Segunda Leitura

O protesto nas ruas e os reflexos no sistema de Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de junho de 2013, 8h00

Spacca
Começou em São Paulo, na tarde do dia 13 de junho. Estudantes, liderados por um grupo social denominado “Movimento Passe Livre”, protestaram contra o aumento da passagem de ônibus, que de R$ 3 foi para R$ 3,20 na capital paulista. Houve reação policial, com balas de borracha e bombas de efeito moral. O efeito foi multiplicador. Outros grupos se associaram e, através de redes sociais, milhares de pessoas se mobilizaram. Pouco a pouco, quase todas as capitais estavam envolvidas no mais surpreendente movimento da vida política brasileira.

A surpresa vem do fato do país estar em seu melhor momento econômico. Ninguém pode negar, independentemente de sua crença política, que o Brasil atravessa fase de prosperidade. O acesso à moradia foi facilitado, a oferta de empregos permanece em alta e, ao contrário da Europa, o país avança rumo ao reconhecimento como potência emergente. O gigante sai do berço esplêndido.

Pois bem, aí está o paradoxal. Qual, então, a razão de tanta revolta? Afinal, o próprio movimento tem frentes diversas e pouco definidas. Começou com a elevação do preço do transporte urbano, porém estendeu-se a outros temas. Nos cartazes dos manifestantes veem-se apelos contra as obras da Copa do Mundo, corrupção (em termos genéricos), partidos políticos, sistemas de saúde, educação e até mesmo a ditadura, muito embora estejamos em regime absolutamente democrático.

A diversidade não é só de temas, mas também de manifestantes. Há estudantes idealistas, lutando com a única arma que possuem, para que este seja um país melhor. Donas de casa, idosos, pessoas de distintas classes sociais. E há também outros, com propósitos absolutamente diversos, que são os que destroem o patrimônio público ou privado, tentam invadir prédios públicos e atacam os policiais. Em que pese o lado positivo do exercício da cidadania, há nisto tudo o risco de uma anarquia violenta. Não há limites, racionalidade ou controle da multidão enfurecida.

Muitos tentarão explicar o movimento, do ponto de vista econômico e social. Na verdade, serão meras opiniões, pois ninguém sabe a resposta. É possível, todavia, arriscar alguns palpites. A revolta não tem fundamento econômico. Ela é contra a corrupção, a impunidade e a deficiência dos serviços públicos essenciais, como saúde, educação e segurança.

Fiquemos na nossa área de interesse, segurança pública e administração da Justiça. Ninguém aguenta mais agressões gratuitas, como o fogo colocado em uma dentista porque só tinha R$ 30. Idem a total falta de efetividade da Justiça nos processos envolvendo crimes de corrupção ou homicídios com veículos. Os recursos se sucedem, levando o Estado-Judiciário à total incredibilidade.

A corrupção vem avançando no Brasil e isto é fato notório, o que, para o artigo 334, inciso I do Código de Processo Civil, não depende de provas. Corrupção sempre existiu em qualquer época ou civilização. Todavia, quando ela não é reprimida, alastra-se. Mas qual o motivo dessa chaga espalhar-se como um câncer por todo o tecido social? Em visão realista, penso que o que leva ao aumento da corrupção é a impunidade. E não vejo a educação como solução para este problema. Talvez até o agrave, pois o corrupto culto aprimora seus métodos de ação, torna-os mais camuflados.

Com relação à impunidade, em passado recente tivemos o AI-5, de triste memória, que inibia a corrupção do agente público pelo medo. Em seu nome foram praticadas injustiças, já que não existia direito de defesa. Contudo, depois de 1988, partimos para o oposto. Ao necessário e imprescindível direito de defesa não se contrapôs o direito a uma decisão judicial rápida e eficiente. Quando liberdade e segurança deveriam andar juntas, ocorreu o desequilíbrio. Para aquela, tudo. Para esta, nada.

Sobre o artigo 5º da Constituição, que trata dos direitos e garantias individuais, temos rica doutrina e jurisprudência farta. Já o artigo 144 da Carta Magna, que assegura a todos os brasileiros o direito à segurança pública, não é conhecido nem pelos estudantes de pós-graduação em Direito. A doutrina pátria não lhe dedica mais do que duas páginas nos comentários à Carta Magna. A jurisprudência não registra precedentes. Na academia não existem monografias de graduação, dissertações de mestrado ou teses de doutorado.

Em nome do sagrado direito de defesa criaram-se tantos obstáculos à investigação e ao julgamento, que nos crimes de corrupção a impunidade tornou-se regra. A começar pelo entendimento adotado pelo STF, por 7 votos contra 4 (HC 87.048/MG, relator Eros Grau, julgado 5 em fevereiro de 2009), no sentido de que a execução penal só pode dar-se após o trânsito em julgado da sentença definitiva, o que equivale a dizer oito, dez ou 12 anos de tramitação de um processo criminal.

Por causa desta orientação do STF, adotada depois pelos demais Tribunais, um homicida confesso é condenado a muitos anos de prisão pelo Tribunal do Júri, sai livre pela porta da frente, deixando a família da vítima atônita. E certamente ansiosa por participar de muitas passeatas e, em casos extremos, de destruir o que vê na sua frente. A este homicida se dará o direito de recorrer ao TJ, STJ e STF, sempre livre, desde que prove ter residência fixa (basta uma conta de luz) e emprego (basta a declaração de um amigo).

Esta é a situação mais grave, mas não é a única. Ao infrator também se busca assegurar outras regalias, sempre com base na Constituição: a) calar-se diante da polícia ou do juiz; b) não recolher fiança se não dispuser de meios para fazê-lo; c) estar presente nas audiências, mesmo que a testemunha se limite a elogiar seus antecedentes e o deslocamento importe em enorme gastos públicos; d) condenação em pena de multa é um quase nada jurídico, pois, se o condenado não pagar, vira cobrança por execução fiscal ; e) inexistência de presídios, o que leva os condenados a crimes graves a cumprir a pena em regime semiaberto, via de regra sem ter quem os vigie; f) vedação por Súmula Vinculante do STF ao uso de algemas, dando aos criminosos a oportunidade de evadir-se ou agredir alguém e, ao policial, o risco de ver-se processado por abuso de autoridade; g) redução das penas por isso ou por aquilo, de modo que uma grave condenação a 12 anos pode significar o cumprimento de dois apenas, passando o condenado ao regime semiaberto.

A sociedade não entende estas nuances processuais. O raciocínio da população é mais simples, direto. Vê em situações como esta, impunidade. A soma de tais práticas, legislativas ou jurisprudenciais, levam os julgamentos na esfera penal a uma ineficiência ímpar. Estimula o infrator ao crime violento ou ao sofisticado (crimes de colarinho branco), porque em ambos, com uma orientação jurídica mediana, pode safar-se das penas da lei ou, pelo menos, da prisão.

O melhor exemplo disto é o caso conhecido por “mensalão”. Não estou analisando o mérito. Seria uma irresponsabilidade, pois não li o processo. Portanto, respeito todos os pontos de vista exteriorizados nos votos dos ministros do STF, vencedores ou vencidos. Interessa-me apenas registrar que, julgada a Ação Penal no fim do ano passado, pela única e última instância, não foi e não será tão cedo julgada em definitivo. Não se executa.

Em suma, o protesto nas ruas como o que estamos assistindo é um fenômeno novo na história do Brasil. É preciso avaliá-lo com calma. Mas algo fica bem claro. O povo está cansado da ineficiência do Poder Público, da corrupção e da impunidade. Dá o seu aviso. Amanhã a invasão de um prédio público pode consumar-se e alguns pagarem com a própria vida. Na esfera penal, está na hora de repensar-se a legislação e a jurisprudência extremamente liberais, muitas vezes fundadas na doutrina de juristas estrangeiros que nada têm a ver com a realidade do hemisfério sul. Antes que seja tarde.

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