Embargos Culturais

O caso da acumulação de cargos de Oswaldo Cruz

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

16 de junho de 2013, 8h01

Em 1908, um Aviso do ministro da Justiça suscitou manifestação da Consultoria-Geral da República, a propósito de eventual acumulação de cargos e de remunerações, por parte do dr. Oswaldo Cruz. Trata-se de renomado médico e sanitarista brasileiro, nascido em 1872, e que morreu em 1917, ainda jovem, aos 44 anos, quando era prefeito de Petrópolis. Oswaldo Cruz notabilizou-se por seus estudos de moléstias tropicais. Combateu a febre amarela e a varíola no Rio de Janeiro, durante a presidência Rodrigues Alves, situação que lhe proporcionou muitos inimigos: Oswaldo Cruz foi duramente combatido pela imprensa.

Experiente — Oswaldo Cruz havia estagiado na França — dirigiu o Instituto de Manguinhos, já à época denominado Instituto Oswaldo Cruz. Exerceu também o cargo de diretor-geral da Saúde Pública ao longo da campanha contra a febre amarela no Rio de Janeiro, momento marcado por várias rebeliões populares, especialmente a Revolta da Vacina. Oswaldo Cruz foi membro da Academia Brasileira de Letras.

O fato de Oswaldo Cruz ter ocupado simultaneamente os cargos de Diretor-Geral da Saúde Pública e de Diretor do Instituto de Manguinhos preocupou o Executivo. O Ministro da Justiça pediu manifestação do Consultor-Geral da República, quanto à possibilidade da acumulação: havia autorização constitucional para tal?

À época a matéria era balizada pelo artigo 73 da Constituição de 1893, que dispunha que “os cargos públicos civis, ou militares são [eram] acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial, que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas as acumulações remuneradas”. O referido artigo da Constituição era de aplicabilidade fática discutível, e desta percepção o parecer de Araripe Júnior nos dá muitas provas.

Basicamente, entendia-se que a acumulação seria absolutamente vedada em três hipóteses, nomeadamente: quando a lei expressamente o declarasse, quando as atividades fossem contraditórias e repugnantes pela própria natureza ou quando a acumulação dificultasse o bom desempenho de uma das duas.

O parecerista insistiu que o problema estaria na acumulação de remunerações e não, necessariamente, na acumulação de cargos. De qualquer modo, os contornos atuais da questão estão bem dimensionados no parecer que revela preocupação com a incompatibilidade de atuações, sempre tendo em vista a concepção de outorga de um serviço público adequado.

Por fim, chama atenção a coragem do parecerista, Araripe Júnior, que registrou a admiração que tinha por Oswaldo Cruz, porém, observando que não lhe era lícito deixar de lado os fundamentos jurídicos da questão.

Segue o parecer, que ilustra os Embargos Culturais desta semana:

“Gabinete do Consultor Geral da Republica. — Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1908.
Sr. Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores. – Respondo ao Aviso desse Ministério n. 1473, de 17 de julho findo, relativamente a dúvida que ocorre sobre o exercício simultâneo do Dr. Oswaldo Gonçalves Cruz como diretor do Instituto “Oswaldo Cruz” e diretor geral da Saúde Pública, em comissão.

Tratando-se de um caso de acumulação remunerada previsto no art. 73 da Constituição da República, cingir-me-ia a uma simples referência ao parecer que emiti no Ofício n. 79, de 27 de janeiro de 1905, se não fossem as responsabilidades oriundas da interpretação de um dispositivo constitucional, que tem sido tão frequentemente impugnada, é forçoso dizê-lo, pelos interessados, em face da perplexidade da jurisprudência dos diversos departamentos da administração pública, os quais não puderam chegar ainda a um acordo definitivo.

A Lei n. 44 B, de 1892, nada adiantou regulamentando o preceito daquele artigo; antes pelo contrário, deu cabimento para que aumentasse a variedade de opiniões; e o que é certo é que hoje se sente mais dificuldade em cumprir francamente a regra estabelecida pela Constituição Federal, do que antes do aparecimento dessa lei.

Entretanto, se recorrêssemos à legislação anterior a República, verificamos, sem grande dificuldade, que, postos de parte os abusos que a Constituição de 24 de fevereiro pretendeu dissipar, inserindo no seu texto o citado art. 73, a jurisprudência administrativa tinha pelo menos chegado a firmar um conceito claro sobre o que se devia entender como vedado, em matéria de exercício cumulativo de cargos públicos.

Já os Alvarás de 8 de janeiro de 1627, de 26 de outubro de 1644, os decretos de 21 de setembro de 1677, 18 de julho de 1681, 3 de setembro de 1682, 30 de março de 1686, 29 de fevereiro de 1688, 12 de novembro de 1701 e de 18 de junho de 1822, proibiam que o mesmo indivíduo exercesse mais de um emprego. A resolução de consulta de 24 de abril de 1818, entretanto, permitia a acumulação de dois ofícios, justificada essa providência em face da exiguidade dos respectivos rendimentos, contanto que tal acumulação não resultasse prejuízo ao exercício de outro. No decreto de 18 de junho de 1822, porém, foi terminantemente proibido que “se reunisse em uma só pessoa mais de um oficio ou emprego, e vencesse mais de um ordenado”.

Em 1847, todavia, o assunto começou a ser regido por um ato de mero expediente ministerial, contido no Aviso n. 89, de 4 de junho do dito ano, no qual se estabelecem os princípios que deveriam ser aplicados aos casos ocorrentes. São estas as palavras textuais desse Aviso:

“A incompatibilidade e o exercício de empregos diversos pode proceder de três princípios diferentes: quando a lei expressamente a tem declarado; quando as funções dos ofícios repugnam entre si por sua própria natureza; quando da acumulação deles resulta a impossibilidade de ser cada um deles servido e desempenhado satisfatoriamente. O efeito, porém, é sempre o mesmo, e consiste em inabilitar o empregado para servir outro ofício, sendo certo que a lei ter criado os empregos para o bem público, e não para benefício de quem os ocupa; e é esta uma das razões porque, por antiquíssimas e expressas disposições, está sancionada a doutrina de se não acumularem os ofícios em uma só pessoa.”

Esse Aviso, assinalando as regras dentro das quais se deviam manter a administração no provimento dos cargos públicos, distinguiu os casos de incompatibilidade virtual, dos casos que constituíam mera acumulação. A incompatibilidade, propriamente dita, existe desde a investidura, e provém da impossibilidade legal e da natural ou material de exercer funções consideradas antagônicas. A nomeação para um exclui a investidura de outro.

Não é esta a ideia que se liga à proibição de acumular, ou exercer simultaneamente dois ou mais cargos não antagônicos, segundo a compreensão dos autores da nossa Constituição, os quais não fizeram senão consagrar o que já existia nas leis da Monarquia; semelhante proibição teve unicamente por fim evitar o arbítrio, que resultava da faculdade discricionária que se permitia à Administração, de verificar quando “da acumulação de empregos provinha a impossibilidade de ser cada um desempenhado satisfatoriamente”, na conformidade da 3ª regra mencionada no referido Aviso de 1847.

O exemplo dessa tendência abusiva tem, entre outros, no Aviso n. 77, de 31 de março de 1864, que declarou dependente de circunstâncias variável a incompatibilidade proveniente da impossibilidade do exercício simultâneo de vários empregos, “pois cargos havia que em certos lugares podiam ser acumulados sem desvantagem, ao passo que em outros era esse exercício impossível ou inconveniente”. Daí se depreendia a dificuldade de proferir uma decisão genérica e absoluta, dizia o Governo. Foi esse arbítrio que a Constituição da República pretendeu eliminar, firmando uma regra genérica e absoluta.

Hoje, porém, argumenta-se com o texto da citada lei n. 44B, de 1892, que interpretou o art. 73. Como, porém, julgo ter demonstrado naquele meu parecer, o elemento histórico não deixa nenhuma dúvida sobre o que se votou no Congresso, e se converteu em texto legislativo.

Do projeto, dos pareceres e da discussão que houve então, se evidencia o acerto do conceito emitido pelo Dr. Fernando Lobo, no relatório do Ministério do Interior, de 1893:

“O art. 2° da lei declara que o exercício simultâneo de serviços públicos, compreendidos por sua natureza no desempenho da mesma função, de ordem profissional, científica ou técnica, não deve ser considerado como acumulação de cargos diferentes, para aplicação do final do art. 73 da Constituição Federal. Ora, há quem entenda que, na explicação contida nesse artigo, acham-se compreendidos todos os cargos análogos (semelhantes), bem como os vencimentos das patentes, dos postos e cargos inamovíveis, à vista do disposto no art. 74, da mesma Constituição. Penso, contudo, que a lei citada não alterou o preceito absoluto do art. 73, e é obvio que a inteligência que o legislador procurou firmar tem o seu critério na unidade da função constituída dos cargos públicos, interpretação esta que é confirmada pelo elemento histórico. Assim, pois, devem ser incluídos na proibição todos os serviços públicos que forem diferentes em quantidade, e não unicamente em qualidade, isto é, todos aqueles que, por sua natureza, não estejam compreendidos no desempenho da mesma função integral, de ordem profissional, cientifica ou técnica”.

De fato, é estranho que, referindo-se a lei terminantemente “ao desempenho de uma mesma função”, se despreze a sinonímia usual e corrente, utilizada pelo legislador, isto é, função-emprego, para tomá-la no sentido abstrato, quando logo adiante o artigo citado fala de empregos diferentes.

Nos papéis juntos procura-se saber se o Dr. Oswaldo Gonçalves Cruz incide na disposição constitucional, embora exerça interinamente ou em comissão um dos dois cargos para que foi nomeado.

A lei, quando veda, não cogita precisamente dos cargos, mas da remuneração; e, a meu ver, a interinidade ou o caráter provisório da ocupação do lugar de Diretor Geral de Saúde Pública, do qual o Dr. Oswaldo foi exonerado, naturalmente por se julgar que o caso era de incompatibilidade, não autoriza a adoção de outro critério para se permitir a acumulação do cargo em comissão com o cargo efetivo, porque a situação continua a ser a mesma.

O regular seria deixar o titular a função efetiva, durante o tempo em que desempenhasse a comissão. Tem sido esta a prática constante, nos casos de empregos só incompatíveis, para o exercício simultâneo.

Sei quanto se tornará desagradável resolver a duvida no sentido indicado. Trata-se de um dos funcionários que mais serviços tem prestado a administração sanitária, lançando, como homem de ciência, dotado de méritos incontestáveis, um brilho excepcional sobre seu país.

Não me é licito, porém, por esse fato, esquecer os princípios jurídicos que regem o assunto. Sem embargo disso, penso que o Governo deveria de uma vez firmar a sua jurisprudência nesse particular, para que se não possam os incompatibilizados queixar de falta de justiça relativa, porquanto, ao passo que se encontram casos, como os citados na informação do Sr. Diretor Geral da Contabilidade, nos quais se aplicou rigorosamente a proibição do art. 73 da Constituição, se reproduzem mais recentemente outros, em que esse rigor tem sido atenuado até ao ponto de parecer que tal proibição não existe de fato. — T. A. Araripe Junior.”

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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