Limites necessários

Clareza em sigilo é fundamental para transparência

Autor

  • Fabiano Angélico

    é pesquisador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da FGV-SP e mestre em Administração Pública com dissertação sobre a Lei de Acesso à Informação brasileira.

6 de junho de 2013, 8h35

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no NEF/Direito GV. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Em novembro de 2011 o Brasil tornou-se o 89º país a ter sua lei nacional de acesso a informações públicas. A Lei 12.527/2011 previa seis meses de adaptação, com isso a Lei de Acesso a Informações – ou simplesmente LAI – entrou em vigor em maio de 2012.

Assim como todas as boas leis de acesso mundo afora e todas as Constituições democráticas, a lei brasileira preconiza que a transparência é a regra e o sigilo, a exceção. Diante desta orientação geral, a melhor maneira de garantir o acesso a informações públicas é delimitar muito claramente o que é informação sigilosa — uma vez delineado esse universo de restrições, toda a informação restante é passível de divulgação pública.

Além de clarear o escopo da transparência pública, a estratégia de se dar significativa atenção à delimitação do sigilo justifica-se pela proteção a direitos, que poderiam ser afetados pelo acesso irrestrito a informações detidas pelo Estado.

A literatura e os documentos de referência costumam apontar dois direitos que devem ser preservados quando se discute transparência pública: direito à privacidade e intimidade e direito à segurança (da sociedade ou do Estado). Nota-se que o primeiro delimitador refere-se a questões pessoais, já o segundo atém-se a direitos difusos.

Cada um desses grupos desdobra-se em outros itens. No primeiro conjunto (defesa de direitos  privados), argumenta-se, por exemplo, em favor da proteção a interesses econômicos, como na defesa do sigilo industrial — há casos em que agências reguladores detêm informações a respeito de procedimentos de empresas, para citarmos apenas um exemplo. Na linha da segurança (da sociedade ou do Estado), mencionam-se as informações relativas a investigações em andamento. A publicização de tais informações pode colocar em risco o processo de apuração de ilícitos, o que, no limite, seria deletério para todos, pois a ineficácia de investigações mantém criminosos na ativa.

Por causa dessas zonas cinzentas entre o direito à informação — obrigação de transparência por parte do Estado — e outros direitos, convém, conforme destacam organizações multilaterais como OEA (Organização dos Estados Americanos) e Unesco (braço da ONU para Educação, Ciência e Cultura), detalhar em lei quais os direitos que se quer proteger no quadro da discussão sobre transparência governamental. A partir dessa lista, torna-se menos custoso delimitar o quadro de informações sigilosas.

Não basta, porém, que uma informação caia no âmbito de um objetivo legítimo colocado em lei para que essa informação torne-se restrita. É preciso que o Estado demonstre que a divulgação daquela informação específica causaria prejuízo substancial ao direito protegido pela lei.

A lei modelo da OEA[1] — escrita para orientar países das Américas dispostos a aprovar leis nacionais de acesso à informação — afirma que a restrição à informação é legítima quando o acesso puder “gerar um risco claro, provável ou específico de dano significativo”. Os grifos, que inexistem no original, destacam adjetivos que deixam clara a intenção: não basta que haja a possibilidade de dano; para se restringir o acesso a uma informação pública, é preciso que o risco seja claramente determinado e especificado e que se preveja um dano importante.

Nessa linha, as melhores leis de acesso à informação trazem a obrigação de o Estado divulgar anualmente uma lista de informações classificadas como sigilosas. No Brasil, a LAI aborda essa questão em seu artigo 30, onde se lê que os órgãos públicos devem publicar relatórios anuais com informações a respeito de documentos sigilosos e ainda “manter extrato com a lista de informações classificadas, acompanhadas da data, do grau de sigilo e dos fundamentos da classificação”. Pela lei brasileira, informações classificadas têm três prazos de sigilo: cinco anos (aquelas classificadas como reservadas), 15 anos (secretas) e 25 anos (ultrassecretas). Os fundamentos da classificação de uma informação como sigilosa encontram-se no artigo 23 da LAI, que lista as informações que, se divulgadas, colocariam em risco a segurança da sociedade ou do Estado.

E no que diz respeito ao primeiro grande delimitador que mencionamos acima, as restrições para se proteger o direito à privacidade? O item relativo a informações pessoais merece na LAI um capítulo à parte. A Seção V (artigo 31) fala que os dados pessoais têm acesso restrito pelo prazo máximo de 100 anos de sua produção e não precisam ser classificados.

A essa altura, o leitor deve estar convencido que no caso do Brasil estão presentes os requisitos das boas práticas de delimitação do sigilo. Mas não é bem assim.

É que o Decreto 7.724, de 16 de maio de 2012, que regulamentou a LAI no Executivo Federal, entrou numa seara que não tinha sido explicitamente abordada pela própria LAI. No artigo 6º do decreto, lê-se que o acesso a informações não se aplica a “hipóteses de sigilo previstas na legislação, como fiscal, bancário, de operações e serviços no mercado de capitais, comercial, profissional, industrial e segredo de justiça”.

Assim, o artigo 6º do Decreto 7.724/2012 cria uma situação no mínimo esdrúxula. Enquanto a LAI determina que a transparência é regra geral e o sigilo é exceção — e exceção bem delimitada em dois grandes grupos claramente definidos —, o decreto federal embaralha o escopo das exceções ao mencionar hipóteses de sigilo. Enquanto a LAI, ao tratar de informações sigilosas, cria a obrigação de que estas sejam classificadas mediante justificativas claras e então publicizadas anualmente, o Decreto desobriga os órgãos públicos de classificar alguns tipos de informação, uma vez que no artigo 6º está explicitado que o acesso a informações não se aplica a hipóteses de sigilo previstas em leis anteriores à LAI. Pior: o decreto federal foi copiado por muitos estados e municípios, de modo que essa falta de clareza em relação às informações sigilosas se espraiou pelas três esferas de governo.

A Lei de Acesso à Informação brasileira é tida como uma das mais avançadas do mundo — uma respeitada organização internacional coloca-a como uma das 15 melhores[2] — mas o texto de qualquer lei vale pouco se suas diretrizes não são respeitadas na prática da implementação.

Com base em dados e evidências factuais (por exemplo: cabe analisar as listas de informações classificadas, que serão disponibilizadas este ano), na literatura internacional e em documentos de referência mundial, convém reabrirmos a discussão a respeito da transparência pública no Brasil.


[1] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Lei Modelo Interamericana sobre o Acesso à Informação Pública,  8 junho 2010. Disponível em http://www.oas.org/dil/AG-RES_2607-2010_por.pdf. Acessada em 4 junho 2013.

[2] Global Right to Information Rating (o RTI Rating analisa a qualidade das leis de acesso à informação no mundo). Disponível em http://www.rti-rating.org/country_rating.php. Acessado em 5 junho 2013.

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  • Brave

    é pesquisador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da FGV-SP e mestre em Administração Pública, com dissertação sobre a Lei de Acesso à Informação brasileira.

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