Observatório Constitucional

Corte argentina declara inconstitucional reforma judicial

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29 de junho de 2013, 8h00

Na semana passada, mais especificamente no dia 18 de junho, a Corte Suprema da Argentina tomou importante decisão ao declarar a inconstitucionalidade[1] da Reforma Judicial proposta pelo governo de Cristina Kirchner, fato que foi bem avaliado pelo editorial do jornal espanhol El País como um freio “en seco” ao que seria “uno de los asaltos más flagrantes a la separación de poderes que se recuerdan en una democracia homologada[2]. Em síntese, a Reforma Judicial estabelecia, entre outros pontos, que a composição do Conselho da Magistratura — até então efetivada por indicação do Congresso, de associações de juízes, de advogados e de acadêmicos — fosse realizada por meio de eleições populares diretas em que os candidatos deveriam inscrever-se nas listas dos partidos políticos para as eleições gerais.

Em decisão bem fundamentada, tomada por maioria de 6 votos contra apenas 1 voto dissidente (elaborado pelo conhecido magistrado e professor Eugenio Zaffaroni)[3], a Corte considerou que a eleição mediante sufrágio universal dos membros do Conselho da Magistratura submeteria esse órgão ao poder político dos partidos e da maioria governamental e dessa forma violaria a separação dos poderes, com sérias consequências para a imparcialidade e a independência judiciais. Conforme trechos significativos da decisão (dentre outros vários), a Corte verificou que “es previsible que, luego de un tiempo de aplicación, los jueces vayan adoptando posiciones vinculadas a los partidos que los van a elegir, y luego promover o no en sus carreras, afectándose así su imparcialidad”. De fato, na prática, a reforma pretendida pelo governo obrigaria os magistrados a desenvolver atividades político-partidárias, como campanha eleitoral — o que implica também a busca pelo respectivo financiamento, com todas as dificuldades que o tema sugere —, claramente incompatíveis com a natureza da função judicial.

A decisão assim poderia ser avaliada desde variadas perspectivas, mas talvez uma dentre elas se sobressaia, a que diz respeito ao aspecto da legitimidade ou da representatividade democrática de juízes e tribunais. Um determinado trecho da decisão é bastante significativo, quando expressa literalmente o seguinte: “El Poder Judicial tiene la legitimidad democrática que le da la Constitución, que no se deriva de la elección directa”. Por sua transcendência a toda democracia constitucional, a frase empregada pelos magistrados da Corte Suprema argentina acaba por deixar um claro recado a todos os governos latino-americanos que nos últimos tempos vem flertando com algum modelo de eleição popular para os tribunais, e assim também alerta para o erro que podem estar cometendo países como a Bolívia, que em sua mais recente Constituição (de 2009) chegou a instituir o sufrágio universal como a forma de composição do denominado “Tribunal Constitucional Plurinacional”[4]. Em tempos de evidente crise da democracia representativa, a qual é vivenciada neste exato momento pela maioria das democracias constitucionais (inclusive no Brasil, como demonstra a insatisfação popular presente nos protestos que tomaram as ruas de todo o país), é comum que as vias de solução para os problemas enfrentados sejam buscadas através de raciocínios simplórios que encontram na vontade popular expressada por eleições diretas todo modelo de justificação e de legitimação do poder, inclusive do poder judicial. O raciocínio parte da premissa de que “todo poder emana do povo”, para então conjugá-la com a outra premissa de que “os juízes exercem o poder” e saltar (falaciosamente) à conclusão de que “os juízes devem ser escolhidos pela vontade popular”. Como se pode perceber facilmente, o raciocínio (encarado nessa perspectiva) omite a premissa equivocada sobre o tipo de representação democrática exercida pelos juízes. O erro está em identificar essa representação com aquela que exercem os poderes políticos típicos das instituições majoritárias.

Como se sabe, a representação democrática por muito tempo foi caracterizada pelas teorias políticas da democracia desde o ponto de vista que Hanna Pitkin, em sua já clássica e multicitada obra sobre o “Conceito de Representação” (de 1967)[5], definiu como “formalista”. Segundo Pitkin, o conceito moderno “formal” de representação, que possui origem remota em Thomas Hobbes[6], foi construído fundando-se em dois fatores essenciais: a) autorização (authorization), como ato inicial que confere a autoridade, o mandato ou o poder ao representante para atuar em nome do representado, o que nas democracias representativas modernas se realiza por meio de eleições gerais e periódicas; b) responsabilidade (accountability), uma espécie de acordo formal que segue o ato constituinte inicial (autorização) e obriga o representante a prestar contas de seus atos[7]. Outra descrição já consagrada na teoria da democracia pode ser encontrada na obra de Giovanni Sartori, segundo a qual a representação política implica: a) receptividade ou responsabilidade (responsiveness) por parte dos representantes em relação às demandas de seus eleitores; b) prestação de contas (accountability), o que significa que os representantes devem prestar contas ou ser responsáveis por seus atos perante seu eleitorado; c) possibilidade de destituição (removability) dos representantes, que se restringe a determinados momentos, como ocorre quando há a aplicação de um “castigo eleitoral”[8]. Nesses termos, a representação política tradicionalmente é qualificada como representação eleitoral, isto é, como fenômeno que se reproduz no seio das complexas relações entre eleitores e seus representantes, uma visão que se encontra enraizada no próprio senso comum que na prática política se construiu em torno desse conceito.

Ocorre que a representação democrática exercida pelos tribunais assume um caráter peculiar em relação àquela presente em instituições majoritárias (cujo melhor exemplo se encontra no parlamento). Ela não se funda diretamente na autorização ou na delegação de poderes que acontece nos momentos eleitorais das democracias contemporâneas, tal como ocorre com a representação política exercida pelos parlamentos. No caso dos tribunais, a autorização para o exercício de seus poderes advém diretamente da própria Constituição e, dessa forma, apenas indiretamente do voto popular[9], de modo que não se observa, neste contexto, a possibilidade de destituição (removability) de representantes (no caso, os magistrados), tal como pode ocorrer na representação político-eleitoral dos parlamentos, ante a possibilidade da aplicação de um “castigo eleitoral”[10]. Os tribunais, portanto, também não estão obrigados a exercer algum tipo de receptividade ou responsabilidade (responsiveness) em relação às demandas populares, apresentadas nos períodos eleitorais ou fora deles, de modo que a representação por eles exercida não assume um caráter promissório (promissory representation), tal como a que se pode verificar nas relações entre eleitores e seus representantes eleitos. Nesse sentido, a accountability que exercem os tribunais é diferenciada, na medida em que não se estabelece numa relação direta de responsabilidade ou de prestação de contas de seus atos perante o eleitorado. Utilizando a conhecida distinção de Guilhermo O’Donnell entre tipos vertical e horizontal de accountability[11], poder-se-ia dizer que os tribunais exercem uma espécie de accountability horizontal (denominada por O’Donnell de “accountability horizontal de balance”[12]), a qual é destinada ao controle da legalidade e da constitucionalidade dos atos políticos dos demais poderes estatais (legislativo e executivo), os quais possuem legitimação eleitoral.

Assim, ao invés de se basear em mecanismos de autorização e accountability — os quais, ressaltem-se, estão voltados à legitimação ex ante dos atos políticos —, a representação democrática dos tribunais fundamenta-se também na representatividade de seus discursos, na aceitabilidade de sua argumentação, enfim, no reconhecimento positivo (a posteriori) de suas decisões por parte da comunidade. Em outros termos, em vez de ser uma representação de tipo formal (concepções formais de autorização e accountability), ela é uma representação eminentemente material, que ocorre quando as decisões são de tal modo produzidas (argumentadas, deliberadas) que os cidadãos, a comunidade em si, ou amplos espectros dos cidadãos e da comunidade, independentemente das diferenças de opinião que em seu interior podem ser verificadas, podem reconhecê-las como decisões corretas, razoáveis ou plausíveis. Trata-se de uma representação (material) que, desse modo, se verifica mais a posteriori, uma vez produzidos os atos que requerem legitimação, distintamente dos mecanismos eleitorais que fundamentam a representação política (formal), destinados à anterior legitimação dos atos políticos (eventuais e futuros) dos representantes.

Todas essas ideias obviamente poderiam ser amplamente estendidas, desenvolvidas e aprofundadas, mas, nos limites deste artigo, cabe apenas alertar para a importância e a transcendência latino-americana da recente decisão da Corte Suprema da Argentina e indicar algumas vias de reflexão necessária neste momento de crise das democracias representativas. O Brasil certamente possui um sólido arcabouço institucional que o mantém distante da realidade política de algumas nações latino-americanas, fato que, porém, não deve fazer fechar nossos olhos para a decisão da Corte argentina, que nos serve de alerta preventivo contra as tentativas sempre presentes que, sob o conhecido pretexto de “democratizar” os poderes judiciais e torná-los mais condizentes com os anseios populares, pretendem na verdade criar mecanismos inadequados de controle político desses poderes e assim desfazer os existentes mecanismos institucionais de horizontal accountability historicamente conquistados. Em tempos de insurgentes protestos populares, nos quais podem ser reabertos os canais de reforma institucional ampla, o recado dado pela Corte argentina pode servir de sobreaviso.


[1] Acción de Amparo (Expte. N. 3034/13) contra Poder Ejecutivo Nacional: “declarar la inconstitucionalidad de los artículos 2°, 4°, 18 y 30 de la Ley 26.855, y del Decreto 577/13”, “disponer que en los puntos regidos por las normas declaradas inconstitucionales e inaplicables, mantendrá su vigencia el régimen anterior previsto en las leyes 24.937 y sus modificatorias 24.939 y 26.080”; “dejar sin efecto la convocatoria a elecciones para los cargos de consejeros de la magistratura representantes de los jueces de todas las instancias, de los abogados de la matrícula federal y de otras personas del ámbito académico y científico establecida en los artículos 18 y 30 d ela Ley 26.855 y en los artículos 1°, 2°, 3° y concordantes del Decreto 577/13”; “aclarar que lo resuelto no implica afectación alguna del proceso electoral para los cargos de diputados y senadores nacionales establecido en el Decreto 501/13”.
[2] “Separación de Poderes: El Supremo argentino frena el intento del Gobierno de socavar la independencia judicial”, El País, editorial de 23/06/2013.
[3] A Corte Suprema da Argentina é composta por 7 magistrados: Ricardo Luis Lorenzetti, Elena Highton de Nolasco, Carlos Fayt, Enrique Petracchi, Juan Carlos Maqueda, Eugenio Raul Zaffaroni e Carmen M. Argibay.
[4] A Constituição da Bolívia de 2009 criou o Tribunal Constitucional Plurinacional e previu, como forma de sua composição, a eleição direta dos magistrados por todos os cidadãos do país.
[5] PITKIN, Hanna F. El concepto de representación. Trad. de Ricardo Montoro Romero. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales; 1985.
[6] Para maiores detalhes a respeito da análise de H. Pitkin sobre o conceito de representação em Hobbes, vide: PITKIN, Hanna F Hobbe’s concept of representation. American Political Science Review, Vol. LVIII, n. 4, December 1964, pp. 328-918.
[7] H. Pitkin considera que essa concepção formalista, apesar de captar adequadamente parte do significado da representação, é insuficiente para descrever toda a complexidade do fenômeno da representação política. Para Pitkin, um conceito mais completo (e complexo) de representação deve considerar, além da representação formal, a representação descritiva, a representação simbólica e a representação substantiva. PITKIN, Hanna F. El concepto de representación. Trad. de Ricardo Montoro Romero. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales; 1985. Idem. Representação: palavras, instituições e ideias. In: Revista Lua Nova, São Paulo, 67, 2006, pp. 15-47. Originalmente “Representation”, publicado em BALL, Terence, FARR, James; HANSON, Russell (orgs.). Political innovation and conceptual change. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. Idem. Representation and Democracy: an uneasy alliance. In: Scandinavian Political Studies, vol. 27, n. 3, 2004. Uma análise mais profunda do conceito de representação, em especial na obra de Hanna Pitkin, pode ser encontrada em: LIFANTE, Isabel. Sobre el concepto de representación. Doxa Cuadernos de Filosofía del Derecho, Alicante, vol. 32, 2009, pp. 497-524. GARCÍA GUITIÁN, Elena. El significado de la representación política. In: Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, 8, 2004, pp. 109-120.
[8] SARTORI, Giovanni. En defensa de la representación política. In: CARBONELL, Miguel. Democracia y Representación: un debate contemporáneo. México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2005.
[9] Como bem observou Rawls em um de seus melhores escritos, a atuação da Corte Constitucional está sempre guiada pelo povo, que o faz através dos demais Poderes: “A Constituição não é o que o Tribunal Supremo diz que é, mas o que o povo, atuando constitucionalmente através dos demais poderes, permite à Corte Suprema dizer que é”. RAWLS, John. El liberalismo político. Trad. Antoni Domènech. Barcelona: Crítica; 2006.
[10] A inamovibilidade dos magistrados (seja nos sistemas que adotam a regra da vitaliciedade ou nos que limitam a permanência no cargo à duração de um mandato preestabelecido) constitui uma garantia da independência judicial e, dessa forma, do adequado exercício das competências constitucionais a eles atribuídas.
[11] Para Guilhermo O’Donnell, ao lado da tradicional concepção de accountability – a qual poderia ser conceituada como de tipo vertical, na medida em que se estabeleceria no dever dos representantes de prestar contas de seus atos em relação a seus eleitores –, existiria a accountability horizontal, consistente na existência de agências estatais que possuam autoridade (legal e constitucional) e estão faticamente dispostas e capacitadas (empowered) para empreender ações de controle (desde um controle rotineiro até sanções penais ou inclusive impeachment) em relação a atos ou omissões de outros agentes ou agências estatais que possam ser considerados ilícitos, isto é, possam contrariar a lei ou a Constituição. Trata-se, portanto, de um controle mútuo (horizontal) entre poderes e/ou órgãos estatais que visa, em última instância, à proteção da ordem jurídica e democrática. O’DONNELL, Guilhermo. Horizontal Accountability in New Democracies. Journal of Democracy 9 (3), 1998, pp. 112-126. Idem. Accountability Horizontal: la institucionalización legal de la desconfianza política. In: Isonomía n. 14, abril 2001. Idem. Horizontal Accountability and New Polyarchies. Paper prepared for the conference on “Institutionalizing Horizontal Accountability”, Institute for Advanced Studies of Vienna and The International Forum for Democratic Studies, Vienna, june 1997.
[12] A “accountability horizontal de balance” ocorre nas relações de controle mútuo (“freios e contrapesos”) entre os poderes (executivo, legislativo e judicial), os quais as Constituições democráticas contemporâneas intentam “balancear”. O’DONNELL, Guilhermo. Accountability Horizontal: la institucionalización legal de la desconfianza política. Isonomía n. 14, abril 2001.

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