Prática medieval

Fim da tortura pode ser a pauta de todos nós

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26 de junho de 2013, 11h07

A população nas ruas parece pedir respostas para promessas descumpridas de nossa democracia. Uma dessas promessas descumpridas é o tratamento digno a toda pessoa e a proibição absoluta da tortura, seja ela como forma de castigo, seja como instrumento utilizado para obter informações.

Incontáveis mecanismos internacionais de direitos humanos já afirmaram enfaticamente que a tortura nos presídios brasileiros é ainda “generalizada e sistemática”. Talvez a visita mais impactante foi a de Nigel Rodley, Relator da ONU sobre Tortura, que realizou uma missão ao Brasil em 2002. Numa das frases mais lembradas de seu relatório, Rodley diz que ouviu de um dos detentos: “aqui nos tratam como animais e querem que depois nos comportemos como serem humanos”.

Depois de Rodley, outros mecanismos da ONU chegaram às mesmas conclusões. Em 2009, o Comitê Contra Tortura, depois de uma longa investigação afirmou que “a tortura e maus tratos similares continuam a ser utilizados de modo generalizado e sistemático”. O mais recente foi a missão do Subcomitê para a Prevenção da Tortura, de 2011, que afirmou esperar que o Governo brasileiro tome ações decisivas no sentido de erradicar a tortura e os maus-tratos infligidos a todas as pessoas privadas de liberdade.

Conclusões parciais de uma pesquisa em andamento desenvolvida pela ACAT, Conectas, IBCCrim, NEV/USP e Pastoral Carcerária mostram que a tortura no Brasil não chega ao Judiciário. A maioria dos casos analisados pelos Tribunais de Justiça dos estados brasileiros trata sobre tortura entre particulares e não sobre os casos de maus tratos perpetrados por agentes públicos. A tortura praticada por agentes públicos é sub-denunciada e não é investigada devidamente. Além disso, a perícia que pode comprová-la não é independente e acaba tronando a investigação ainda mais frágil. Todo esse cenário contribui para a perpetuação da tortura no Brasil.

Experiências em outros países mostram a importância de contar com mecanismos preventivos efetivos. Em 2007, o Brasil ratificou o Protocolo à Convenção contra a Tortura e se comprometeu a criar um Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura. Este Mecanismo tem como principal objetivo monitorar lugares de privação de liberdade com fins de prevenção da tortura, podendo entrevistar pessoas, ter acesso a documentos e propor recomendações às autoridades competentes, com o objetivo de erradicar a tortura no país.

Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para criar esse Mecanismo. Mas o projeto, como aprovado pela Câmara dos Deputados, não inclui um processo seletivo público para a eleição dos peritos que realizarão as visitas, o que compromete a independência dos membros. Ademais, não garante expressamente a faculdade do Mecanismo de realizar visitas aos locais de privação de liberdade independentemente de comunicação prévia às autoridades. A Câmara, além de excluir a garantia expressa de essa faculdade prevista no projeto original, ainda acrescentou a necessidade de aviso da visita ao Mecanismo Estadual — se houver — com 24 horas de antecedência. A não garantia de realização de visitas sem comunicação prévia esvazia o espírito do Protocolo Facultativo, pois retira a independência de atuação e exclui o poder dissuasório que visitas surpresas podem ter. O PL ainda pode sofrer modificações no Senado Federal. Isso é indispensável.

A tortura hoje afeta principalmente os alvos preferenciais de um sistema de justiça seletivo: jovens, pobres, negros e pardos. Sendo assim, é mais um elemento que conforma esse emaranhado de injustiças contra o qual a população se levanta. O Brasil fala nas ruas não às injustiças. E hoje, no Dia Internacional de Luta Contra a Tortura, o fim dessa prática medieval também pode ser a pauta de todos nós.

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  • Brave

    é procuradora do estado de São Paulo e professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000); do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007; 2008; e 2015); e Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidelberg - 2009-2014).

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    é diretora de Programas da Conectas.

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