de 1987) e fale por diversas vezes na tal “nova república”, seu conteúdo é, ainda, atual. Fato: a imprensa escrita em geral – já há algum tempo – faz referências ao termo cunhado por Abranches para descrever a especificidade do sistema de governo brasileiro: presidencialismo de coalizão. O embate entre o governo e a sua própria “base aliada” travado na Câmara dos Deputados para a aprovação do texto — cravado de reformas — representa bem o tipo de dilema institucional descrito por Abranches em seu artigo.

Afinal, como é possível compreender e interpretar o seguinte fato político: que o texto de uma Medida Provisória, apoiado integralmente inclusive por notáveis opositores do governo, encontrou obstáculos justamente entre aqueles que compõem a base de apoio desse mesmo governo; a garantia da tal “governabilidade”?

O texto de Abranches possibilita projetar uma resposta a essa questão que vá além do lugar comum: “isso é uma prova da incapacidade do atual governo no que tange à articulação política”. Na verdade, o problema em questão não se apresenta como um casuísmo ou uma particularidade do governo “x” ou “y”. Trata-se de uma questão estrutural, intimamente ligada à arquitetura de nosso sistema de governo. Sem embargo de que uma eventual inoperância do governo no que tange à articulação política possa ter agravado o problema no caso específico da aprovação da MP dos Portos. De todo modo, e isso deve ficar bem frisado, o problema é estrutural. E por quê?

Basicamente porque, segundo Abranches, o Brasil da “Nova República” e daquilo que já se projetava a partir dos trabalhos constituintes e que desaguaram na formatação do sistema com a Constituição de 1988 seria a única democracia contemporânea que definiria o seu sistema político a partir da conjugação de a) um “presidencialismo imperial” (ao estilo estadunidense); b) um modelo multi ou pluripartidário de organização dos partidos políticos; e c) um sistema de representação proporcional para a composição de uma das Câmaras do Poder Legislativo Federal.

A conjugação desses três elementos levaria à especificidade do modelo brasileiro, gerando um tipo específico de práticas políticas desenvolvidas para produzir maiorias (coalizões) aptas a garantir estabilidade para o governo realizar as reformas que considera necessárias e impedir aquelas que sejam contrárias ao seu projeto político. Haveria, no interior desse sistema, um verdadeiro dilema institucional na medida em que tais práticas tendem, em determinados momentos, a acirrar a tensão entre o Legislativo e o Executivo.

Abranches define da seguinte maneira o que seria o “nó górdio do presidencialismo de coalizão”: “Um sistema caracterizado pela instabilidade, de alto risco e cuja sustentação baseia-se, quase exclusivamente, no desempenho corrente do governo e na sua disposição de respeitar estritamente os pontos ideológicos ou programáticos considerados inegociáveis, os quais nem sempre são explicita e coerentemente fixados na fase de formação da coalizão”.[2]

O ponto aqui abordado pela interpretação de Abranches pode ser descrito de forma simples: para garantir apoio da maioria congressual, o Presidente da República precisa negociar com um Congresso composto por um grupo heterogêneo de partidos, que representam uma esfera também heterogênea de interesses, sendo que essas negociações acontecem, geralmente, a partir do chamamento das principais forças políticas para comporem o governo a partir do assentamento em uma das cadeiras que guarnecem o “gabinete de ministros”.

Posteriormente, a manobra estende-se também para o preenchimento de cargos de segundo escalão. Nesse sentido, trava-se um acordo e forma-se uma coalizão que possibilitará alguma estabilidade para a ação governamental. Todavia, como a pauta que compõe esse acordo não é claramente definida, os termos podem ser revistos de tempos em tempos e, nesse caso, a relação do Executivo com o Legislativo pode apresentar dificuldades que, dependendo do grau de divergências, pode chegar a bloquear ações importantes do governo. O espaço compreensivo que projeta uma tal interpretação, porém, é composto por elementos mais complexos.

Deve-se ter em mente, por exemplo, que a necessidade de composição de maiorias é um ponto central para o governo das democracias contemporâneas. O ponto de estofo da questão, ou o “nó górdio” de que fala Abranches, é que, no nosso modelo, a técnica de formação dessas maiorias governistas encontra-se prisioneira dos dilemas do presidencialismo de coalizão. Sua análise aborda diferentes momentos e tópicos discursivos.

Em primeiro lugar, o texto de Abranches procura se posicionar diante de uma questão muito em voga na época da Constituinte e da “Nova República”: que o dilema institucional brasileiro, na ocasião, aparecia em face da “proliferação excessiva de partidos” e a formação de um caótico multipartidarismo. Nesse caso, o autor procura desconstruir tal argumento afirmando que o multipartidarismo representa, na verdade, o resultado da fragmentação e da heterogeneidade que constituem o tecido social brasileiro. A clivagem de interesses políticos, econômicos, sociais, regionais, culturais etc. implicaria, necessariamente, pluripartidarismo.

Além disso, para ele, o próprio sistema eleitoral atuaria como um “regulador natural” no processo de seleção das siglas, “incentivando ou desincentivando a formação de novos partidos, na medida em que torna os custos, em votos, proibitivos para legendas de ocasião”.[3] Afirma, ainda, que as regras do sistema de representação proporcional como estão estabelecidas entre nós — principalmente o cálculo do quociente eleitoral e o modo de distribuição de sobras — “são mais que eficientes, nesse sentido, que qualquer coerção legal”.[4]

Claro que, no momento em que escreveu o texto aqui examinado, Abranches não havia presenciado os acontecimentos recentes que colocaram em xeque o nosso sistema eleitoral de representação proporcional e os problemas decorrentes da chamada “infidelidade partidária” ou das chamadas “legendas de aluguel”.

De todo modo, seu texto faz uma defesa tanto do multipartidarismo quanto do sistema de representação proporcional. Para corroborar sua tese, o autor faz uma análise comparativa com relação ao modo como se organizam os sistemas políticos da maioria das democracias estáveis do pós-guerra. De sua análise, conclui que os casos de muitas democracias europeias que se apresentam com características sociais heterogêneas e fragmentadas produzem um sistema multipartidário conjugando-o com o sistema de representação proporcional. Dessa forma, nosso dilema institucional não estaria nem no multipartidarismo, nem no sistema proporcional. Nos termos defendidos por Abranches, “compartilhamos as principais características de ambos com a maioria das democracias estáveis do mundo”.[5]

O ponto nevrálgico da questão, estaria, então, em outro lugar: na relação do modelo presidencialista — do tipo imperial — com esses elementos que compartilhamos com as democracias estáveis do pós-guerra.

Segundo o próprio texto demonstra, a maioria das democracias estáveis que estabelecem o multipartidarismo e o sistema de representação proporcional são sistemas parlamentaristas de governo, no qual o chefe de governo responde por seus atos diretamente ao parlamento. Existem também democracias que são “presidencialistas”, multipartidárias, e que preveem regras de representação proporcional para a eleição do legislativo. Entretanto, nesses casos, o presidencialismo não é do tipo imperial, ou norte-americano. Trata-se, geralmente, de sistemas híbridos — presidencialismos de gabinete, como às vezes menciona o autor —, que submetem o executivo a algum tipo de controle direto do Parlamento, seja porque, em alguns casos, existe a previsão da dissolução do gabinete do executivo pelo próprio parlamento (como acontece na Finlândia); seja porque o Executivo pode ser controlado por um órgão formado a partir de membros eleitos pelo parlamento (o exemplo citado seria a Suíça e o seu Conselho Federal).

No caso do Presidencialismo de tipo imperial, o presidente da República não responde diretamente pelos seus atos ao Congresso Nacional. A separação entre Congresso e Presidente é bem mais rígida, de modo que o Congresso não participa da composição ou destituição do gabinete de ministros. Tais tarefas são exclusivas do Presidente da República.Assim, o modo de se formar as maiorias através de coalizões apresenta características muito específicas e distintas, se compararmos o primeiro com o segundo caso.

No caso das democracias europeias, mesmo naquelas que possuem um sistema “presidencialista”, a composição da coalizão dá-se a partir da efetiva participação do legislativo, contando, inclusive, com a possibilidade, em alguns casos, de dissolver o gabinete de ministros. Nesse caso, impasses graves que possam vir a colocar em xeque a estabilidade institucional do país diante do acirramento da tensão entre Legislativo e Executivo podem ser resolvidos estruturalmente, a partir da formação de uma nova maioria.

Já no caso do nosso “presidencialismo de coalizão”, como o presidente constitui isoladamente o gabinete de ministros, eventuais irritações na relação com a coalizão podem gerar um impasse duradouro que, arrastando a crise por um tempo excessivo, leva a instabilidades institucionais sérias.

Evidentemente, o dilema pelo qual passou o governo para a aprovação da MP dos Portos na Câmara dos Deputados é reflexo de nosso “presidencialismo de coalizão” e das inúmeras dificuldades de lidar com os acordos firmados e que dão sustentação à base aliada: as insatisfações eventuais dos parceiros de coalizão podem levar a constantes reajustes dos termos que selaram a composição da maioria.

Mas talvez exista um fator adicional que dá um toque maior de complexidade à realidade atual. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo do último domingo, o cientista político e professor do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) Carlos de Melo coloca um elemento adicional nesse caldo do presidencialismo de coalizão que me parece pertinente.

Questionado sobre o caráter “vitorioso” do presidencialismo de coalizão como fórmula que conferiu estabilidade à democracia no país, Melo diz concordar com a forma como se vem trabalhando o tema no Brasil. Para ele, o presidencialismo de coalizão, de fato, forma maiorias. Evidentemente, porém, a formação dessa coalizão tem custos. Distribuem-se espaços no governo, mas os partidos votam de acordo com os objetivos do Executivo. Assim, consegue-se implementar uma agenda política. Mas, deveríamos atentar para um outro fator: a permanência de um mesmo governo por muito tempo no poder pode gerar consequências novas nessa equação. Nesse caso, são elevados os níveis de possíveis reivindicações novas por parte das forças políticas que compõem a coalizão. A qualquer momento, os partidos aliados podem apresentar um novo pleito ao Executivo, pedir uma revisão do acordo firmado, reclamar maior representatividade e maior “poder de fogo” dentro das decisões capitais tomadas pelo governo.

Talvez esses elementos todos consigam oferecer uma explicação para aquilo que presenciamos essa semana com relação à conversão em lei da MP dos Portos. Talvez seja possível entender, em termos institucionais, o que faz com que um governo — que conta com uma base de apoio na câmara que soma mais de 400 deputados, a maior do período pós-1988 — não seja capaz de aprovar com facilidade uma reforma considerada estratégica e que necessitaria de um simples quórum de maioria de votos para alcançar aprovação.

O impasse que teve lugar no caso da MP dos Portos, e que quase custou a sua caducidade, coloca às claras a delicada relação que existe entre executivo e legislativo no âmbito desse nosso “presidencialismo de coalizão”. É importante dizer isso porque, em tempos em que a moda é discutir a relação entre Congresso e Supremo, às vezes se esquece que o Executivo também faz parte desse jogo de pressões e retrocessos, característicos do funcionamento de um Estado Democrático.

A preocupação é que, em casos limítrofes, como o da votação da MP dos Portos, o Executivo acaba ficando refém do Legislativo. Em outros, o Executivo acaba por cooptar o Legislativo a partir de troca de favores nem sempre bem esclarecidas do ponto de vista democrático (no caso da votação da mesma MP, o governo liberou R$ 1 bilhão em verbas de emendas ao orçamento para conseguir o apoio de determinados parlamentares).

É sempre bom lembrar que, no caso dessas disputas que levam a intromissões indevidas do executivo no legislativo e vice-versa, não temos um mecanismo institucional para responder ao problema. O equacionamento da questão acaba sendo reservado ao plano da política tupiniquim. Nas democracias parlamentares europeias, o Parlamento dissolve o gabinete do primeiro ministro. No presidencialismo imperial norte-americano, investidas indevidas do Executivo no Legislativo ou do Legislativo no Executivo podem ser submetidas ao crivo da Suprema Corte.[6]

Entre nós, o Supremo Tribunal Federal não possui competência similar. No seu texto, Sérgio Abranches chamava a atenção também para esse fator. Dizia ele que o presidencialismo de coalizão necessitava de um mecanismo adicional de arbitragem que servisse para a defesa institucional do regime — seja para garantir a autoridade presidencial, seja para preservar a autonomia parlamentar.

Por certo, as polêmicas que se verificam nas relações entre legislativo e executivo acabam, ao fim e ao cabo, batendo às portas do Supremo Tribunal Federal, como aconteceu, aliás, com a própria MP dos Portos. E aí voltamos ao círculo que culmina nas questões que hoje tanto estão na moda em face da pretensa “crise institucional” que se instalou entre o Judiciário e o Legislativo. Mas, é de se frisar, nesses casos a Corte atua como guardiã da Constituição e não como árbitro da relação entre presidente e Congresso.

Ao final, o governo conseguiu aprovar a reforma pretendida. Não da forma como a projetara. Sofreu perdas no processo. Estima-se que, agora, a Presidência da República vetará trechos modificados pelos deputados no que tange ao conteúdo original da MP. Outros capítulos virão. Em todos eles é possível prever que uma nota continuará soando de forma constante: o velho dilema institucional que caracteriza o presidencialismo de coalizão.


[1] Cf. ABRANCHES, Sérgio H. H. Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. In: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34.
[2] ABRANCHES, Sérgio H. H, op., cit., p. 27.
[3] ABRANCHES, Sérgio H. H, op., cit., p. 12.
[4] ABRANCHES, Sérgio H. H, op., cit., p. 12.
[5] ABRANCHES, Sérgio H. H, op., cit., p. 19
[6] Questão essa que remonta ao início da democracia americana. De fato, em seu Democracia na América, Tocqueville descrevia as competências da suprema corte nos seguintes termos: “Nas mãos dos sete juízes federais repousam incessantemente a paz, a prosperidade, a própria existência da União. Sem eles, a Constituição é obra morta; é a eles que recorre o Poder Executivo para resistir às intromissões do corpo legislativo; a legislatura, para se defender das empreitadas do poder executivo; a União para se fazer obedecer pelos Estados; os Estados, para repelir as pretensões exageradas da União; o interesse público contra o interesse privado; o espírito de conservação contra a instabilidade democrática. Seu poder é imenso, mas é um poder de opinião. Eles são onipotentes enquanto povo aceitar e obedecer a lei; nada podem quando ele a despreza. Ora, a força de opinião é a mais difícil de empregar, porque é impossível dizer exatamente onde estão seus limites. Costuma ser tão perigoso ficar aquém deles, quanto ultrapassá-los”. Cf. Tocqueville, Alexis de. A Democracia na América. Livro 1. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 169/170.

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