Reinserção social

A fórmula crime e castigo deve somar a reabilitação

Autor

  • Nuno Caiado

    é perito em probation (penas e medidas de execução na comunidade) e em monitoramento eletrônico; trabalha nos serviços de probation de Portugal; Diretor dos Serviços de Monitoramento Eletrônico de Portugal; membro da Comissão de Estudos para o Monitoramento Eletrônico de Detentos da OAB-SP.

18 de junho de 2013, 8h34

Crime e castigo era uma fórmula simples em que, outrora, se acreditava que era funcional. A reação penal assentava essencialmente na privação da liberdade, ou seja, no controle de alta intensidade fisicamente incapacitante. O falhanço desta ideologia, amplamente documentado na literatura técnica e no romance, não foi atempadamente ouvido pelos poderes públicos, fato a que não é estranho as ideologias autoritárias da primeira metade do século XX. Só após a 2GM, os EUA, num contexto de progresso económico e social, o Canadá e a Europa desenvolveram mecanismos alternativos à prisão, orientados para a ressocialização dos delinquentes, assentes em um controlo de baixa ou média intensidade, não fisicamente incapacitante, em técnicas pedagógicas e na compensação da exclusão social, fenômeno que se acreditava estar na base da criminalidade. O balanço das chamadas alternativas à prisão não foi, porém, exaltante. Ainda assim, os sistemas penitenciários continuam a assentar nestes dois pilares: o prisional e o da probation/execução de penas e medidas na comunidade, sendo este último francamente maioritário em muitos países. Na passagem do milénio, o monitoramento eletrônico tem-se vindo a constituir em um terceiro pilar de características intermédias (CAIADO, 2012).

Desde os anos 80 que a criminologia não para de pensar nos fenômenos criminais e de tentar encontrar novas soluções penais. Mas, mais do que inventar novos territórios para a punição, parece que o caminho está em organizar e qualificar os existentes considerando a população alvo.

Neste aspeto, pensando no Brasil, cremos que existem quatro problemas principais e estruturantes de certo modo identificados:

Confusão entre sistema penitenciário e sistema prisional

O sistema penitenciário continua a tender a ser identificado com o sub-sistema prisional; enquanto não for compreendido que aquele compreende pelo menos os três pilares acima referidos, não haverá resolução, pois a lógica de intervenção pública é a de reforçar a oferta (mais e mais estabelecimentos prisionais) o que estimula a procura (mais e mais decisões judiciais de prisão efetiva). Em um recente debate no senado Federal, foi referido que “a reincidência é muito alta. São urgentes a ampliação de vagas e o aperfeiçoamento do sistema prisional” [1] o que demonstra que o paradigma prisional é predominante. Dadas as condições em que opera, o sub-sistema prisional torna-se meramente retributivo, por vezes ferozmente castigador, mostrando como a tendência punitiva dos estados se pode sobrepôr à generosidade de algumas leis que ele próprio, inconsequentemente, produz.

Crescimento do sistema prisional
Independentemente da imprescindibilidade do sub-sistema prisional, que ninguém de bom senso põe em causa, este regista continuamente e desde há décadas um crescimento desproporcional, consumindo recursos públicos de dimensão gigantesca e impar no mundo, numa espiral que parece imparável, o que é, só por si, um quadro de absoluta insustentabilidade a médio prazo (para não dizer de imediato).

“Penas alternativas” com expressão diminuta
O sub-sistema das chamadas “penas alternativas” tem uma expressão pouco significativa em termos estatísticos, sendo grosseiramente desinvestido em termos comparativos com o pilar prisional, não possuindo sequer uma estrutura organizativa federal e, em muitos casos, estadual.

Em nenhum dos pilares é feita uma avaliação de risco criteriosa por manifesta impossibilidade material; consequentemente, não há intervenção diferenciada consoante a idade, a situação processual, o risco, as condições pessoais e sociais dos condenados. Tendencialmente, todos são tratados do mesmo modo nos tribunais e no interior do sistema penitenciário, em especial no sub-sistema prisional. Por outras palavras, mesmo quando os poderes públicos reconhecem a necessidade de a intervenção penal conter uma forte dimensão de prevenção especial, ou seja, de ressocialização, esta fica prejudicada pela inexistência de condições objetivas para se realizar.

Em resumo, independentemente do teor da legislação em vigor, cuja bondade e carácter humanista se reconhece, subsiste uma prática dominante que traduz a extensão da velha equação crime e castigo, onde a reabilitação tem lugar ocasional e raro, e não importando verdadeiramente se o castigo tem efeitos benéficos. Sabemos, pela investigação e pela prática quotidiana, que regra geral, não tem.

Fórmulas renovadas
Hoje, o senso comum, e a opinião mais diferenciada na comunidade jurídica e científica, reconhece a máxima de que as prisões são “escolas do crime”, expressão que, significativamente, tem tradução em todas as línguas do mundo. Por isso, quando se fala das reações penais e da sobrelotação a que o sistema penitenciário está sujeito, fala-se também da necessidade de prevenção criminal e de desenvolver ações de reinserção social. Trata-se, pois, de fórmulas de ação penal renovadas que incorporam uma certa modernidade de pensamento devido à evidência de que a equação crime e castigo está falida e é ineficiente.

Esta abordagem é, em princípio, útil e interessante, mas existem riscos apreciáveis nela. Porquê? Porque ela desenvolve-se num estado de ingenuidade sobre o que são a prevenção criminal primária e a reinserção social. Por isso, esta nova equação apresenta fragilidades.

Quanto à prevenção criminal primária, desde logo anterior à da própria ação penal, nota-se que ela é confundida com a melhoria das condições de vida da população. A ideia motriz é de que com melhores condições de vida, haveria uma diminuição da criminalidade. Tal não é exato. É inequívoca a estreitíssima relação entre a pobreza e exclusão social e a criminalidade, muitas vezes claramente como causa e efeito; mas reduzir a causalidade do crime às condições de vida da população é um erro de análise grave. Na verdade, olhando a evolução do Brasil que nos últimos anos cresceu economicamente e que formou uma classe média eliminando largos setores desfavorecidos, não vemos o respectivo impacto na diminuição da criminalidade reportada. Do mesmo modo, muitos países europeus que fizeram evoluções notáveis em termos do welfare das suas populações (nomeadamente os escandinavos) não colheram simetricamente resultados em termos judiciais, havendo mesmo um aumento do crime durante a segunda metade do século XX e desde então até aos nossos dias[2]. Portanto, a melhoria das condições de vida não implica necessária e automaticamente, a quebra da taxa de criminalidade reportada.

A prevenção criminal primária é relevante mas é distinta do acima referido; em geral, ela incide sobre comunidades relativamente a matérias que podem constituir risco específico para certas faixas da população, mais frequentemente, os jovens. Pelos alertas google, é notório que em todo o Brasil fervilham iniciativas que podem ser classificadas de prevenção criminal primária.

Quanto à reinserção social, esta é frequentemente associada à compensação dos deficits sociais patenteados pelos condenados. Nesta linha, encontram-se atividades relacionadas com a compensação de falhas sociais (injeção de dinheiro, acesso a serviços de saúde) e de competências pessoais básicas (como saber ler). Assim, encontram-se sobretudo nas prisões atividades laborais, formação profissional e artística, atividades lúdicas ou de cariz alegadamente terapêutico visando o aumento da auto-estima. A quase totalidade destas iniciativas não tem controlo cientifico nem avaliação, sendo fundamentadas em crenças de eficiência e não em eficácia comprovada. De resto, não é invulgar que produzam efeitos paradoxais, criando delinquentes melhor preparados para passar a novos estádios da sua carreira criminal. O problema descrito é claramente universal e tem significativa expressão no Brasil.

Por outro lado, existe uma outra narrativa, que serve de sustento às chamadas “penas alternativas”, mas que se encontra também em meio prisional, que refere que o contato dos condenados com as suas famílias é propiciador de uma evolução positiva, ignorando ou esquecendo que foi nelas que, com grande probabilidade e frequência, se criaram as condições para a ocorrência do crime ou para o início de uma carreira criminal. Esta narrativa também tem igualmente enformado a descrição dos benefícios do monitoramento eletrônico. Na verdade, o regresso ao meio familiar pode facilitar ou dificultar a adaptação social e a normalização dos comportamentos, o que dependerá de um amplo conjunto de fatores, desde as condições ambientais às concretas da família (rica ou pobre, é indistinto) até ao modo como o delinquente a enfrenta e vivencia.

Novas fórmulas
Não existe propriamente uma história de grande sucesso associada ao processo penal. Tal constatação não nos deve desmobilizar na procura de abordagens e conceitos operativos que ofereçam melhores resultados na gestão dos fenómenos criminais. A ciência contemporânea tem dado provas de que pode ajudar em três aspetos críticos na compreensão do crime, indispensável a avaliar pessoas e a projetar intervenções consequentes nas intervenções qualificadas orientadas para a diminuição do risco e a desistência do crime na avaliação dessas intervenções, tendo em consideração os delinquentes envolvidos, os interventores e a especificidade do contexto em que aquela decorre (fatores sociais, ambientais e políticos).

Nesta matéria, existem avanços metodológicos e epistemológicos importantes que conduzem a novas fórmulas que combinam a orientação para a reabilitação do delinquente com a segurança da sociedade. Raramente referidos no Brasil, os trabalhos de investigação e conceptualização dos canadenses D.A Andrews, James Bonta e Stephen Wormith, entre outros, estão na linha da frente de novas equações. Estas personalidades são marcantes nos nossos dias por terem desenhado instrumentos de avaliação de risco, nomeadamente o LS/CMI – Level of Service/Case Management Inventory e o modelo de intervenção RNR risk-need-responsivity, ambos destinados a ajudar os profissionais penitenciários na sua ação avaliativa, na diferenciação qualitativa das intervenções, para a reabilitação do delinquente e, consequentemente, para a segurança da comunidade.

O LS/CMI é o mais atual desenvolvimento daqueles autores e consiste num instrumento (a adaptar em cada sociedade com supervisão dos seus proprietários). O instrumento permite um exame quantitativo das caraterísticas dos delinquentes e de um largo espetro de situações relevantes para a tomada de decisões sobre o nível de supervisão e intervenção. É, afinal, um diagnóstico diferencial através da identificação e medição dos fatores de risco gerais e específicos e as necessidades de contenção dos comportamentos de adultos ou jovens adultos.

Por seu lado, o modelo de intervenção RNR tem uma consistência teórica e é o prolongamento do instrumento de avaliação referido. Está vocacionado para proporcionar intervenções qualitativamente diferenciadas de acordo com graus de risco (baixo, médio, médio alto, elevado), sendo possível avaliar em cada momento a evolução do delinquente recorrendo ao LS/CMI. As intervenções incidem nos fatores de risco que podem ser de natureza pessoal, familiar ambiental/social, cognitiva, de saúde, entre outras.

Há três vantagens principais nestes instrumentos:

1. permitem um monitoramento constante da atividade dos técnicos

2. a atividade dos técnicos deve ser diferenciada em função das necessidades, não tratando todos os delinquentes de igual modo e, assim, não desperdiçando recursos

3. podem ser usados quer em meio prisional quer com delinquentes a cumprir pena na comunidade.

Contudo, desconhece-se se têm sido aplicados em contextos de crime endémico e generalizado, o que poderá constituir um limite, contudo não superável. Outro limite é que pressupõem apreciável quantidade de técnicos especializados que produzam intervenções com o sujeito e as variáveis externas.

Se é verdade que existem zonas do Brasil onde o crime é endémico e potenciado por fatores ambientais (e, conjunturalmente, potenciado ou retraído por outros de natureza politica), é igualmente certo que a resposta dos poderes públicos se tem centrado no reforço das condições do sistema prisional, não havendo correspondente investimento nas chamadas “penas alternativas”. A massificação prisional decorre de um paradigma conceptual da pena, ideologicamente marcado, mas também da urgência da resposta (sem validação da ciência) às demandas judiciais, a par de uma incapacidade estratégica de pensar como inverter a curva de crescimento.

Neste contexto de exacerbada massificação, não será viável recorrer a meios técnicos como o questionário LS/CMI e o modelo de intervenção RNR. Mas eis o paradoxo: sem eles, ou outros equivalentes, não será possível distinguir os casos dos delinquentes, não será possível ajudar os tribunais a decidir adequadamente, nem a diferenciar a intensidade e qualidade das intervenções com a população prisional ou com os delinquentes que cumprem penas na comunidade.

Deste modo, o circuito fechado só poderá ser quebrado pela adoção de uma estratégia política que favoreça a inversão do ciclo de oferta e procura no sub-sistema prisional, abrindo uma porta ao fortalecimento do sub-sistema das penas comunitárias e ao monitoramento eletrônico regulado e certificado. Só a paridade entre os sub-sistemas que compõem o sistema penitenciário poderá reduzir os problemas hoje existentes e permitir uma nova equação em que ao crime e castigo se some uma efetiva reabilitação; isso , hoje, depende desse processo de inovação, que tarda em chegar.

ANDREWS, D.A., BONTA, James. (2006) “The Psychology of Criminal Conduct, 5th edition”, ed Anderson, EUA

BONTA, James, ANDREWS, D.A. “Risk-Need-Responsivity Model for Offender Assessment and Rehabilitation” disponível em https://cpoc.memberclicks.net/assets/Realignment/risk_need_2007-06_e.pdf

CAIADO, Nuno. (2011) “A urgência das penas alternativas à prisão efectivas no Brasil”, Boletim IBCCRIM, nº 227. Brasil

CASTRO, Josefina. (2011) “A Reabilitação – elementos de reflexão entre politicas, prática e ciência”, comunicação apresentada à 7ª Conferência Europeia sobre Vigilância Electrónica (vigilância electrónica e probation: reabilitação de delinquentes e redução da população prisional), realizada em Évora-Portugal, disponível em http://www.cepprobation.org/uploaded_files/EM2011_Day_1.2_Rehabilitation_by_Josefina_Castro.pdf

KILGORE, James. (2012) “Progress or More of the Same? Electronic Monitoring and Parole in the Age of Mass Incarceration”, Critical Criminology vol. 20, nº 4. EUA

McGUIRE, James, Understanding Psychology and Crime: Perspectives on Theory and Action”. (2004), MacGraw Hill, Inglaterra

Public Safety Canada, “Risk-need-responsivity model for offender assessment and rehabilitation” disponível em http://www.publicsafety.gc.ca/res/cor/rep/risk_need_200706-eng.aspx

Recomendação CM/Rec (2010)1 do Comité de Ministros aos Estados Membros do Conselho da Europa sobre Regras Europeias para a Probation (20Jan1210)

[1] Cf. Portal de Notícias do Senado Federal, notícia de 11/06/2013 – 18h35 “Sem reforma do sistema prisional não é possível recuperar condenados, dizem debatedores”.

[2] Questão diferente é saber como é que a criminalidade é processada judicialmente, evitando ruturas no sistema prisional e mantendo as mais baixas taxas de presos por 100.000 habitantes do mundo.

Autores

  • Brave

    é perito em probation (penas e medidas de execução na comunidade) e em monitoramento eletrônico; trabalha nos serviços de probation de Portugal; Diretor dos Serviços de Monitoramento Eletrônico de Portugal; membro da Comissão de Estudos para o Monitoramento Eletrônico de Detentos da OAB-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!