Definição de livro

Negar imunidade tributária a e-book é contrassenso

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20 de junho de 2013, 12h35

*Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a imunidade tributária (não incidência de tributos) até mesmo para álbuns de figurinhas, segundo o escopo de não embaraçar o acesso à cultura, o que é objetivo prodigalizado na Constituição Federal. Continuará, não obstante, a não reconhecer o mesmo caráter nas obras publicadas em mídia eletrônica? A obra de Platão terá conteúdo e finalidade diferente por estar num e-book? Isto fará com que deixe de ser um livro?

Há, no entanto, bons auspícios, pois, recentemente, o STF admitiu a repercussão geral da questão, isto é, que a matéria tratada representa um interesse geral que ultrapassa os limites do interesse individual das partes envolvidas. Tal fato ocorreu no Recurso Extraordinário 330.817, interposto pela Fazenda do Rio de Janeiro contra a Editora Elfez, que propugnava a imunidade tributária da Enciclopédia Jurídica Soibelman em versão eletrônica. Dessa forma decidir-se-á, portanto, se o livro eletrônico tem também direito a tal imunidade.

A causa tem suscitado a atenção do meio jurídico, principalmente dos tributaristas. E não é para menos, diante do imenso potencial do mercado de livros eletrônicos, com ênfase em e-readers, bastando observar a crescente venda de tablets no país. Como exemplo, basta lembrar que, segundo o relatório anual do BookStats, realizado para a Associação de Editores Americanos, os livros eletrônicos já representam 20% do faturamento editorial, com a impressionante cifra de três bilhões de dólares.

Inicialmente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendera favoravelmente à imunidade, o que originou o mencionado recurso. Mas mediante decisão monocrática (individual) do ministro Dias Toffoli, o Supremo Tribunal Federal deu razão à Fazenda. A questão, contudo, ganhou renovado alento a partir de novo recurso interposto pela Editora, inclusive juntando na ação publicações em jornais sobre o caso, o que comprovava a percepção da importância da questão pela imprensa, que para ela atinou primeiramente, levando o STF ao seu reexame e, finalmente, admitir a transcendência do feito.

Não se pode afirmar que nesse caso houve melhor sorte do que no processo da Ed. Nova Fronteira, relativo à edição eletrônica do Dicionário Aurélio; o que há é sinal dos tempos atuais, nos quais a realidade das publicações eletrônicas não pode mais ser ignorada pelos Tribunais, sendo incoerente com isto o fato do próprio Poder Judiciário ter suas publicações apenas no Diário Oficial Eletrônico.

Recentemente, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região revogou a liminar favorável à suspensão da exigibilidade de tributos sobre a importação de livros eletrônicos (II, IPI, PIS e Cofins) da marca Kobo, em ação ajuizada pela Livraria Cultura, pelo que o processo ora em comento reveste-se de maior importância ainda, uma vez que será a oportunidade de avaliação definitiva da questão pelo STF, servindo como norte do futuro entendimento a este respeito.

Vislumbra-se, a partir desse julgamento, o cenário futuro dos negócios das gigantescas Amazon e Apple, recentemente estabelecidas no Brasil, que movimentam fortunas nesse mercado.

O cerne da questão é a definição de livro. A Constituição não o define, mas tão somente determina a não incidência de tributos sobre livros e o papel destinado a sua impressão. Noutras palavras, estende ao papel a imunidade, mas não subordina o conceito de livro a sua impressão em papel, do mesmo modo que se fosse aplicada igual disposição "às cadeiras e à madeira destinada a sua confecção", uma cadeira de metal não deixaria de ser cadeira.

O que determinou a imunidade tributária foi a finalidade de difusão da cultura, com isso coadunando-se perfeitamente o conceito de livro como "obra escrita ou ilustrada transmissora de conteúdo intelectual"; esta característica é a substância do livro num sentido aristotélico, ou seja, aquilo que subsiste ao longo de todas as alterações da forma.

A chamada "Lei do Livro" (10.753/2003), promulgada muito depois de iniciado o processo sobre o qual ora se debruça o STF sob a atenção geral de toda a sociedade, embora expresse literalmente o propósito de difusão da cultura (artigo 1º, II) caracterizando o livro como seu "meio principal", limitou o conceito de livro ao papel. Como tal limitação contraria o próprio propósito espelhado na Constituição e agasalhado pela mesma lei, espera-se que o STF exerça o chamado controle difuso, para decretar incidentalmente, no caso concreto desse processo, a inconstitucionalidade desta disposição.

Sob o ponto de vista ambiental, o contrassenso nesse caso é gritante, pois enquanto se dispõe a imunidade tributária ao papel que gera a destruição de florestas, quer-se crivar com ônus fiscal o livro eletrônico. O consumo do papel em publicações atinge níveis preocupantes, de modo que a migração de leitores para as versões digitais é um elemento a mais a favorecer a ecologia.

Por meio desse processo, o Supremo finalmente despertou para a verdadeira estatura da questão e o enorme leque de consequências que dele advirão.

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