Argumento falacioso

Constituinte exclusiva é inconstitucional e ilegítima

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27 de junho de 2013, 7h00

No último dia 24 de junho, a presidente da República propôs a realização de um plebiscito que autorizaria uma “constituinte exclusiva” para aprovar uma reforma política. No dia seguinte, houve manifestações inconclusivas fornecidas por integrantes do governo federal, até que foi enfim explicitada a retirada da proposta. De toda maneira, o assunto permanece na pauta das alternativas políticas aventadas para o contexto atual. Alguns juristas chegaram a se manifestar favoravelmente à ideia. E existem, em tramitação no Congresso Nacional, várias PECs de teor similar. O tema, de importância vital para o constitucionalismo brasileiro, merece ser discutido em profundidade.

Surgiram, nos últimos anos, várias PECs propondo revisões constitucionais e miniconstituintes. A PEC 554/1997 sugeria uma “miniconstituinte”. Depois, a PEC 157/2003 previa uma “revisão constitucional”. A PEC 193/2007, por seu turno, visava incluir um procedimento revisional no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Por fim, a PEC 384/2009 pretendia possibilitar a eleição, em 2010, de 180 “parlamentares constituintes” com a função de “revisar os dispositivos da Constituição Federal relativos ao regime de representação política”. É importante frisar que essas PECs foram apresentadas por políticos de todos os segmentos do campo político-partidário, incluídos muitos que hoje se manifestam contrários à proposta lançada pela presidente.

Em nosso entendimento, essas propostas são inconstitucionais.

Além de representarem uma tentativa de justificação do descumprimento dos limites formais para reforma da Constituição — número de turnos, votações em separado na Câmara e no Senado, sendo especialmente preocupante a redução de quorum para deliberação por maioria absoluta ou mesmo simples —, as propostas resultam também na violação dos limites materiais à reforma (cláusulas pétreas); e, mais, ao se propor uma "constituinte exclusiva" afasta-se a possibilidade de controle jurisdicional da constitucionalidade dessa reforma da Constituição. Essas propostas, que simplificam de modo injustificável o processo legislativo de reforma, são, portanto, inconstitucionais e estão sujeitas à fiscalização do Poder Judiciário.

As normas constitucionais que regulam o processo legislativo de reforma constitucional possuem, como toda norma jurídica, uma dupla dimensão de validade: elas se endereçam aos seus destinatários, tanto como limites coercitivos para aqueles que atuam de forma estratégica ou, ao menos, visando tão-somente à satisfação dos seus próprios interesses, quanto como uma garantia do exercício de liberdades comunicativas àqueles que agem por respeito às normas democraticamente estabelecidas.

O processo legislativo de reforma constitucional não está à disposição de maiorias políticas que pretendem subvertê-lo; ele é, ao mesmo tempo, um limite às deliberações majoritárias, verdadeira garantia constitucional aos direitos fundamentais das minorias, bem como condição sine qua non para a formação legítima, no processo democrático, de maiorias e de minorias políticas sempre mutáveis.

Eventual projeto de uma “constituinte exclusiva”, que pretenda modificar ou excepcionar o disposto no artigo 60 da Constituição da República, viola a rigidez constitucional — e não por um simples apego à forma. Ele afronta a Constituição porque coloca em risco direitos e garantias das minorias políticas em face dos interesses das maiorias e porque infringem as próprias condições constitucionais e processuais para deliberação por maioria. Ele subverte o próprio processo legislativo democrático, sob o pretexto de encontrar uma solução democrática para a crise do sistema político. Em síntese: a proposta joga a Constituição contra a Constituição.

Decisões majoritárias, violadoras de direitos constitucionais das minorias políticas e que subvertem as próprias bases constitucionais para deliberação política, são, na verdade, autoritárias; não configuram, portanto, a manifestação de um poder político democrático. São a expressão da violência.

É um argumento falacioso afirmar que a convocação de uma assembleia revisora, ou mesmo de uma miniconstituinte, cujos trabalhos seriam autorizados por um plebiscito ou submetidos a um referendo, seria a expressão da soberania popular ainda que contrária à Constituição.

As experiências constituintes latino-americanas mais recentes (Equador, Bolívia e Venezuela) e as atuais discussões sobre o chamado constitucionalismo popular enfatizam a participação do povo nos processos decisórios. A Constituição brasileira de 1988, como poder constituído, possibilita a reforma política com participação popular, respeitadas as regras do jogo democrático. Isso se dá por meio da representação e da possibilidade de emendas ou mesmo pelo processo legislativo ordinário. Essa reforma política, para traduzir uma mudança satisfatória, deve ser acompanhada com mobilização nas ruas. Que o processo legislativo de reforma e emenda constitucional, nos termos do artigo 60 da Constituição e não contra ele, seja o centro de mobilização política em torno das grandes questões nacionais, reafirmando o projeto constituinte da Constituição de 1988.

É preciso que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário tenham a consciência de que o povo não precisa ser tutelado ou substituído. Uma delegação de poder, nos moldes propostos pela “constituinte exclusiva”, representará, para além das inconstitucionalidades já apontadas, uma atitude — no presente e no futuro — de abandono da Constituição democrática promulgada em 5 de outubro de 1988. Seria um desfecho tristemente irônico para uma história construída a partir de várias lutas e mobilizações da sociedade civil.

Autores

  • é procurador do Trabalho na 10ª Região, professor da Faculdade de Direito da UnB e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG.

  • é professora associada da UFRJ, doutora em Direito (UFMG e Università degli Studi di Lecce), Mestre em teoria e filosofia do Direito (UFSC). Estágio pós-doutoral no Instituto Max Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

  • é professor associado da UFMG, doutor e mestre em Direito (UFMG). Estágio pós-doutoral em Teoria do Direito na Università degli studi di Roma Tre. Coordenador do Colegiado do Curso de Bacharelado em Ciências do Estado da Faculdade de Direito da UFMG.

  • é professora associada da UFPR, doutora em filosofia (New School for Social Research), mestre em Direito e filosofia (UFSC e New School for Social Research), vice-diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

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