Ideias do Milênio

O global é construído dentro dos Estados nacionais

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3 de maio de 2013, 8h10

Entrevista concedida pela socióloga holandesa Saskia Sassen à jornalista Leila Sterenberg, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30. 

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A pesquisa sociológica às vezes confirma teorias. Seja a respeito de como nos organizamos na família, no lazer e no trabalho, como ocupamos o território ou como nos movimentamos em escala planetária. Mas as ciências sociais podem questionar verdades aparentes e inverter a lógica do senso comum. Surgem então constatações como a de que o global não abre mão do nacional. Pelo contrário, os países contribuem individualmente pra compor as engrenagens de um mundo contemporâneo comumente visto como entidades sem pátria nem fronteiras. Da mesma forma, cai por terra a ideia de que cidades globais são concorrentes. Elas seriam na verdade complementares, já que foram trajetórias diferentes que levaram cada metrópole à internacionalização. Conceitos como esses são produto do trabalho de Saskia Sassen. Nascida na Holanda, criada na Argentina e radicada nos Estados Unidos, onde é professora da Universidade de Columbia. Crítica das altas finanças, que, segundo ela, ganham mesmo quando todos os demais saem perdendo, e entusiasta da contribuição que a biologia pode dar ao gerenciamento urbano, Saskia Sassen esteve no Rio de Janeiro, onde conversou com o Milênio.

Leila Sterenberg — O global transcende as fronteiras dos Estados nacionais, mas, em parte, emerge e opera dentro dessas fronteiras nacionais. Isso é muito interessante e é algo que a senhor descobriu em sua pesquisa. Usando suas palavras: “Grande parte do global ainda usa uma roupagem nacional.” A senhora pode nos dar exemplo disso?
Saskia Sassen — Bem, há vários exemplos. Eles são todos um pouco elusivos, mas quando o sistema financeiro cresceu, se tornou poderoso, ele precisou de apenas duas coisinhas por parte de todos os governos nacionais que são parte do sistema econômico global. Isso não inclui necessariamente a Coreia do Norte. Eles não queriam saber da Coreia do Norte. Mas uma das coisas que eles queriam era controlar a inflação, custasse o que custasse, ainda que isso significasse a perda de empregos. Essa coisinha foi implementada através dos governos nacionais, tornando-se uma política nacional, mas, na verdade, foi ditada pelo sistema financeiro global. Isso representou um giro de 180 graus nas políticas de todas as democracias do planeta, de todos os sistemas eleitorais, que antes privilegiavam o aumento da taxa de emprego, ainda que isso gerasse inflação. O sistema financeiro precisava dessa pequena grande mudança, mas ela deveria partir dos governos nacionais. Isso é um exemplo. Assim, eles permitiram o crescimento do sistema financeiro global. Para mim, isso é global penetrando no âmago do nacional, uma intervenção global, no caso, com cara de política nacional. Essa era uma das coisas que eu queria dizer e que talvez seja uma das mais elusivas. Mas meu argumento principal é o de que, em grande parte das vezes, o global é construído dentro dos Estados nacionais. Outro bom exemplo sobre esse assunto de como o global se forma nos Estados nacionais é o fato de que, por um lado, não há a entidade “empresa global”. Você sabe que não existe essa pessoa jurídica. A União Europeia tentou desenvolver a pessoa jurídica “empresa europeia” durante décadas, e não deu certo. Ao mesmo tempo, nós sabemos que não há mais de 400 mil empresas que se comportam como se fossem globais. Como se preenche a lacuna entre esses dois fatos? Todas as empresas são nacionais ou, na melhor das hipóteses, binacionais. Então, o que tem acontecido é que, um governo após o outro, tem alterado um item desta lei, um item daquela, criando garantias de contratos, proteções ao direito de propriedade. Assim, em cada um desses diferentes países, há um espaço operacional para empresas que garante a elas o cumprimento dos contratos e a proteção da propriedade. E isso permite que elas se comportem com se fossem globais. Essa tendência, esse espaço, estão dentro dos Estados nacionais. Quando você se afasta e observa o global, há um conjunto bem homogêneo de proteções, mas que se unem através de instrumentos enormemente diferentes. Então, os governo nacionais e a população de um país podem continuar pensando que o nacional é nacional, pois o global é homogêneo e padronizado, mas, na verdade, eles usam instrumentos bem específicos. Eu acho isso tudo muito interessante. Eu sinto que preciso descobrir, que preciso cavar, para encontrar esses instrumentos.

Leila Sterenberg — A senhora escreveu um artigo — ou pode ter sido uma entrevista — em que afirma que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são entidades facilitadoras e que fazem apenas o básico. Então, eles não têm mais a importância que tinham?
Saskia Sassen — Não, eles não têm mais a importância que tinham. Eles fizeram o trabalho árduo. Agora, o trabalho é de “limpeza”. O FMI voltou à cena para fazer a “limpeza”. Ele está ajudando e tornando possível a implementação da austeridade fiscal na União Europeia, por exemplo. O FMI anda bem pobre. Eu sempre pensei nele como algo com várias facetas. Assim, quando a década de 1980 começou, com essa era global, foi preciso padronizar os padrões, pois um mundo global precisa disso. Padrões de tudo, até mesmo das tomadas. Quando se terceiriza, você precisa padronizar a maneira como irá fazer as tomadas. O problema do Dreamliner foi que terceirizaram demais. Dreamliner é o avião da Boeing. Quando todas as peças chegaram, eles não conseguiram montá-las. Eles exageraram na terceirização. Mas a questão aqui é que o FMI e a OMC desempenharam papéis cruciais na mudança dos padrões. Os padrões do que significa administrar uma boa economia ou administrar bem uma economia. Então é necessário ter alguns padrões. É preciso controlar a inflação, antes de tudo, o que ajudou o projeto das finanças globais. É preciso liberalizar o comércio, abrir a fronteiras, proteger as empresas estrangeiras e dar condições para que funcionem. Isso foi uma tarefa extraordinariamente importante. No início dos anos 2000, eles a tinham concluído e estavam sem dinheiro. Eles tiveram que fechar escritórios, não tinham como pagar o aluguel. Eles tiveram que demitir economistas. Quando a Argentina entrou em crise, eles imploraram para que o país aceitasse um empréstimo. Porque eles sobreviviam de empréstimos. E as pessoas não sabiam como o FMI estava pobre, quantos escritórios eles fecharam e quantos economistas eles demitiram. Eles acham que o FMI é sempre o FMI, mas não. O FMI tem várias facetas e se adapta, ele é mutante. Mas a Argentina recusou — todos conhecem a história —, o que foi muito ruim para o FMI pois ele perdeu seu propósito. Assim, quando surgiu a preocupação com a austeridade fiscal, em 2007, o FMI voltou à ativa. Ele está muito pobre, não tem muito dinheiro, e tem que trabalhar com os governos como sempre. Mas agora ele está implementando essa austeridade fiscal, que, obviamente, tem sido alvo de muitas críticas. Não temos certeza de que ela vá funcionar. Eu não tenho a menor certeza, mas o papel dele está mudando. Outro aspecto desse grande poder Executivo, ou seja, esse grande poder conferido ao Executivo, como fica claro no caso dos EUA.

Leila Sterenberg — No Brasil, não?
Saskia Sassen — Não, porque vou falar dos drones.

Leila Sterenberg — A senhor escreveu sobre a política dos drones e disse que ela mostra que o Estado liberal não funciona mais. Foi algo que escreveu. É verdade que, ao lado da política do drones, nos EUA, há esse enorme sistema de vigilância. A senhora acha que ambos são distorções do Estado liberal e consequências desse excesso de poder nas mãos do Executivo?
Saskia Sassen — Eu acho. A lógica do sistema é muito peculiar. Não é que eles estabeleçam alvos. É tudo. Eles estão reunindo dados. Se o seu emprego normal deu algum problema, eles nem analisam os dados, eles só querem possuí-los. Assim, se aconteceu algum incidente, e você pode ligá-lo a alguém, então você vai verificar. Vai verificar quem você não conhece. Você sabe de uma pessoa de quem suspeitava, mas, quando verifica, essa pessoa também aparece no seu radar. Então todos esses dados têm alguma utilidade. A crítica que eu faço é: há algo de errado com isso? Todos nós, em território americano, de acordo com essa lógica, somos suspeitos. Você não é condenado, não é considerado culpado, é só suspeito. Esse é um passo necessário para que esse sistema funcione. Minha pergunta é: nós precisamos dessa imensa superestrutura de equipamentos e um milhão de pessoas com acesso a dados confidenciais? E ter acesso a esses dados é muito raro. Não é fácil. Nós precisamos de tanto para atingir o verdadeiro alvo? Há algo sobre essa lógica e é nesse sentido que eu digo que esse é um algoritmo errado. As finanças precisam de algoritmos para fazer o que fazem, e, de vez em quando, usa um errado, e temos alguma crise. Mas usar esse algoritmo, na segurança nacional, não está certo. E ligo isso a esse excesso de poderes que não precisam ser justificados. E isso é um poder informal. Não é o diagrama de um Estado liberal. Não vemos isso. É um poder que não precisa se justificar e faz parte do Executivo. O Executivo engloba o Pentágono, o governo, o Banco Central etc. Essa é a minha visão. Eu não quero acabar com o Estado liberal, mas eu acho que ele é muito mais complexo.

Leila Sterenberg — Exato. E essa é a minha pergunta. O que vem a seguir, se há essa crise? É interessante uma pergunta que a senhora fez em algum lugar. “Onde ou quando o sensorial…?”
Saskia Sassen — Eu adorei. Posso levar você comigo nas minhas viagens? Você sabe tudo sobre o que eu escrevi. Mas é verdade. Isso é outra história.

Leila Sterenberg — Mas isso é lindo. O sensorial é diferente da censura, mas, ao mesmo tempo…
Saskia Sassen — Exato. Há uma diferença. A mesma capacidade pode lhe dar oportunidades de se conectar, de detectar, digamos, gás metano… O gás tem cheiro, mas o que quer que não tenha. É algo positivo. Você pode querer se livrar de um rato em Nova York. Mas, ao mesmo tempo, essa capacidade pode ser um mecanismo de vigilância. Nós estamos nessa região ambígua. Mas, mais uma vez, eu acho que um Estado liberal produtivo, mesmo quando é pobre, é algo mais complexo do que a mais rica das empresas multinacionais. Porque ele precisa lidar com muitas lógicas diferentes. Um Estado liberal produtivo é um Estado onde, no fundo, há uma zona de combate entre diferentes maneiras. Devemos proteger o trabalho? Devemos proteger as finanças? É um enorme desafio. E ele precisa continuar funcionando, mesmo com todas essas contradições. Cada unidade do Estado liberal tem sua própria agenda e vai lutar por ela. E nenhuma empresa tem isso. Uma empresa tem uma lógica, uma só lógica. Então precisamos proteger essa capacidade complexa que é o Estado liberal, mas nós também precisamos reorientá-la para o outro. Há muito a ser feito.

Leila Sterenberg — Isso se torna bem claro pela maneira como os EUA e outros países tratam a questão da imigração, por exemplo. A senhora escreveu: “Esses Estados estão dispostos a sacrificar leis grandes e pequenas e, de modo geral, o espírito das leis, uma das mais importantes conquistas de nossa história coletiva no Ocidente.” Isso é algo muito sério, não é?
Saskia Sassen — Eu sei. São distorções. Elas sempre irão acontecer. Para mim, tudo é uma curva. É possível viver com uma pequena distorção, a vida é assim. O marido mais perfeito tem sempre algo que não é perfeito. Mas, quando a coisa chega ao outro lado da curva, que é aonde chegamos com a questão da imigração na última década, nós estamos distorcendo nossas próprias leis, que é algo realmente destrutivo, para perseguir pessoas que são basicamente pobres, mais fracas do que o poder usado contra elas.

Leila Sterenberg — Elas são impotentes.
Saskia Sassen — A única coisa que elas querem é um emprego que as sustente. Tem que haver uma maneira melhor de fazer isso.

Leila Sterenberg — A senhora escreveu sobre as execuções de hipotecas. É um pouco assustador.
Saskia Sassen — É mesmo assustador.

Leila Sterenberg — A senhora disse que elas são mais do que uma desigualdade hoje em dia, já que muitos trabalhadores de classe média que não podem mais pagar a prestação da casa estão vivendo acampados em barracas pelos EUA. Em sua opinião, isso vai piorar?
Saskia Sassen —Isso é uma história brutal curta. Começou em 2001, mas bem pouco, piorou em 2005 e terminou em 2008, mas os contratos de hipoteca normalmente eram de cinco anos. Em 2014, obviamente, todos os contratos estarão extintos, e isso terá terminado. Agora, mais de 10 milhões de residências tiveram sua hipoteca executada. A execução é uma notificação. Ela avisa que você tem um problema e que, basicamente, terá que deixar sua casa. O que nós sabemos de pessoas que realmente perderam sua casas é que foram cerca de 10 milhões de lares. Hoje temos 13,3 milhões de notificações de execução, e 10 milhões de famílias já deixaram suas casas. A maioria dessas pessoas não se torna sem-teto, mas nós temos milhares e milhares de pessoas morando em barracas, em aglomerados de barracas fornecidos pelas prefeituras. São barracas semelhantes às das organizações humanitárias. Isso não é exclusão social nem simplesmente desemprego, é algo ainda mais profundo. A Grécia é, hoje, o exemplo mais drástico disso. A dívida da Grécia agora melhorou, eles estão se saindo bem em um espaço econômico encolhido que exclui até 40% da população. A população ainda está lá, mas não faz parte do sistema econômico. Em algum momento, passamos para o outro lado da curva e precisamos de outra palavra para descrever essa tragédia. Eu acho que isso é algo muito importante nos EUA, mas o instrumento viajou de maneira global. A Hungria sempre foi mais ligada ao sistema financeiro Ocidental, mesmo na época do comunismo. Nos últimos cinco anos, a Hungria teve mais de um milhão de execuções de hipotecas. Na Letônia, foram 360 mil. Na Espanha, mais de 400 mil. Esses são apenas alguns exemplos. Esse é um mecanismo de reajuste. Enfim, um mecanismo que se tornou isso. Não digo que ele foi criado para agir assim. Mas todas essas coisinhas acabam sendo mecanismos de reajuste do espaço econômico, que é visto como um espaço trabalhável. Então é o oposto do que ocorreu nas décadas pós-Segunda Guerra, quando o sistema abarcou as pessoas, como trabalhadoras e consumidoras. Era uma economia de fabricação em massa, de consumo em massa, de produção em massa, de construção de imóveis em massa etc. Hoje vivemos o oposto.  

Leila Sterenberg — É bonito quando a senhora diz que é possível “entregar de volta à biosfera” esse processo de combater as mudanças climáticas, de encontrar soluções para elas. As cidades são parte do problema — gente demais, carros demais, emissões demais —, mas também são parte da solução, certo?
Saskia Sassen — Certo. Eu me interesso muito por biologia. As pessoas que trabalham com as cidades — sejam pesquisadores, construtores etc. — já entenderam que precisam usar novas tecnologias, que precisam levar em conta a topografia, o terreno, o clima etc.  Eu digo que a biologia é o elo que falta. Para dar apenas dois exemplos do que quero dizer com isso, alguns biólogos… E a maioria dos biólogos não se interessa pelo meio ambiente. Alguns se interessam. São os nerds das questões ambientais, e eu os adoro. Mas uma das descobertas foi que, usando certo tipo de bactéria na água com contaminação orgânica — ou seja, o lixo que produzimos, em enormes quantidades, nas cozinhas, nos banheiros, nos restaurantes, lixo orgânico —, somos capazes de produzir uma molécula de plástico resistente, durável, mas biodegradável. Em outras palavras, é como uma gravação, sabe? O que temos hoje é uma negativa para as cidades. Elas não sabem como tratar o lixo, elas o fazem da maneira errada. Os EUA continuam a jogá-lo em aterros, onde ele se torna gás metano, que explode. Na verdade, é algo horrível. Mas essa descoberta significa que as cidades podem produzir plástico com o que hoje é algo negativo: toda essa água contaminada. As cidades poderiam até exportar água contaminada, para que todos possam fabricar o plástico, ou mesmo exportar o plástico. E nós precisamos de plástico em tudo. O que não precisamos é desse plástico não biodegradável, pois todos nós sabemos que ele é uma séria ameaça aos peixes e aos corpos de água. Mas há outro exemplo: uma bactéria que, se aplicada, como uma tinta, ao concreto, às calçadas, aos telhados etc., produz, no concreto, depósitos de cálcio que impedem as emissões de gases de efeito estufa e acaba purificando o ar em volta. As cidades têm uma enorme concentração de concreto, e isso pode se tornar um fenômeno em escala de purificação do próprio ar. Apenas ali em volta, não no planeta todo, mas isso já é algo extraordinário. Então, para mim, o desafio ambiental não pode ser deixado aos formuladores de políticas ou aos arquitetos. Nós precisamos trabalhar com a biosfera. E meu argumento principal é o seguinte: a cidade e a biosfera têm uma quantidade enorme de conexões. Hoje, elas são todas negativas, mas elas existem. Nós podemos pensar nas conexões como uma capacidade que nós precisamos mudar para algo positivo. Essas duas bactérias adoráveis são um exemplo disso. Mas é com isso que eu sou obcecada. Já há muitas políticas sendo criadas e elas não bastam.

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