Direito Comparado

Protestos permitem reflexão sobre modelo político turco

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

5 de junho de 2013, 8h01

Um manifestante ergue uma bandeira vermelha, com uma efígie humana ao centro. Atrás dele há chamas, destroços e pessoas em fuga. O cenário é uma das ruas principais de Ancara (ou Angorá, na antiga transliteração, que deu nome ao gato-angorá), capital da Turquia. A imagem retrata um dos milhares de protestantes que ocuparam praças e avenidas contra o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan.

A imagem no centro da bandeira do manifestante é de outro líder turco, Mustafá Kemal Atatürk (1881-1938), o pai da Turquia moderna, uma nação que ele desejou fosse laica e ocidentalizada, a despeito de seu milenar passado islâmico, sob a forma do Império Otomano. Nas ruas da capital turca, entram em choque duas visões de mundo. Está em jogo conservar ou transformar o legado jurídico de quase um século, baseado na liberação dos costumes, no secularismo, no direito das mulheres e na ruptura com o passado imperial.

A Turquia foi o centro de uma multissecular estrutura administrativa, militar e política conhecida como Império Otomano, abrangente de territórios do Norte da África até à Pérsia, além da Grécia, da Albânia e de extensas áreas da Europa Oriental. Sua expansão europeia foi contida nas batalhas de Lepanto, da qual tomou parte Miguel de Cervantes, e de Viena. No século XIX, o antigo império encontrava-se em tal decadência que era conhecido como o “Velho Doente do Levante”. A espinha dorsal otomana, o Exército, há muito deixara de ter relevância militar, dada a obsolescência do equipamento e da estrutura organizacional. A maior parte das províncias do Norte da África, como o Egito, o Marrocos ou a Tunísia, estavam apenas nominalmente submetidas à Sublime Porta (o poético nome da sede do governo do sultão otomano). A autoridade máxima do império acumulava o título secular de Sultão (ou padixá, Senhor dos Senhores) e religioso de Califa (líder universal dos crentes em Alá). O sultão otomano já fora tão poderoso que era conhecido como “a sombra de Deus na terra”.

No início do século XX, a decadência imperial levou ao poder um grupo de militares nacionalistas, líderes do movimento dos Jovens Turcos. Um golpe destronou o sultão Abdülhamid II, que foi substituído por Mehmed V. O poder real foi concentrado em oficiais com menos de 30 anos, que instalaram o governo dos Três Paxás (título nobiliárquico e militar), sendo o mais famoso Ismail Enver.

A ditadura dos Jovens Turcos ampliou a aliança do Império com a Alemanha, cujas ligações com os otomanos haviam-se estreitado desde o final do século XIX, graças ao Kaiser Guilherme II, que chegou a peregrinar à Meca. Com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, o Império viu-se arrastado a uma guerra em três frentes. Num dos episódios mais famosos do conflito, as forças imperiais defrontaram-se com tropas britânicas, neozelandesas e australianas na região de Galípoli. A campanha foi um completo desastre para os invasores, com o massacre dos soldados da Oceania (que foi retratado em um filme de 1981, de Peter Weir) e a queda em desgraça de Winston Churchill, que renunciou ao posto de lord do Almirantado (equivalente a ministro da Marinha) e foi lutar nas trincheiras na França, como forma de expiar sua falha.

Em Galípoli, destacou-se Mustafá Kemal, que revelou seu gênio militar e uma incrível capacidade de liderança. A seus soldados, disse que só lhes ofereceria a morte. E deu-lhes a vitória. Com o avançar do conflito e a derrota da Alemanha, o Império entrou em colapso. Para piorar a situação, os árabes conquistavam sua independência, graças à revolta liderada pelo oficial britânico T. E. Lawrence (imortalizado como Lawrence da Arábia) e os gregos, inimigos seculares dos otomanos, invadiam a região da Anatólia, o berço da civilização turca.

Kemal liderou a resistência contra os invasores e, contrariando as ordens do sultão, formou um exército que deu combate aos gregos e iniciou a Guerra de Independência Turca (1919-1922). O Exército estava praticamente desmantelado. Kemal teve de lutar em condições inacreditáveis. Um dos combates da guerra ficou conhecido como a “Batalha dos Oficiais”, porquanto havia tantos desertores e tão poucos soldados, que os oficiais praticamente conduziram sozinhos a luta.

A vitória de Kemal fez com que o sultão fosse destituído de suas funções políticas, permanecendo apenas como califa. O Império foi definitivamente sepultado por Kemal, que renunciou a qualquer pretensão sobre territórios não turcos e fez proclamar a República em 1923. Segundo os desejos de seu fundador, a Turquia abandonou totalmente seu passado imperial e todas as causas que, segundo ele, foram responsáveis por sua decadência. Em seus 15 anos de presidência, Kemal revolucionou a sociedade, os valores culturais e políticos de seu país. É comovente inventariar tantas realizações, que se deram em tão pouco tempo.

Mustafá Kemal introduziu um novo alfabeto para a língua turca, concebido por ele e por um grupo de filólogos, de feição europeia, abandonando os caracteres árabes. Seu objetivo era facilitar a alfabetização universal de seu povo, cujos índices de analfabetismo chegavam a 80% no início do século XX. Os direitos das mulheres foram assegurados e elas receberam o estímulo do presidente para se instruírem e ingressarem no mercado de trabalho. Proibiu-se terminantemente o véu e o fez (o tradicional chapéu otomano, de cor vermelha e estrutura cilíndrica), além de se obrigar aos cidadãos que adotassem um sobrenome. Os títulos nobiliárquicos ou cerimoniais otomanos (paxá, bei, efêndi) foram extintos. A República tornou-se laica, o Estado separou-se da religião e aboliu-se o Califado. O Exército foi totalmente remodelado. Instituíram-se eleições periódicas e dotou-se o país de uma nova Constituição, em 1924, que perdurou até 1961.

O Estado turco constituiu-se sob duas importantes pilastras: as Forças Armadas, que se assumiram como legatárias do kemalismo, a ideologia e os valores pregados por Mustafá Kemal, e uma classe média laica, instruída e com aspirações cosmopolitas, mas com profundo senso de nacionalismo, que ocupou as mais relevantes posições na burocracia civil. O princípio democrático, ainda que haja sido desrespeitado em várias ocasiões, foi erigido como fundamento do Estado turco.

Os governos de Kemal, a cujo nome se incorporou a palavra Atatürk (pai dos turcos), e de seus sucessores no século XX não passaram incólumes a crises, golpes de Estado, contestações internas e perseguições contra minorias separatistas (os curdos). Uma excessiva interferência militar nos negócios públicos são alguns dos traços negativos da República. Considerando a tradição despótica de mais de mil anos do Império, a ausência de qualquer referência ao secularismo antes de Kemal e as dificuldades advindas de um câmbio civilizatório tão profundo em poucas décadas, tais problemas não conseguem embotar as grandes conquistas do povo turco após a fundação da República.

O Direito tornou-se um importante aliado na refundação da sociedade turca. A atual constituição, que foi ratificada em um referendo popular ocorrido em 1982, define a Turquia como um Estado Democrático, Secular, Social e de Direito, que tem em consideração a paz, a solidariedade nacional, a Justiça, o respeito aos direitos humanos e à lealdade aos valores nacionalistas de Atatürk (artigo 2o). A soberania é de titularidade da nação, que a exerce pelos órgãos constitucionais, sendo que toda a autoridade provém da Constituição (artigo 6o). O Poder Legislativo é exercido pela Grande Assembleia Nacional, de estrutura unicameral (artigo 7o) e o Poder Judiciário exerce sua autoridade, em nome da nação turca, por meio de tribunais independentes (artigo 9o). O presidente da República e o Conselho de Ministros são os titulares do Poder Executivo (artigo 8o).

Todos são iguais perante a lei, sendo vedada qualquer discriminação, independentemente de língua, raça, cor, sexo, opinião política, crença filosófica ou religião (artigo 10). Assegura-se a força obrigatória e a supremacia da Constituição em seu artigo 11, segundo o qual os dispositivos constitucionais vinculam o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, além das autoridades administrativas e os indivíduos. Nenhuma lei pode conflitar com a Constituição.

A segunda parte da Constituição turca de 1982 contém um catálogo de direitos fundamentais, que abrange o direito de propriedade (artigo 35), à privacidade (artigo 20), à liberdade de pensamento, opinião, expressão e difusão de ideias (artigos 25-26), à liberdade artística (artigo 27), à liberdade comunicativa (artigo 22) e religiosa (artigo 24). É também assegurada a liberdade associativa, sem prévia autorização estatal (art.33) e o direito de reunião (artigo 34) possui amplas franquias. O princípio do juízo natural e a vedação aos tribunais de exceção encontram-se definidos no artigo 37.

Em sede específica, encontram-se os “Direitos Sociais e Econômicos”. De entre esses, o reconhecimento da família como base da sociedade turca e do direito ao planejamento familiar (artigo 41). As liberdades de profissão e de contratar, bem assim a livre iniciativa, são asseguradas no artigo 48, embora o Estado deva tomar medidas para que as empresas privadas atuem em conformidade com as exigências da economia nacional e os objetivos sociais.

Na terceira parte, encontram-se os “órgãos fundamentais da república”, que compreendem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Destacam-se aqui, no entanto, dois órgãos com relevo histórico particular na Turquia.

O primeiro é o Conselho de Segurança Nacional, composto pelo primeiro-ministro, pelo Chefe do Estado-Maior, pelos ministros da Defesa, da Administração, dos Negócios Estrangeiros, pelos Comandantes das três Forças Armadas e pelo Comandante da Gendarmeria. O presidente da República é o líder do Conselho (artigo 118). Esse plexo é um resquício da interferência militar nos negócios de Estado, uma construção jurídica que institucionalizou o poder do Exército na Constituição.

O segundo órgão é o Tribunal Constitucional, composto por onze membros efetivos e quatro suplentes. Esse tribunal é integrando por: a) juízes de tribunais superiores; b) professores universitários; c) altos servidores do Estado e advogados (artigo 146). Sua função é exercer o controle de constitucionalidade, sendo que suas decisões são irrecorríveis, não retroativas (quando declaram a inconstitucionalidade de atos normativos) e obrigatoriamente fundamentadas (artigo 153).

Nesse aspecto, guardadas as proporções, a Turquia e o Brasil tiveram experiências político-jurídicas comuns no século XX. Ambos os países deixaram de ser estados imperiais e se converteram em repúblicas. Os militares assumiram o papel de guardiões de valores republicanos e positivistas e consideraram-se partícipes e árbitros do sistema político. Sempre que havia algum desvio no que eles consideravam ser o programa positivo-republicano, a solução era romper com a ordem constitucional em nome dos valores prescritos por essa mesma ordem. Em épocas históricas semelhantes, Turquia e Brasil renunciaram ao poder moderador militar e, com algum intervalo, passaram a cometer ao Tribunal Constitucional essa função.

A realidade turca, no entanto, é contaminada por sua localização geográfica e pelo ônus de sua herança otomana. Em razão disso, provavelmente, o poder de moderação dos militares tenha permanecido até hoje na Turquia, o que não se dá mais no Brasil desde o início da década de 1990. A peculiaridade dos turcos está em que nos países islâmicos estabeleceu-se uma forte clivagem entre o poder secular e o poder temporal. O Exército e a Monarquia (nas que ainda se mantiveram) são o dique de contenção do Estado laico e nacionalista contra os avanços dos partidos religiosos. Argélia e Marrocos são dois exemplos desse modelo, assim como o Egito, a Tunísia e o Irã já o foram. A guerra civil na Síria é uma expressão desse conflito.

O estado constitucional turco, de feição kemalista, vive hoje um período de revisão com a vitória eleitoral de Recep Tayyip Erdoğan e seus partidários. O governo de Erdoğan completa dez anos, mas a vitória de seu agrupamento político é anterior e, em duas ocasiões, o Tribunal Constitucional serviu de anteparo contra o avanço do movimento liderado por Erdoğan, por meio da declaração de inconstitucionalidade de seu partido (em sua versão anterior), dada a aparente insubmissão de seu programa político aos princípios fundamentais da Constituição, especialmente a “lealdade aos valores nacionalistas de Atatürk”, tal como previsto em seu art. 2o.

O governo de Recep Tayyip Erdoğan é o resultado final de um processo histórico que se iniciou há vinte anos: a ascensão de uma “nova classe média”, formada por indivíduos que não integravam a elite laica, ocupante de posições-chave nas Forças Armadas, na Universidade e na burocracia. Esse grupo em ascensão é o eleitorado de Erdoğan, que ganhou força econômica com o desenvolvimento industrial e comercial da Turquia nos anos 2000, e que se vê representado em um líder cuja esposa usa o véu islâmico e que estabeleceu uma agenda de política externa “otomana”, a saber, de interferência nos negócios árabes, algo que não se coadunava com o nacionalismo turco de Musfatá Kemal.

A tomada do poder político por essa “nova classe média” religiosa, rica e sem fidelidade aos compromissos da elite kemalista, deu-se por métodos democráticos. No entanto, o governo de Recep Tayyip Erdoğan, até para se manter estável, combateu os grupos políticos-militares-burocráticos tradicionais e abriu feridas na sociedade turca. A restrição à publicidade e à venda de bebidas alcoólicas (Kemal era um apreciador de destilados), o apoio ao uso de trajes específicos por mulheres, o afastamento da cúpula militar e a nomeação de juízes para o Tribunal Constitucional colocaram em xeque os freios ao poder democrático de Erdoğan.

O estopim da revolta de junho de 2013 na Turquia foi um conjunto de projetos de construção (o maior aeroporto do mundo; uma nova ponte sobre o Bósforo; um shopping center em uma área verde) sem prévia audiência da sociedade e sem observância de questões ambientais. Mas, isso não seria suficiente para tal explosão de ira popular. A imagem dos jovens que saíram as ruas é bastante elucidativa. São turcos que valorizam a liberdade de uma cultura laica e que não desejam abdicar dos efeitos de uma dolorosa ruptura com seu passado otomano. Embora os partidários do atual governo contestem essa motivação nobre e defendam, não sem razão, que muito da indignação dos manifestantes é causada pelo desejo de não partilhar o poder com os atores oriundos da “nova classe média”.

A Turquia é hoje um importante laboratório para se examinar as difíceis relações entre a legitimidade democrática de investidura e a legitimidade de exercício, para se valer de uma categoria muito cara à Teoria do Estado. Erdoğan apresenta-se como o líder de uma convivência possível entre valores religiosos e a condução de um Estado plural. Seus opositores, até pela experiência dos países vizinhos, não acreditam que isso seja possível e temem a destruição dos contrapesos ao poder adquirido pelo voto popular. Com a indicação de juízes para o Tribunal Constitucional, o grupo de Erdoğan parece ter diminuído a capacidade de “moderação” desse órgão. E, ao menos até agora, os militares não querem ou não podem fazer frente ao primeiro-ministro, até em razão de que, nos tempos atuais, esse tipo de intervenção deixou de contar com o apoio silencioso da comunidade internacional.

Não há qualquer termo de comparação com os eventos desta semana na Turquia e a chamada “Primavera Árabe”. A Turquia é um Estado Democrático de Direito, com tradição nesse campo e instituições consolidadas. Suas dimensões territoriais e o tamanho de sua economia também se colocam como muro de contenção às tentações autocráticas de quem quer seja. A cultura jurídica turca, fortemente influenciada pelo Direito alemão, é respeitável, especialmente em áreas como o Direito Civil. A expectativa é que essa crise se resolva da melhor forma e que, como resultado, surja uma democracia mais fortalecida e pautada no contraditório e no pluralismo de uma sociedade complexa.

No entanto, as similitudes de algumas etapas do processo histórico-jurídico turco com o brasileiro exigem que se faça uma leitura mais atenta desses acontecimentos, sem a superficialidade e o maniqueísmo que costumam se apresentar nessas horas.

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    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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