Quebra de sigilo

Especialistas criticam envio de dados pelo BC ao MP

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17 de junho de 2013, 10h56

"O Supremo Tribunal Federal tem um encontro jurisdicional marcado com a atuação do Coaf”, avisou, no ano passado, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, ao comentar a relação entre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda e o Conselho Nacional de Justiça. Na entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em janeiro, o ministro criticava a entrega de dados sigilosos dos juízes, sem ordem judicial, à Corregedoria Nacional de Justiça para investigações. Para ele, o Coaf quebrava, sem autorização, o sigilo bancário protegido pela Constituição brasileira.

Nesta semana, em meio aos debates sobre o poder de investigação do Ministério Público discutido no STF e no Congresso Nacional — que vota a Proposta de Emenda à Constituição 37 —, a questão voltou à tona após entrevista concedida à ConJur pelo procurador-geral do Banco Central, Isaac Sidney Menezes Ferreira. “As informações protegidas por sigilo bancário são detidas pelas instituições financeiras e o dever de sigilo é, nos termos da LC 105/2001, extensivo ao Banco Central, em relação às operações que realizar e às informações que obtiver no exercício de suas atribuições”, esclareceu o procurador, antes de arrematar: “Mas há exceções, dentre as quais a determinação legal prevista na própria LC 105 e outros diplomas legais extravagantes que obrigam o BC a comunicar indícios de crimes ao MP, ao Coaf e à Receita Federal, com os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos.”

Na prática, o procurador mostrou que o Banco Central tem relação com o Ministério Público semelhante à que existe entre o Coaf e o CNJ: havendo indício de crime, comunica-se o responsável pela investigação, com entrega de documentos que comprovem os indícios — sem qualquer ordem judicial. A prática põe em xeque o modelo de contraditório nas investigações, já que, de posse dos documentos, o MP, se achar que já tem provas suficientes, pode propor a ação penal sem a necessidade de abertura de inquérito policial.

Sobre o assunto, o ministro Marco Aurélio já mostrou seu entendimento. "Eu não concebo que dados bancários de um cidadão sejam acessados por um órgão do Ministério da Fazenda que os repassa a outros órgãos administrativos. Como fica a reserva do Judiciário e a garantia de que a suspensão do sigilo só se implementa com ordem judicial?", questionou na entrevista no Roda Viva.

Especialistas consultados pela ConJur afirmam que a jurisprudência sobre o assunto é escassa, mesmo nas instâncias inferiores. Há dúvidas, inclusive, sobre quais dados o Banco Central entrega ao MP quando comunica os indícios de delitos — segundo o procurador-geral Isaac Ferreira, foram mais de 16 mil informes, desde 1965.

O processo é obscuro inclusive para advogados que atuam na área. “O fato de passar documentos — cuja constitucionalidade me parece duvidosa — não significa que o MP os utilizaria para realizar investigações, mas para instruir requisição de instauração de inquérito policial, ou oferecer denúncia, se achar que as peças são suficientes a tanto”, afirma o criminalista Arnaldo Malheiros Filho, do escritório Malheiros Filho, Rahal e Meggiolaro – Advogados.

Ao falar de inconstitucionalidade, o advogado se refere ao artigo 9º da Lei Complementar 105/2001, que autoriza o Banco Central a municiar o MP. No STF, há pelo menos seis ações diretas de inconstitucionalidade contra a lei complementar, mas todas questionam apenas artigos que tratam da transferência, pelos bancos, de informações ao Fisco que possam indicar a ocorrência de crimes tributários. Nenhuma aborda o artigo 9º, que fala da obrigação do Banco Central de informar suspeitas ao MP.

Questionado, o procurador-geral do BC confirmou que o órgão transfere informações sigilosas ao MP sem ordem judicial. “Não tenho conhecimento de decisão do STF suspendendo a eficácia da LC 105, que obriga o BC a comunicar indícios de crimes ao MP, com os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos. Assim, pelo princípio da presunção de legitimidade e constitucionalidade das normas, a LC 105 está em vigor e deve ser cumprida pelo BC até decisão em sentido contrário da suprema corte”, disse à ConJur.

O criminalista Rogério Taffarello, do escritório Andrade e Taffarello Advogados, ressalta que a entrega dos dados é inconstitucional. “Se no exercício de seus deveres fiscalizatórios o Bacen constatar indícios de crimes, deve ele comunicar ao titular da ação penal pública, mas não poderá disponibilizar automaticamente ao MP eventuais documentos acobertados por sigilo bancário. Isso porque, em nosso sistema constitucional, o afastamento de direitos fundamentais para fins de investigação exige, sempre, autorização judicial prévia, e a legislação do sistema financeiro não excepciona essa regra”, diz.

Ele afirma que o artigo 9º da LC 105 não anula o artigo 2º da própria lei, que firma caber ao BC manter o sigilo de informações bancárias. “O artigo 9º não excepciona de modo algum o artigo 2º da mesma lei, que estende o dever de sigilo ao Banco Central, e menos ainda o artigo 5º da Constituição, que tutela a intimidade e o sigilo de dados em seus incisos X e XII.” O criminalista lembra que a quebra de sigilo, como um afastamento de direito fundamental, tem “reserva de jurisdição” — ou seja, só pode ser determinada pela Justiça. “Referida interpretação só seria possível se o artigo 9º da LC 105 mencionasse expressa e inequivocamente o dever de anexar, na comunicação ao MP, inclusive informações e documentos obtidos mediante afastamento de sigilo”, acrescenta.

Desde 2003, quando defendeu sua monografia para conclusão do curso de Direito, o criminalista Guilherme San Juan Araújo, do San Juan Araújo Advogados, afirma que a lei complementar não pode mitigar o sigilo de dados previsto na Constituição. “Lei complementar esclarece pontos em que a Constituição é obscura, não altera conteúdo constitucional”, explica. “Não podem o BC ou a Comissão de Valores Mobiliários entregar, de ofício, documentos que entendam ser suspeitos. Seria o mesmo que dizer que a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] pode informar telefones suspeitos ao MP.” Segundo o advogado, ações penais com base em tais dados podem ser anuladas.

É no que também insiste o advogado Celso Vilardi, professor da FGV e especialista em crimes financeiros. “O Banco Central e o Coaf podem — e devem — comunicar às autoridades competentes sobre operações que possam ser criminosas. Não podem, contudo, fornecer ao Ministério Público dados protegidos por sigilo bancário, sem autorização judicial”, apregoa.

Vilardi fala com a autoridade de quem já conseguiu convencer a Justiça de seu ponto de vista. Em 2010, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu Habeas Corpus pedido pelo advogado em favor de cliente que teve movimentações bancárias informadas pelo Coaf ao Ministério Público, sem ordem judicial para quebra de sigilo. No caso, os desembargadores da 15ª Câmara de Direito Criminal desconsideraram as provas colhidas e anularam a ação.

Ex-corregedor do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (Dipo) de São Paulo, o desembargador Alex Zilenovski, hoje na 2ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP, lembra que a questão era recorrente no departamento. “Eram comuns reclamações de falta de acesso de advogados a provas apuradas na investigação”, conta.

Responsável por zelar pela correição dos procedimentos de apuração da Polícia e pelo equilíbrio entre acusação e defesa nos inquéritos, ele aponta o centro do problema na transferência direta de informações sensíveis ao MP: “A investigação tem que ter paridade de armas, a defesa precisa conhecer o que foi apurado para ter oportunidade de oferecer contraprova. O MP não pode simplesmente pegar os dados e oferecer a acusação”, diz. “Do contrário, o Judiciário ficaria à margem do controle de direitos fundamentais. É preciso uma formalização.”

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