Diário de Classe

A persistência do fator conciliador e a PEC 33

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4 de maio de 2013, 8h00

Spacca
A imprensa informou, na última terça-feira (30/4), que a cúpula do Congresso, representada pelos presidentes das respectivas casas, Renan Calheiros e Henrique Alves, e o Supremo Tribunal Federal, por meio do ministro Gilmar Mendes, acertaram uma “trégua” para a crise institucional que aparentemente chegou ao paroxismo na semana passada em face da aprovação, pela CCJ da Câmara dos Deputados, da chamada PEC 33/2011 e com o deferimento, da lavra do ministro Gilmar, de medida liminar para suspender o processo legislativo do PL 4.470/2012 — que, no Senado, passou a ser referido como PLC 14/2013.

Segundo o noticiário, em uma reunião de portas fechadas, os parlamentares e o ministro definiram um acerto para o imbróglio. De um lado, a Corte promete agilidade na apreciação plenária da liminar que travou o trâmite do projeto. De outra banda, Renan Calheiros e Henrique Alves sinalizaram que a PEC 33 não deve chegar a aprovação no Congresso Nacional. O clima da reunião foi definido pelos congressistas como “cordial e distensionado”. Renan Calheiros teria dito, ainda, que “a bola está no chão”, em uma peculiar metáfora futebolística.

Esse acontecimento representa algo que pode ser tido como uma característica recorrente da política nacional: em vez de enfrentar de forma efetiva o problema, prefere-se partir para uma conciliação — geralmente ocorrida entre quatro paredes — sem transparência e ampla participação da sociedade. Poucos decidem. Muitos obedecem. Difícil não lembrar aqui das manobras realizadas pelo “estamento burocrático” para acomodação dos interesses de um certo patronato que tende a protagonizar a ação política brasileira, algo que aparece claramente em Raymundo Faoro e seu Os Donos do Poder.

É de uma clareza solar — como dizia um professor da minha graduação — que o mal-estar gerado pela aprovação da PEC 33 pela CCJ da Câmara tem raízes mais profundas do que o “processo do mensalão”. O papel preponderante — e absolutamente fundamental, diga-se de passagem — que o Supremo Tribunal Federal vem desempenhando desde a promulgação de 1988 e o constante descrédito que vem sendo impingido ao Congresso, dão um colorido transcendente a esse debate. Não me parece correto ideologizar a questão, partidarizando o problema.

Muito se escreveu sobre a PEC 33. Esse mesmo Diário de Classe já apresentou uma importante interpretação para a questão que se coloca na linha de frente do problema (leia aqui). A ConJur publicou muitos outros textos, como o excelente artigo assinado por Marcelo Cattoni, Alexandre Bahia e Dierle Nunes (leia aqui). Concordo com as questões que são levantadas nesses textos. Porém, gostaria de lançar luz sobre um outro aspecto.

Não quero apenas castigar a PEC 33. Quero analisá-la de uma forma desassombrada, sem nenhum tipo de maniqueísmo. É preciso afirmar: nem tudo aquilo que a PEC 33 pretende/pretendeu debater me parece tão fora de propósito. Uma tentativa de devolver ao Congresso algum tipo de controle sobre a edição de Súmulas Vinculantes por parte do Supremo Tribunal Federal (com a alteração do artigo 103-A da CF) é uma discussão interessante. Talvez, se ficássemos no nível de discussões sobre uma reforma do procedimento de adoção de súmulas, a discussão poderia ser feito no nível da lei ordinária. De todo modo, minha opinião sobre as Súmulas Vinculantes é ainda mais radical do que aquilo que PEC 33 pretende/pretendeu fazer sobre o tema. Partilho da opinião de Georges Abboud de que o melhor seria se a proposta pretendesse extinguir de vez um tal instituto (desde a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004, o artigo 103-A, introduzido por tal Emenda, se apresenta como inconstitucional), do mesmo jeito que Portugal extinguiu o Instituto dos Assentos (um paralelo lusitano da experiência das Súmulas).

Mas não há como negar que a PEC 33 possui momentos divertidíssimos. A tentativa de incluir um parágrafo 2º-A no texto do atual artigo 102 da Constituição é um ponto alto. A pretensão é, como já se sabe, submeter ao crivo do Congresso as decisões de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal que tenham por objeto Emendas à Constituição. Uma situação deveras pitoresca para um ambiente de Controle Concentrado de constitucionalidade. Mas a situação chega a beirar o cômico quando, na parte final do dispositivo de lege ferenda, se lê que, no caso de o Congresso Nacional apresentar manifestação contrária, pelo mesmo quórum que se exige para aprovação dos Projetos de Emendas, a decisão deverá ser submetida à “consulta popular”.

Tivesse eu ouvido isso de alguém, não acreditaria. Mas não ouvi. Eu li. Está lá, no texto da proposta… Fico imaginando um professor de Direito Constitucional Comparado de alguma instituição de ensino estrangeira tentando explicar para os seus alunos essa espécie de “controle plebiscitário de constitucionalidade” que, se fosse aprovado, só existiria no Brasil. Poderia o professor, em um exercício de grande abstração, tentar aproximar um tal mecanismo do chamado legislative override que existe no direito canadense.[1] Mesmo assim, a referência estaria fadada ao fracasso porque, no caso canadense, a consulta tem lugar para averiguar a posição popular no que tange à inauguração de um novo processo legislativo que viria a debater novamente a matéria de lei cuja inconstitucionalidade fora reconhecida pela Corte Constitucional. Mas não se submete a decisão de inconstitucionalidade ao crivo popular. Uma tal medida, se viesse a existir, seria, efetivamente, uma “jabuticaba brasileira”.

Um outro ponto que me obriga a efetuar algum tipo de manifestação sobre a PEC 33 diz respeito ao texto apresentado como justificativa pelo autor do projeto. Ali se faz uma distinção entre judicialização da política e ativismo judicial parecida com aquela que já tive a oportunidade de apresentar nesse Diário de Classe. Evidentemente que o uso feito pelo autor do projeto quer agregar um elemento que não se apresenta no horizonte de nossas pesquisas: a necessidade de um controle da atividade jurisdicional não significa subordinação do Supremo Tribunal ao legislativo. Pelo contrário, é justamente pelo papel estratégico desempenhado pela jurisdição constitucional no contexto das democracias contemporâneas que devemos adotar uma espécie de vigília hermenêutica das decisões. O controle deve ser encaminhado nos termos de um Teoria da Decisão, tal como propõe Lenio Streck, e não por meio de intervenções políticas de outros poderes.

Também pode ser considerado um fator positivo que acompanha o ambiente jurídico atingido pela PEC 33 a colocação de uma pauta de debates que, já há muito tempo, vem sendo abordada nas pesquisas que realizei, principalmente durante o curso de Doutorado, integrando o grupo coordenado por Lenio Streck.

A ferida que se abriu a partir da votação da PEC 33 pela CCJ da Câmara produz efeitos não apenas na relação entre o Supremo Tribunal e o Congresso Nacional. Ela joga luz também sobre outras questões que se apresentam, por exemplo, na discussão dos novos Códigos que pretendem alterar o arcabouço processual brasileiro. Tais códigos seguem na linha das últimas reformas processuais parciais que, a partir do discurso da celeridade processual, da eficiência e da gestão, concentraram em torno de um “protagonismo judicial” seus principais esforços de atuação.

Se o judiciário é forte no Brasil de hoje, isso se deve não apenas à atuação do STF, mas, também, ao poder Legislativo que aprovou todas essas reformas que reforçaram ideias como o livre convencimento do juiz (há um texto, escrito em coautoria com Lenio Streck e André Karam Trindade, que discute em pormenores o ponto destacado no texto). Tais reformas também transformaram os tribunais superiores — principalmente o STF e o STJ — em Tribunais que se pronunciam, quase que exclusivamente, sobre teses e não sobre discussões concretas. Alienando-se da análise de casos concretos, o judiciário acaba por ser desviado daquilo que representa o âmago de sua atuação: o jus dicere, que ocorre, privilegiadamente, nos casos concretos e não na análise de teses.

A PEC 33, nesse sentido, poderia servir como um pretexto para que todo esse debate fosse levado à cabo, de forma transparente e democrática, pela sociedade brasileira. Seriam consultados os membros do Judiciário, setores da sociedade civil, bem como essa classe tão esquecida: os professores. Quem foi ouvido sobre o mérito da PEC 33? Quais oportunidades de alterações no texto proposto foram consideradas? No Brasil, preferimos jogar a sujeira para debaixo do tapete do que enfrentar o duro trabalho que é a sua efetiva limpeza. A tendência conciliatória parece ter prevalecido. Com isso, perdemos a possibilidade de ter um ganho efetivo com o enfrentamento frontal da questão: amadurecermos como democracia.


[1] Agredeço a Georges Abboud pela lembrança desse instituto canadense. Legislative override, ou Notwithstanding clause, constituem designações doutrinárias para descrever o dispositivo na Seção 33 da Canadian Charter of Rights and Freedoms, nos seguintes termos:
33. (1) Parliament or the legislature of a province may expressly declare in an Act of Parliament or of the legislature, as the case may be, that the Act or a provision thereof shall operate notwithstanding a provision included in section 2 or sections 7 to 15 of this Charter.
Marginal note: Operation of exception
(2) An Act or a provision of an Act in respect of which a declaration made under this section is in effect shall have such operation as it would have but for the provision of this Charter referred to in the declaration.
Marginal note: Five year limitation
(3) A declaration made under subsection (1) shall cease to have effect five years after it comes into force or on such earlier date as may be specified in the declaration.
Marginal note: Re-enactment
(4) Parliament or the legislature of a province may re-enact a declaration made under subsection (1).
Marginal note: Five year limitation
(5) Subsection (3) applies in respect of a re-enactment made under subsection (4).

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