Observatório Constitucional

A evolução da jurisdição constitucional na França

Autor

15 de junho de 2013, 8h01

Spacca
No Brasil, o estudo da jurisdição constitucional sob a perspectiva do direito comparado sempre traz à tona os modelos estadunidense e austro-germânico, que representam, respectivamente, os clássicos sistemas difuso e concentrado de controle de constitucionalidade. Secundariamente, os sistemas português, espanhol e italiano também têm se destacado como objeto de estudo desse ramo jurídico.

A jurisdição constitucional francesa, por outro lado, passa habitualmente ao largo dos estudos acadêmicos de direito constitucional comparado, o que causa espécie, na medida em que é justamente da França que provêm a sistematização da separação dos poderes e a ideia de direitos e garantias fundamentais.

Essa questão pode ser mais bem compreendida a partir da análise do contexto histórico em que se desenvolveu o controle de constitucionalidade francês.

Inicialmente, é preciso relembrar que a teoria da separação dos poderes desenvolvida por Montesquieu não colocava os poderes públicos em posição paritária. Ao contrário, a atividade jurisdicional era reduzida e a função legislativa elevada, como meio para limitar os excessos de poder praticados no absolutismo[1]. Além disso, os direitos fundamentais foram idealizados, originariamente, como direitos subjetivos dos cidadãos, cuja função precípua era instituir limitações ao governo. Assim, o constitucionalismo francês tem suas origens numa conjuntura de soberania da lei.

A superioridade incontestável da lei chegou a ser solenemente incorporada ao texto da Constituição de 1791: “não há ponto, na França, de autoridade superior àquele da lei”[2]. Nessa época, qualquer ideia de questionamento aos dispositivos legais era sumariamente refutada. A França possuía verdadeira tradição de hostilidade ao controle jurisdicional das leis.

Ocorre que a primazia absoluta da lei propiciou que se instalasse, na França, verdadeira preeminência do Legislativo, a qual não é compatível com a figura do Estado de Direito — que não prescinde de atuação conjunta e coordenada dos poderes públicos. A preponderância de uma instituição pode obstaculizar a atuação das demais autoridades constitucionais, portanto é preciso estabelecer organização institucional que não permita a hegemonia de qualquer dos poderes públicos.

Paralelamente, o desenvolvimento da justiça constitucional na Europa continental, principalmente a partir da Constituição austríaca de 1920, e o aperfeiçoamento dos modelos de jurisdição constitucional concentrada, instituídos após a II Guerra Mundial, em países como Itália, Alemanha, Portugal e Espanha, pressionaram a criação do controle da atividade legislativa também na França.

Foi nesse ambiente que a Constituição francesa de 1958 (Constitution de la Vème République) instituiu o Conselho Constitucional (Conseil Constitutionnel).

Referido órgão passou por muitas mudanças estruturais desde sua origem até se sedimentar como a instituição democrática que hoje representa. Em síntese, a evolução do Conselho pode ser divida em quatro momentos distintos: 1) criação (1958); 2) majoração do parâmetro de controle de constitucionalidade (1971); 3) ampliação do rol de legitimados para provocar o controle (1974); e 4) concepção da questão prioritária de constitucionalidade (2008).

Quando da criação do Conselho, não se cogitou de órgão que exercesse jurisdição especial e que fosse identificado como tribunal constitucional. A princípio, o órgão surgiu como árbitro da repartição de competências reservadas ao Legislativo e ao Executivo[3]. O Conseil Constitutionnel serviria para evitar a intensificação desenfreada da atividade legislativa, a qual anulava a atuação regulamentar.

A propósito, o artigo 34 da Constituição de 1958 promoveu separação entre o domínio da lei, assuntos expressamente previstos na Constituição e reservados ao Parlamento, e o domínio do regulamento, competência normativa remanescente em relação ao domínio da lei que é designada ao Executivo[4]. Ao Conseil Constitutionnel foi atribuída a função de intervir para compor conflitos de competência entre órgãos constitucionais (Parlamento e governo)[5] e definir de quem é a alçada para tratar do tema[6].

Ao Conselho também foram atribuídas outras missões institucionais relacionadas ao controle de constitucionalidade das leis, dentre as quais, há atribuições de controle preventivo e obrigatório (controle das leis orgânicas[7] e dos regimentos das assembleias parlamentares) e outras de caráter preventivo e facultativo (verificação de conformidade com a Constituição das leis ordinárias e dos tratados internacionais). Excepcionalmente, previu-se também a atuação de natureza facultativa e, a posteriori, necessária para que o Executivo modifique o conteúdo material de norma que outrora era reservada ao domínio da lei (procédure de la délégalisation)[8].

Entretanto, a atuação do Conselho nos primeiros anos após sua instituição foi bastante contida e isso se deveu basicamente a dois motivos: o parâmetro restrito — apenas os artigos da Constituição de 1958 — para o exercício controle de constitucionalidade; e o rol limitado de legitimados para provocar o controle do Conselho — presidente, primeiro ministro e presidentes do Senado e da Assembleia Legislativa.

Ao refletir sobre o Conselho Constitucional recém-fundado, Olivier Jouanjan verifica que ele não era “muita coisa”, mas reconhece que o órgão foi lapidado a partir da década de 1970, sobretudo em consequência de duas mudanças paradigmáticas[9].

A primeira delas foi uma decisão proferida pelo Conseil Constitutionnel em 1971, ao julgar o caso da Liberdade de Associação (Décision 71-44 DC), na qual expandiu o parâmetro do controle de constitucionalidade para o preâmbulo da Constituição de 1958, que, por sua vez, remetia ao preâmbulo da Constituição de 1946 e à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. A partir desse julgado, foi desenvolvida por Favoreu[10] a teoria do bloco de constitucionalidade (bloc de constitutionnalité), identificado como o conjunto de princípios e regras, ainda que fora do texto expresso da Constituição, mas com valor constitucional, que se impõem ao Legislativo, ao Executivo e aos particulares.

A outra mudança decorreu da Emenda Constitucional de 1974, que, ao alterar o artigo 61 da Constituição, concedeu o direito de provocação do Conselho Constitucional à oposição parlamentar, por meio de manifestação de sessenta deputados ou sessenta senadores. A partir de então, a oposição, que estava à margem do processo político, visualizou no controle de constitucionalidade instrumento de atuação política e passou a recorrer ao Conselho para manifestar o descontentamento com as decisões tomadas pela maioria. Em consequência, o número de demandas aumentou consideravelmente e a jurisdição constitucional francesa se fortaleceu.

Após essas modificações, o Conseil Constititionnel começou a se firmar não apenas como mediador do conflito de competências entre órgãos constitucionais, mas também como instância responsável pela garantia dos direitos fundamentais e pelo controle dos atos do poder público.

Entretanto, havia ainda uma barreira a ser transposta para o aprimoramento da jurisdição constitucional na França, pois o controle de constitucionalidade era eminentemente preventivo, razão pela qual não se admitia, em regra, a análise, pelo Conselho, de atos normativos que já haviam sido promulgados.

O controle preventivo de constitucionalidade, por si só, não é negativo. O modelo impede, desde o nascedouro, que a lei inconstitucional produza efeitos, ao contrário dos sistemas repressivos, em que a sustação de efeitos da norma depende de atuação da jurisdição constitucional, a qual pode demorar anos. Assim, o modelo preventivo tem o condão de coibir a instalação de insegurança jurídica relacionada à validade da lei.

Por outro lado, no sistema tipicamente preventivo, o acionamento da justiça constitucional está condicionado à observância de prazos e depende de iniciativas de autoridades políticas, motivo pelo qual é grande o risco de leis importantes e constitucionalmente duvidosas serem promulgadas sem que um dos titulares do direito de ação tome a iniciativa de questioná-las perante o Conselho Constitucional. E mesmo quando a lei passa pelo crivo da jurisdição constitucional, ainda é possível o surgimento superveniente de sintomas de inconstitucionalidade[11].

Por essas razões, o modelo preventivo de controle de constitucionalidade carece de complementação, que inclua a possibilidade de verificação de conformidade da lei à Constituição mesmo após sua promulgação.

Atenta a esse fenômeno, a reforma constitucional de 23 de julho de 2008[12] inseriu no ordenamento jurídico francês a questão prioritária de constitucionalidade (question prioritaire de constitutionnalité). Esse instituto possibilita que disposição normativa já promulgada, mas supostamente atentatória aos direitos e liberdades constitucionais, seja submetida ao Conselho Constitucional para que o órgão verifique a constitucionalidade da norma[13].

A questão prioritária de constitucionalidade foi disciplinada pela Lei Orgânica 2009-1523, de 10 dezembro de 2009, a qual previu sua entrada em vigor a partir do primeiro dia do terceiro mês seguinte ao da promulgação da lei (artigo 5º). Assim, em 1º de março de 2010, implementou-se procedimento de controle de constitucionalidade sobre leis já promulgadas na França (controle de constitucionalidade repressivo).

Passados pouco mais de três anos desde a efetiva criação do novo procedimento, o Conseil Constitutionnel já foi instado a se manifestar sobre 275 leis[14], relacionadas a diversos ramos jurídicos, e proferiu decisões que densificaram os direitos fundamentais.

Já em 2010, primeiro ano de sua efetiva instalação, o órgão declarou a inconstitucionalidade de dispositivos do Código de Processo Penal que não eram compatíveis com os direitos ao contraditório e à ampla defesa (Décision 2010-30/34/35/47/48/49/50 QPC) e também examinou, de acordo com o direito à liberdade de locomoção, a lei sobre internação compulsória de pacientes psiquiátricos (Décision 2010-71 QPC)[15]. Em ambos os casos, o Conselho declarou a invalidade de leis que estavam em vigor há anos.

Em maio de 2013, o Conseil declarou a constitucionalidade da lei que dispõe sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo (Décision 2013-669 DC), o que evidencia que as questões mais sensíveis da sociedade são submetidas ao exame daquele órgão, em reconhecimento da sua importância como instituição democrática.

No que diz respeito às técnicas de decisão, a jurisdição constitucional francesa não conhece apenas o binômio clássico da inconstitucionalidade-nulidade da lei. Em alguns casos, o Conselho já adotou a décision de conformité sous reserve d’interprétation, técnica de decisão semelhante à interpretação conforme a Constituição do direito brasileiro. Além disso, a reforma constitucional de 2008 também possibilitou a modulação temporal dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade (artigo 62 da Constituição de 1958). Há, portanto, pelo menos essas duas técnicas modernas de decisão, que sofisticam o controle de constitucionalidade francês.

Todas essas considerações permitem concluir que as perspectivas da jurisdição constitucional na França são bastante positivas. O sistema de controle de constitucionalidade do país passou por muitas mudanças estruturais nas últimas décadas e caminha rumo à solidificação de modelo eficaz de justiça constitucional.

Se, em meados do século XX, a França era praticamente despercebida pelos estudos de direito constitucional comparado, agora o controle de constitucionalidade francês é tema fértil, que não pode ser desconhecido pelos juristas.


[1] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Trad. Cristiana Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 175.
[2] Artigo 3º do Capítulo II da Constituição Francesa de 1791: “Il n’y a point en France d’autorité supérieure à celle de la loi”.
[3] ROUX, André. A Constituição Francesa de 1958 e os direitos fundamentais: quais as influências?. In: Direito constitucional, estado de direito e democracia. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 56.
[4] Artigo 34 do Título V da Constituição da França de 4 de outubro de 1958.
[5] Sobre o assunto, ver Élise Carpentier, para quem a experiência dos vizinhos europeus estimulou a França a instituir processo de resolução jurisdicional de conflito entre órgãos constitucionais (Cf. CARPENTIER, Élise. La résolution juridictionnelle des conflits entre organes constitutionnels: principaux apports d’une étude comparée. In: Revue internationale de droit compare, v. 59, n. 4, p. 805-832, oct./déc. 2007, p. 806).
[6] Artigo 41 do Título V da Constituição da França de 4 de outubro de 1958.
[7] Ato normativo de natureza semelhante às leis complementares no Brasil.
[8] GOMES, Joaquim B. Barbosa. Evolução do controle de constitucionalidade de tipo francês. Revista de Informação Legislativa, v. 40, n. 158, p. 97-125, abr./jun. de 2003.
[9] JOUANJAN, Olivier. Modelos e Representações da Justiça Constitucional na França: Uma análise crítica. Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 1, p. 1-22, Abr. 2010.
[10] FAVOREU, Louis. La justice constitutionnelle em France. Les Cahiers de droit, vol. 26, n. 2, 1985, p. 318.
[11] GOMES, Joaquim B. Barbosa. Evolução do controle de constitucionalidade de tipo francês. Revista de Informação Legislativa, v. 40, n. 158, p. 97-125, abr./jun. de 2003.
[12] Lei da Reforma Constitucional n. 724.
[13] Artigo 61-1 do Título VII da Constituição da França de 4 de outubro de 1958.
[14] Segundo dados disponibilizados no endereço eletrônico do Conselho Constitucional. Disponível em: < http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/acces-par-type/les-decisions-qpc.48300.html>. Acesso em: 10 jun. 2013.
[15] PATRICK, Roger. Trois ans de QPC, La révolution juridique. Le Monde. 1º mar. 2013.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!