Função essencial

Pablo Bezerra: A sustentação oral no Projeto de CPC

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27 de junho de 2013, 7h07

A ampliação do acesso à justiça e as restrições às instâncias superiores são duas tendências antagônicas que determinaram o rumo da legislação processual nas últimas décadas. A primeira, fruto da democracia; a segunda, um atavismo autoritário.

A primeira das tendências, relacionada à garantia constitucional de que a lei não excluirá de apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito (CRFB, artigo 5º, XXXV), busca baratear os custos do processo, franqueando-o inclusive às pessoas menos favorecidas, além de permitir que o Judiciário se vocacione também à resolução de questões de pequena expressão econômica. Também dentro dessa tendência, legitimam-se pessoas e entidades para a busca de tutela de direitos transindividuais, próprios de uma sociedade estandardizada, que passa a descobrir a existência e importância de novos direitos.

Inserem-se na garantia de acesso à justiça relevantes instrumentos legais como: a Lei dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, de 1984; a Lei de Ação Civil Pública, de 1985; o Código de Defesa do Consumidor, de 1990; a Lei dos Juizados Especiais, de 1995. Além disso, a lenta, mas notável estruturação da Defensoria Pública, como instituição voltada à orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, tem contribuído imensamente com a superação paulatina do fenômeno da litigiosidade contida (Watanabe).

Porém, apesar do grande impacto da benfazeja onda de acesso à justiça e do incremento demográfico pelo qual passou o Brasil nas últimas décadas[1], não se seguiu a devida preparação material e humana dos órgãos judiciários para lidar com um afluxo de processo muitíssimo maior. A própria composição numérica dos tribunais superiores (STJ, TST e TSE) e do Supremo, por exemplo, permanece a inalterada, desde a promulgação da atual Constituição, como se ajustes nesse campo não fossem absolutamente recomendáveis para se preservar um grau mínimo de qualidade da prestação jurisdicional. É também certo que, desde 1988, foram construídos gigantescos palácios judiciais em Brasília para abrigar as Cortes Judiciárias, porém bem pouco resultado desta modalidade de gasto auferiu o cidadão ansioso por justiça de qualidade.

A crise que se instalou no judiciário, sobretudo nos tribunais superiores faz parte de uma crise maior de descaso e depauperamento dos serviços públicos em sentido amplo. A população cresce, a sociedade se torna mais dinâmica, as necessidades aumentam, mas não há a contrapartida necessária do Estado para fazer frente à realidade. O jeito é apelar para soluções miraculosas e salvadoras…

Assim, com o propósito imediato de desafogar os Tribunais Superiores, foram aprovadas nas duas últimas décadas diversas leis que, alterando o Código de Processo Civil, passaram a restringir severamente a possibilidade de acesso pela via recursal às instâncias extraordinárias. Diminuição a todo custo da quantidade de processos empilhados nas prateleiras dos gabinetes dos juízes foi a verdadeira toada, embora haja quem diga que a preocupação primeira seria a de tornar o processo mais rápido. O acesso a justiça, agora, é acesso a uma meia justiça, ou a uma meia injustiça, como se queira.

A tendência de restrição às instâncias superiores tem por princípio uma aposta na onipotência e onisciência do julgador.

Derrubado há muitas décadas o legislador do pedestal que o exegetismo do século XIX o havia posto, dada a percepção de que a realidade e os valores não poderiam ser aprioristicamente apreendidas por tipos legais, não demorou muito para se colocar no lugar dele uma outra figura, igualmente mítica. Do onipotente legislador, chegou-se ao dogma do onipotente julgador. O julgador excepcionalmente bom, sem precisar dar muito atenção para o contraditório, pois, afinal, tudo sabe, e sem ter que fundamentar cabalmente suas conclusões, pois, afinal, é excepcionalmente bom, pode proferir juízos universalizantes sob a fórmula de enunciados mágicos capazes de enquadrar um sem-número de relações jurídicas que inclusive ainda estão por ser formadas.

Substituiu-se o “defiro, nos termo da lei X” ou “indefiro, com base na lei Y”, por expressões do tipo “nego provimento, nos termos da súmula X”, “o tribunal X assim já decidiu: […] ante o exposto, nego seguimento”. Tudo muito conciso, prático, estandardizado e supremamente autoritário.

Maior expressão dessa tendência de combate soez ao acesso à justiça é a Lei 9.756, de 17 de dezembro de 1998, conhecida como “Lei do Agravo”, que, dentre outras providências, deu nova redação ao artigo 557 do Código de Processo Civil, para estipular que o relator poderá monocraticamente apreciar o mérito do recurso com base não só em súmula, como também em jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou Tribunal Superior, excepcionando, em termos, a competência do órgão colegiado para apreciação do mérito do recurso. Assim, se no sentir discricionário do relator, o recurso é manifestamente improcedente ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do próprio Tribunal ou de Tribunal Superior, pode, ele mesmo, julgá-lo, pelo mérito. Se, ao contrário, sentir que não é tão manifestamente improcedente ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante, deverá levá-lo ao julgamento colegiado.

Como se nota, o campo para o arbítrio é imenso. Como mensurar se um recurso é manifestamente improcedente ou, apenas, mais ou menos improcedente? Acaso já foi criado um manifestiômetro? Existem graus de improcedência? Quer dizer que o relator que leva o recurso ao colegiado o faz menos convicto quanto à sua decisão/proposta de decisão do que aquele que decide monocraticamente? Qual é o critério para se aferir o caráter “dominante” da jurisprudência? Quantas decisões, num mesmo sentido, enfim, são necessárias para que se tenha uma jurisprudência dominante? Valem meia dúzia de acórdãos relatados pelo próprio relator proferidos na semana passada num julgamento por lista de um órgão fracionário com composição mínima, sem qualquer debate?

E já por esses motivos a desrazão da norma é evidente. A depender das convicções pessoais mais ou menos firmes dos relatores, ou da precisão do manifestiômetro, os recorrentes podem ter seus recursos decididos de forma unipessoal ou colegiadamente.

Diz-se à exaustão nos tribunais, a título de defender a razoabilidade da norma do artigo 557 do CPC, que a exceção à colegialidade das deliberações recursais se dá “em termos” porque, se a parte contrariada pelo relator achar que a decisão unipessoal é equivocada, poderá agravar ao órgão competente para julgamento do recurso, nos termos do § 1o do mesmo artigo 557 do CPC.  Em poucas palavras: se quiser, recorra…

E assim é que, muito estranhamente, na prática, o relator vem se tornando uma instância intermediária entre o órgão recorrido e o revisor, tornando o sistema processual brasileiro ainda mais complexo, lento e repleto de percalços, um poço de ineficiências e insatisfações. Criada para servir como um atalho ao desfecho do processo, a decisão unipessoal do relator, fundada no caput do artigo 557 do CPC, bem pelo contrário, alonga a litispendência, cria incidentes e retarda a prestação jurisdicional. O meio utilizado pelo legislador, no caso, é absolutamente ineficaz para se atingir a finalidade proposta.

E não salva a sistemática da decisão monocrática o fato de o agravo do § 1º do artigo 557 dispensar o preparo (taxa judiciária), pois é natural que o recorrente tenha que remunerar o tempo e esse maior trabalho do advogado. Assim, é mais que óbvio que apenas a parte financeiramente favorecida, que poderá pagar a seu advogado para apresentar o agravo, poderá ter alguma chance de êxito na demanda, o que torna a norma do artigo 557 do CPC ainda mais imoral. O Zé-ninguém, caso não consiga pagar seu advogado para apresentar o recurso, sofrerá calado e decepcionado com a decisão monocrática, ainda que tenha razão. Afinal, o “se quiser, recorra” não vale para o Zé-ninguém…

Em princípio, portanto, a decisão unipessoal fundada no caput do artigo 557 do CPC elimina, apenas, e só num primeiro momento, providências administrativas internas dos Tribunais: não há pedido do relator ao Presidente do órgão colegiado para inclusão em pauta; não há publicação na imprensa da pauta de julgamentos; não há intimações pessoais dos órgãos estatais essenciais à justiça; não há lavratura de acórdão; e, enfim, não há sustentação oral pelos causídicos, pois o CPC só a prevê para os julgamentos colegiados (artigo 544).

A visão do legislador, no caso, não foi muito além das consequências mais imediatistas da medida legislativa de delegar ao relator o poder de analisar o mérito de recursos, descurando-se que o sistema judiciário é bem mais amplo do que o Poder Judiciário, esquecendo-se que a suposta economia de recursos e de tempo promovida nos limites administrativos dos órgãos judiciais é contraposta pelos gastos que as partes tem na apresentação do agravo. Apresentado o agravo de que trata o § 1º do artigo 557 do CPC, será posto o recurso em mesa para julgamento pelo órgão colegiado competente, caso não haja retratação, e, assim, a tramitação processual alongar-se-á ainda mais, com prejuízo ao Judiciário e às partes; haverá pedido do relator ao Presidente do órgão colegiado para inclusão em pauta; haverá publicação na imprensa da pauta de julgamentos; haverá intimações pessoais dos órgãos estatais essenciais à Justiça; haverá lavratura de acórdão. Mas, bingo! Não haverá sustentação oral!

Portanto, parece bem razoável concluir que a eliminação da possibilidade de sustentação oral é a principal razão da adoção da decisão unipessoal sobre o mérito de recursos.

A propósito, convém lembrar que não é precisamente o ideal de celeridade do processo que está por trás da Lei 9.765, de 1998, que deu nova redação ao artigo 557 do CPC, conforme o que revelou o Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento de questão de ordem no RE 227.089-6-MG, relatado pelo ministro Maurício Corrêa, julgado em 8 de junho 2002, e publicado em 21 novembro de 2003, que contou com os valorosos votos vencidos dos ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, e Néri da Silveira. Antes de um compromisso maior com a celeridade, é o desconforto que têm alguns julgadores de ouvir a voz dos causídicos em sustentações orais que inspirou norma do artigo 557 do CPC. Na ocasião, o STF elegeu o bode expiatório das delongas processuais: os 15 minutos de sustentação oral pelos causídicos.

Explica-se: na oportunidade, decidiu o STF que a sustentação oral quando do julgamento do agravo do § 1º do artigo 557 do CPC tornaria inócua a alteração legislativa, “cuja finalidade essencial é a de dar celeridade a prestação jurisdicional”, de modo que bastaria atender-se ao princípio da celeridade jurisdicional (que à época do julgado sequer era um princípio explicitamente tratado pela Constituição) para não se violar a ampla defesa e o contraditório. Em outras palavras, disse a Suprema Corte que não precisaria existir tanto contraditório no processo, se ele fosse, pelo menos, uns 15 minutos mais expedito.

Felizmente, uma correção de rumos está por vir, por força do Projeto de Lei 8.084/2010, atualmente em tramitação pela Câmara dos Deputados, que pretende se tornar o novo Código de Processo Civil.

O Projeto do novo CPC, ao discorrer sobre os poderes do relator em seu artigo 888, embora mantenha a possibilidade de se excepcionar o princípio da colegialidade, limita a apreciação monocrática dos recursos nas hipóteses em que o relator estiver apoiado ao decidir em: i) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; ii) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos; iii)  entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.

A proposta, então, abandonou o apelo à expressão “jurisprudência dominante”, pois é certo que demonstram os Tribunais que às vezes sequer compreendem exatamente o que vem a ser “jurisprudência”, um termo que significa, em verdade, um conjunto de decisões reiteradamente proferidas pelos Tribunais num mesmo sentido sobre um determinado contexto de fato e de direito. Aliás, não é raro tomarem um singelo acórdão como sinônimo de “jurisprudência” e, para se chegar à ideia de “dominante”, basta citar mais uma decisão no mesmo sentido, ainda que todas sejam do mesmo relator, tomadas no dia anterior, num órgão fracionário de precária composição, de preferencia quando não houve sustentação oral pelos advogados nem qualquer debate pelos julgadores.

A exclusão da apreciação monocrática pelo relator dos recursos com fundamento no conceito fluido de “jurisprudência dominante”, proposta pelo projeto de Código, é uma medida possível nesse momento de combate inicial ao dogma da onipotência do julgador. Melhor seria, numa proposta mais arrojada, a exclusão total da possibilidade de apreciação monocrática, caso em que o direito à sustentação oral seria observado, de plano, sem delongas, sem maiores dispêndios, e sem que haja a necessidade de recorrer para tanto.

Quanto a esse aspecto, digno de nota e de aplausos também é o Projeto de CPC no ponto em que estende inequivocamente a sustentação oral ao julgamento do agravo interno contra decisão do relator em recurso de apelação ou recurso especial ou extraordinário (artigo 892, IV). Trata-se de compreensão profunda de que, apesar da força do dogma da onipotência do julgador refletida no julgamento pelo STF da questão de ordem no RE 227.089-6-MG, no nosso sistema constitucional não se faz Justiça calando a voz dos advogados mediante expedientes regimentais arbitrários.

À advocacia, como função essencial à Justiça, deve ser sempre resguardada a faculdade de falar da Tribuna e de convencer os julgadores, num órgão colegiado, que a causa concreta levada à discussão tem nuances que a fazem escapar a um enquadramento mecanizado em textos de súmula ou acórdãos proferidos em julgamentos de casos repetitivos. Assim, espera-se que, no futuro, superado de vez o dogma da onipotência do julgador, não seja necessário agravar da decisão monocrática do relator para que a advocacia faça ouvir sua voz num órgão judiciário colegiado.


[1] Segundo dados do IBGE, de 1990 para 2010, a população brasileira partiu de 146.917.459 para 190.755.799 habitantes, o que significa um incremento da ordem de 30% (http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/tabelas_pdf/Brasil_tab_1_4.pdf).

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