Embargos Culturais

Experiência literária pode ser absorvida pelo Direito

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

30 de junho de 2013, 8h00

A literatura de ficção oferece subsídios para a compreensão do juiz, do advogado, do jurídico. O escritor carrega para sua obra uma experiência pessoal, e nessa experiência vinculamos o artista com uma visão de vida e de tudo que a envolve. A chamada ocupação principal do escritor influencia a obra, imprimindo à mesma o contingencial e o episódico do artista.

Aspectos da literatura brasileira ilustram essa assertiva. O múnus religioso em José de Anchieta. A escrivania em Pero Vaz de Caminha. O espírito redentor e sebastianista no Padre Antonio Vieira. Machado de Assis era funcionário público exemplar (recentemente a Imprensa Nacional publicou uma coletânea de textos amanuenses do fundador da Academia Brasileira de Letras).

Cecília Meireles exerceu o magistério. Joaquim Manoel de Macedo, Alberto de Oliveira, Pedro Nava (que se destacou como memorialista) e Moacyr Scliar têm formação médica. Manoel Antonio de Almeida, Olavo Bilac, Cruz e Souza, Euclides da Cunha (que era engenheiro), Lima Barreto, Mário de Andrade, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queirós, Graciliano Ramos (que foi também inspetor de ensino), Érico Veríssimo, Rubem Braga, Caio Fernando Abreu, Fernando Sabino, Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro destacaram-se também na imprensa.

Na diplomacia temos Gonçalves de Magalhães, Martins Pena, Aluísio de Azevedo, Vinícius de Moraes (que era formado em Direito), Guimarães Rosa (formado em Medicina) e João Cabral de Melo Neto.

Muitos escritores brasileiros são bacharéis em Direito, e muitos deles exerceram a advocacia, a promotoria ou a magistratura. Nomeadamente: Gregório de Matos Guerra, Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves, José de Alencar, Raul Pompéia, Raimundo Correia, Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos, Graça Aranha, Godofredo Rangel, Oswald de Andrade, Alcântara Machado, José Lins do Rego, Clarice Lispector, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles e Monteiro Lobato.

A questão da atividade paralela é expressiva em Lygia Fagundes Telles. Em entrevista a Giovanni Ricciardi, destacamos:

— Hoje você é uma escritora. Vive ou pode viver só desta profissão?
Não, não posso viver só da Literatura.
Qual é, então, a sua carreira paralela?
Sou advogada do Estado, mais precisamente Procuradora.
Continua trabalhando nisso?
Sim, sou Procuradora do Estado. Não vivo dos meus livros; eles dão uma margem para certas superficialidades, mas não para o essencial.[1]

Jorge Amado foi estudar Direito, porém, com o firme propósito de fazer Literatura. Por isso, deixou Salvador e foi para o Rio de Janeiro e não para São Paulo. É o que entendemos, a partir de entrevista que Jorge Amado deu a Giovanni Ricciardi, onde se lê:

— Você também seguiu de Salvador para o Rio. Por que fez o curso de Direito nessa cidade? Por que não em São Paulo?
— Ninguém que desejasse fazer uma carreira de escritor, naquela época, podia permanecer na província. Devia ir para a capital, Rio de Janeiro, lutar por um lugar ao sol. Foi o que eu fiz. O Rio de Janeiro era uma cidade deliciosa: bela e cordial. São Paulo era uma grande província.[2]

É essa relação do escritor com a vida que faz da Literatura fonte para o entendimento do mundo, do homem, da sociedade. Na literatura universal verificamos que, por exemplo, Boccaccio era pesquisador incansável; Rabelais estudara Direito e Medicina; Cervantes foi soldado; Daniel Defoe comerciante.

Voltaire e Goethe tinham formação enciclopédica; Stendhal foi diplomata e intendente militar; Balzac, Victor Hugo, Hawthorne, Allan Poe e Flaubert viveram da Literatura; Dostoiévski jogava; Herculano era historiador; Dickens vivera muito tempo de pequenos expedientes; Melville fora marinheiro.

Lewis Carrol, professor de matemática; Eça de Queirós teve formação jurídica; Arthur Conan Doyle era formado em Medicina; Guy de Maupassant trabalhou no Ministério da Marinha; Proust viveu da fortuna herdada da família; Kafka dedicou-se exclusivamente à Literatura.

Scott Fitzgerald foi roteirista em Hollywood; Giovani Papini e Hemingway foram jornalistas; Sartre lecionou Filosofia; Hesse sabia muito sobre a Índia; Jorge Luís Borges foi acomodado numa biblioteca (Umberto Eco o homenageou em O Nome da Rosa); Shakespeare dirigia teatro; Bernard Shaw trabalhou numa casa comercial; Tchecov viveu do teatro, Brecht idem; Dante era filósofo e teólogo.

Camões trabalhara em Macau como "provedor-mor de defuntos e ausentes"; Byron viveu na Inglaterra, Itália e Grécia; Fernando Pessoa vivera parte da vida na África do Sul e fora tradutor; Garcia Lorca foi ativista político; Pascal era matemático; Montaigne dedicara-se a assuntos militares e políticos; Maquiavel fora diplomata; Nietzsche ensinara literatura grega; Rousseau interessava-se por música.

O escritor, por causa de sua origem e experiência de vida, evidencia o mundo em que vive. Sua experiência é o substrato de um tempo. O escritor faz a crônica da humanidade. Por isso, a dimensão da vida humana pode ser buscada na literatura. É essa experiência que pode ser absorvida pelo Direito, humanizando a experiência normativa, num contexto de libertação e de emancipação.


[1] Entrevista de Lygia Fagundes Telles a Giovanni Ricciardi, in Autoretratos, p. 176.
[2] Entrevista de Jorge Amado a Giovanni Ricciardi, p. 53.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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