Poder de investigação

Pensamento de Ferrajoli não combina com restrição ao MP

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13 de maio de 2013, 18h20

Recentemente, estava ouvindo uma discussão a respeito do poder de investigação direta do Ministério Público, discutido na PEC 37 (a famigerada PEC da impunidade), no qual se referia que inclusive Luigi Ferrajoli seria contrário a essa tese.

Ferrajoli é conhecido como um verdadeiro “pai do garantismo penal” no Brasil. Sem dúvidas, suas ideias fornecem uma crítica útil às arbitrariedades do sistema penal, tão férteis em terrae brasilis, ainda que eventualmente devam ser contemporizadas (como sua radical posição contrária a qualquer espécie de prisão antes da condenação criminal). Todavia, suas posições merecem sempre respeito e consideração.

Motivado pela provocação, reli Ferrajoli e verifiquei que não há sustentação em seu trabalho para essa conclusão. Era tudo bravata e desconhecimento (ou má-fé argumentativa)… As citações abaixo são de: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: RT, 2002.

Na visão de Ferrajoli, o juiz deve afastar-se das atividades de investigação criminal e a polícia judiciária deve estar subordinada ao Ministério Público, bem como se deve conceder poderes de investigação à defesa; todavia, a polícia não pode ser independente do Ministério Público, como uma garantia contra inquisições orientadas pelo Poder Executivo. Conferir: “É necessário, antes de tudo, que a função judicial não seja minimamente contaminada pela promiscuidade entre os juízes e os órgãos de polícia, sendo que estes últimos devem ter relações — de dependência — unicamente com a acusação pública. […] A segunda condição concerne à defesa, que deve ser dotada da mesma dignidade e dos mesmos poderes de investigação do Ministério Público. […] Dotado dos mesmos poderes da acusação pública sobre a polícia judiciária […]”; Ferrajoli, 2002:466-467.

E nas notas de rodapé respectivas, acrescenta Ferrajoli (2002:525, ref. nota n. 186), citando Carrara, que, se o condutor das investigações estiver numa relação de dependência com o Poder Executivo, ele será sempre visto como um inquisidor, sendo que a garantia de imparcialidade das investigações criminais é que elas sejam conduzidas por um Ministério Público independente, que é “sempre indiferente aos resultados das duas pesquisas, contanto que tais resultados se mostrem conformes à verdade exterior”.

O ponto que Ferrajoli critica em relação ao Ministério Público, eventualmente assimilando-o a um inquisidor, é quando ele tem o poder de realizar restrições de direitos fundamentais, ou o poder de conduzir diretamente a fase judicial de produção da prova, ambas funções do juiz, e não a condução da fase preliminar de investigação, já que, em seu pensamento, um sistema garantista exige que a polícia esteja em dependência concomitante da “magistratura de acusação” e da “magistratura de defesa”. A crítica de Ferrajoli é, portanto, sobre o fato de o Ministério Público eventualmente conduzir a investigação e depois essas provas da investigação serem utilizadas para fomentar a condenação, o que equivaleria indiretamente ao MP conduzir diretamente a instrução processual. Em outros trechos ele critica ferrenhamente a possibilidade de a polícia conduzir investigações sem a direção do Ministério Público, como uma forma de "instrução policialesca" (2002:638), concluindo ser essencial a participação do Ministério Público na fase investigativa.

É verdade que Ferrajoli, 2002:617, advoga ser recomendável que a polícia judiciária seja “dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender”. Todavia, deve-se compreender que, no pensamento de Ferrajoli, o órgão do “Poder Judiciário” do qual a polícia deve depender, na fase das investigações preliminares, é a “magistratura de acusação”, pois o juiz não deve se imiscuir na fase investigativa (Ferrajoli, 2002:466).

Recentemente, durante uma visita ao Brasil, Ferrajoli foi diretamente questionado sobre sua opinião em relação à compatibilidade entre o Ministério Público conduzir investigações criminais diretamente e o seu sistema garantista. O pai do garantismo penal não titubeou em apoiar o Ministério Público: “Eu acredito que não existem contradições entre o papel de investigação, de defesa da segurança, e o papel garantista em relação aos direitos, no sentido em que somente a aplicação das garantais impostas também ao Ministério Público, não somente no plano constitucional, mas no plano de investigação, somente o respeito às garantias de defesa, de garantias processuais, muito rígidas, as provas, as contraprovas, podem assegurar a verificação da verdade, uma verificação plausível da verdade, e das funções de segurança. Porque a segurança depende da aplicação da eficiência e esta, por sua vez, existe e é válida quando possui condições de verificar a verdade processual […]” (apud CHAVES, Cristiano. Temas atuais do Ministério Público. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2012, p. 717).

Vejam como se pega um trecho e se distorce o contexto. Atualmente, a PEC 37 tenta proibir o Ministério Público de participar diretamente da fase investigativa, e o PLC 132/2012 (ou, ao menos, uma possível interpretação equivocada de sua redação excessivamente aberta), busca dar independência ao delegado de Polícia, transformando-o quase em uma "magistratura de investigação", que decidiria sobre os pedidos de investigação do Ministério Público e da defesa, o que seria o corolário das “funções para-judiciais da polícia” (tão criticadas por Ferrajoli).

O sistema constitucional brasileiro compartilha das mesmas preocupações de Ferrajoli quanto aos abusos policiais e não se coaduna com essas teses que procuram manietar o Ministério Público. A Constituição Federal, em seu artigo 129, VI, expressamente afirma que o Ministério Público pode conduzir investigações e o STF já o confirmou à exaustão, como sendo corolário de sua função de titular da ação penal e de controlador externo da polícia. Acima de tudo, o Ministério Público é fiscal da ordem jurídica, vocacionado a reduzir a distância entre o projeto constitucional (de direitos para todos) e a realidade brasileira. E deve ter ferramentas para tanto.

Segundo Foucault, infelizmente não é o saber que gera o poder, ao contrário, é o poder que gera um saber funcional à manutenção do exercício do poder. A que conjunto de “forças” interessa que o Ministério Público não realize investigações criminais? Especialmente nos casos de corrupção, crimes praticados por detentores do poder econômico, e os crimes praticados pelos próprios policiais? À sociedade é que não é… Como diria Ferrajoli: capisce?

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