Déficit federal

A excessiva estadualização da Justiça Eleitoral

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23 de junho de 2013, 20h10

A Justiça Eleitoral é tradicionalmente classificada como integrante da chamada justiça especializada, contrapondo-se à denominada justiça comum.

No Brasil, os órgãos da justiça especializada são, normalmente, federais, isto é, são organizados pela União e mantidos com verbas federais. Os órgãos da justiça comum, de sua vez, tanto podem ser federais quanto estaduais.

São órgãos da Justiça Eleitoral, a teor do art. 118, da CF/88, c/c art. 12, do Código Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral, os Tribunais Regionais Federais, as Juntas Eleitorais e os Juízes Eleitorais.

A metodologia de cooptação dos membros da Justiça Eleitoral, responsáveis pela materialização da sua competência, é deveras curiosa, para não dizer um tanto quanto obsoleta.

Na primeira instância, como juízes eleitorais, funcionam juízes estaduais, ou seja, juízes integrantes da justiça comum estadual. Perante juízes eleitorais assim recrutados, funcionam promotores de justiça, não do Ministério Público Federal, mas sim dos Ministérios Públicos dos Estados da Federação. No caso do Distrito Federal, que, na lição de José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 319), não é nem Estado nem Município, mas sim, em certo aspecto, mais do que o Estado, porque lhe cabem competências legislativas e tributárias reservadas aos Estados e Municípios (arts. 32, § 1º, e 147, da CF/88), e, sob outro aspecto, menos do que os Estados, porque algumas de suas instituições fundamentais são tuteladas pela União, a exemplo do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Polícia (art. 21, incisos XIII e XIV, da CF/88), atuam, como juízes eleitorais, juízes de direito ligados ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, e, como parquet, promotores do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, todos mantidos pela União (art. 21, inciso XIII, da CF/88).

Anote-se que, vedada a divisão do Distrito Federal em Municípios (art. 32, da CF/88), não tem lugar, em seu território, eleições municipais propriamente ditas.

É lícito concluir, então, sem maiores esforços interpretativos, que, na primeira instância, ressalvado o caso do Distrito Federal, não há qualquer participação jurisdicional de uma “justiça federal especializada”, o que significa que as eleições municipais, isto é aquelas cujos litígios são, pela vez primeira, solvidos pelos juízes eleitorais de primeiro grau, são levadas a efeito pela “justiça estadual”.

No segundo grau de jurisdição eleitoral, estão instalados os Tribunais Regionais Federais, um na capital de cada Estado e outro no Distrito Federal (art. 120, da CF/88, c/c o art. 12, inciso II, do Código Eleitoral). Por força do que dispõem a Constituição Federal (art. 120, § 1º) e o Código Eleitoral (art. 25, inciso I), os TREs são formados por 2 (dois) juízes dentre os Desembargadores do Tribunal de Justiça, 2 (dois) juízes, dentre juízes de direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça, de 1 (um) juiz do Tribunal Regional Federal, com sede na capital do Estado ou no Distrito Federal, ou, não havendo, de juiz federal, escolhido, em qualquer caso, pelo Tribunal Regional Federal respectivo, e, finalmente, por 2 (dois) juízes dentre deis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça e nomeados pelo (a) Presidente (a) da República.

De se notar, então, que, mesmo servindo perante as Cortes Eleitorais de segundo grau, como Procurador Regional Eleitoral, um Procurador da República (arts. 76 e 77, da LC nº 75/93, c/c o art. 27, do CE), dos (7) sete membros julgadores dos Tribunais Regionais Eleitorais, 6 (seis) são oriundos do “sistema estadual de justiça”, o que equivale, em termos percentuais, a mais de 85% (oitenta e cinco por cento).

Interessante perceber, ainda, que os respectivos Presidentes e Vices são escolhidos dentre os Desembargadores estaduais (art. 120, § 2º, da CF/88, c/c o art. 26, do CE), mesmo havendo Desembargadores Federais em 5 (cinco) Estados onde instalados os 5 (cinco) Tribunais Regionais Federais hoje existentes (Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Recife) e juízes federais, em profusão, no Distrito Federal e em todos os Estados da Federação.

Há, pois, sem tergiversação, um absurdo déficit de “participação federal” na atividade judicante dos Tribunais Regionais Eleitorais.

No âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, diferentemente, há um reencontro parcial da Justiça Eleitoral com membros da Justiça Federal, considerada em sentido demasiado amplo e fora de um tecnicismo exacerbado. Dos 7 (sete) integrantes do Tribunal Superior Eleitoral, a teor do art. 119, inciso I, da CF/88, c/c o art. 16, inciso I, do Código Eleitoral, 3 (três) advêm do Supremo Tribunal Federal, 2 (dois) do Superior Tribunal de Justiça e, finalmente, 2 (dois) por nomeação do (a) Presidente (a) da República, dentre (6) seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo Tribunal Federal. De acordo com o parágrafo único, do art. 119, da CF/88, Presidente e Vice do Tribunal Superior Eleitoral serão eleitos dentre os 3 (três) Ministros oriundos do Supremo Tribunal Federal e o Corregedor Eleitoral dentre os 2 (dois) Ministros do Superior Tribunal de Justiça, que, diga-se de passagem, tem um terço dos seus membros colhidos dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais (art. 104, inciso I, da CF/88).

Assim divisado o estágio atual de coisas, pergunta-se: no momento em que são criados 4 (quatro) novos Tribunais Regionais Federais, mercê de Emenda Constitucional (PEC nº 544) promulgada em 06 de junho próximo passado, com crescente massificação do quadro de juízes federais, não é chegada a hora de desfazer ou, quando não muito, minimizar o déficit de “participação federal” na Justiça Eleitoral?

Ora, se em dado momento histórico, havia um descompasso brutal entre o número de juízes federais e os postos de juízes na Justiça Eleitoral, sendo certo, ainda, que a Justiça Federal, por bastante tempo, foi refratária a ideia de interiorização, isto é, relutou em instalar varas federais no interior do país, não é isso o que ocorre modernamente.

Percebe-se, claramente, que, de uns tempos para cá, a Justiça Federal ganhou musculatura suficiente, encorpou-se administrativamente, e, hoje, não se pode negar, tem maior capacidade de participação real na composição dos órgãos judicantes da Justiça Eleitoral. O mesmo vale para o Ministério Público Federal. Onde houver juiz federal e Ministério Público Federal, parece chegada a hora de os mesmos conduzirem as eleições municipais.

Na segunda instância, também é crível sustentar que há espaço suficiente não só para a ampliação do número de Desembargadores e juízes federais nos quadros dos Tribunais Regionais Eleitorais, mas também parece inadiável recaia a escolha dos seus Presidentes dentre os membros oriundos da Justiça Federal.

Tamanha “estadualização” da Justiça (Federal) Eleitoral tem ensejado, com o devido respeito, alguns problemas teóricos e práticos.

Em primeiro lugar, tem-se que a gestão administrativa das verbas federais fica, assim, a cargo de autoridades judiciárias estaduais, o que pode redundar, perfeitamente, em certa falta de harmonia e de entrosamento com as práticas e rotinas burocráticas que são próprias da esfera federal.

Por outro lado, seria muita hipocrisia desprezar o fato de que, por força de pressões políticas locais, muito mais inflexíveis no plano estadual do que no federal, o menor peso (quantitativo) do voto proferido pelo representante da Justiça Federal (um de sete), seja desembargador seja juiz federal, tem contrastado, muitas vezes, com uma maior dependência política dos votos proferidos pela maioria estadual do tribunal. Demais disso, na medida em que o Tribunal de Justiça elege, para funcionarem no Regional Eleitoral, dois de seus membros dentre desembargadores e dois juízes de direito, a ele hierarquicamente subordinados e, por fim, ainda indica os juristas sobre os quais recairão as escolhas do Presidente da República, fica claro que tudo conspira, em tese, para que se forme, muitas vezes, uma covarde dicotomia: 6 (seis) contra 1 (um). Costuma-se apontar, em caráter verdadeiramente informal, ao certo, dentre os que atuam no Tribunal Superior Eleitoral, o voto isoladamente vencido do membro federal como algo sugestivo de uma maior conotação política de atuação da Corte no caso concreto.

Tem-se, então, que uma maior “federalização” dos Tribunais Regionais Eleitorais, em termos de peso de votação, parece de todo conveniente, sob o prisma teórico, sem prejuízo de se adiar a mudança onde a mesma não se mostrar viável em face da ainda rarefeita presença da Justiça Federal em certas unidades da federação. Isto porque eventuais escolhas poderiam recair sobre os mesmos operadores do direito e a provável repetição de protagonistas poderia emperrar muito do que existe de salutar na dinâmica das composições dos tribunais eleitorais, a exemplo do que seria uma maior oxigenação das teses jurídicas e a eliminação da tendência que existe à formação de feudos ou de castas judiciárias em tão politicamente sensível ramo do Direito.

Ao julgar a Petição nº 332-75.2011.6.00.000 – Classe 24, da Relatoria do Min. Gilson Dipp, com acórdão publicado em 09.05.2012, o Tribunal Superior Eleitoral, por maioria, vencido o Min. Marco Aurélio, rechaçou o pleito formulado por diversas associações de juízes federais quanto à alteração da Resolução-TSE nº 21.009/2002, que disciplina o exercício da jurisdição eleitoral de primeiro grau perante as zonas eleitorais por juízes de direito, de modo a compreender nessa categoria os juízes federais.

Na oportunidade, ressaltou-se o eclético caráter “federal e nacional da Justiça Eleitoral”, entendendo o relator que apenas “num quadro normativo novo, a distribuição dessa competência e jurisdição poderia tocar a uma justiça federal eleitoral própria, como sistema judicial e jurisdicional lógico e, pois, equidistante da Justiça Estadual comum e da Justiça Federal comum”. Para o relator, o texto constitucional, no art. 120, § 1º, I, b, “expõe regra que menciona explicitamente juízes de direito como representativos da Justiça Estadual comum” e essa indicação guarda sintonia com o “espírito” da expressão do art. 32, do Código Eleitoral.

Promovendo relevante contraponto, o Min. Marco Aurélio assentou que não se pode deixar impressionar pela expressão “juiz de Direito” porque o federal também o é, tomado como antônimo de juiz leigo. E, mais, que, no momento da edição do Código Eleitoral, e dessa referência reiterada a juiz de Direito, sequer existia a Justiça Federal propriamente dita, recriada apenas em 1966.

O voto proferido pelo Min. Marco Aurélio despertou a curiosidade da Min. Cármen Lúcia, especificamente quanto aos parâmetros de uma execução a curto prazo de eventual modificação das regras vigentes. Também parece ter aguçado a reflexão do Min. Marcelo Ribeiro, a ponto de S. Exa., resgatando a memória histórica de a pretendida modificação constituiu uma importante bandeira da Ordem dos Advogados do Brasil, haver registrado que via “com bons olhos a proposta de se ‘federalizar’ a composição da Justiça Eleitoral, ou seja, trazer mais juízes federais para o âmbito da Justiça Eleitoral”, muito embora reputasse o momento como inoportuno para as alterações pretendidas, sem prejuízo de que a discussão fosse “renovada em ano não eleitoral”.

O Min. Lewandowski, de sua vez, ressaltou que o sistema tem falhas, mas que seria um passo demasiadamente largo dar uma interpretação conforme a Constituição em pedido de natureza administrativa.

A ementa do acórdão, exprimindo a riqueza e a sofisticação da discussão, levada a efeito pela Corte Superior Eleitoral, registrou a conveniência de que a matéria venha a ser tratada pela Comissão de Juristas constituída pelo Senado Federal para a elaboração de anteprojeto de Código Eleitoral.

Como se viu, a problemática é viva e candente. E, contra o acórdão, pendem de julgamento embargos de declaração.

Não estará lançada a semente de grandes transformações?

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