Independência profissional

AGU não está submetida à vontade da Presidência

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30 de julho de 2013, 16h00

Em recente entrevista publicada na ConJur, o advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, revelou explicitamente a adoção de um paradigma de advocacia pública de governo, e não de Estado, ao deixar clara sua submissão técnica à vontade da Presidência da República.

Em manifestação bastante autocontraditória, quase um ato-falho, o advogado-geral da União indicou acertadamente que, “no caso dos pareceres, a manifestação é da instituição”. Porém, logo em seguida, arrematou que o parecer deveria amoldar-se às preferências da Presidência da República, como se ele próprio não fosse o órgão máximo decisório da AGU: “se eu entrego um parecer à presidenta da República e ela diz que aquilo é um absurdo, tenho que alterar, porque a manifestação é dela, não minha”.

Ora, se é certo que, no caso dos pareceres, a manifestação é da instituição, e se a Presidência da República não integra a AGU, é bem evidente que a conclusão do parecer não pode ficar ao alvedrio da vontade do chefe do poder Executivo.

Contradição à parte, os trechos da entrevista destacados revelam uma concepção de advocacia pública determinada por um trato normativo do tema, que, infelizmente, não guarda conformidade com a estatura constitucional da instituição. A advocacia pública, relacionada no Capítulo IV do Título IV da Constituição como função essencial à Justiça, ao lado do Ministério Público, da Defensoria Pública e da advocacia stricto sensu, tem sido vista inadequadamente como órgão auxiliar e subalterno do chefe do poder Executivo, o que explica a necessidade de o advogado-geral da União alterar o parecer produzido, se a Presidência da República achá-lo “absurdo”.

A genealogia dessa concepção, que favorece a concentração de poderes em mãos imperiais, talvez remonte mesmo a uma centenária cultura autoritária e personalista que os sopros democráticos da Constituição brasileira de 1988 custa a superar, na qual a legalidade é um conceito que varia conforme a vontade do governante do momento. Com a palavra, os politicólogos que certamente muito tem a dizer a propósito desse tema.

Mais concretamente, pode-se apontar a Lei 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispôs sobre a Presidência da República e ministérios, como esteio normativo mais próximo a embasar a ideia de que a Advocacia-Geral da União estaria submetida à vontade do chefe do poder Executivo. Referida lei teve a propriedade de colocar o chefe de uma das funções essenciais à Justiça na estrutura da Presidência da República, como um dos órgãos de assessoramento imediato (artigo 1º, parágrafo 1º, VI, com redação dada pela Lei 12.462, de 2011). Além disso, colocou-se o advogado-geral da União na condição de ministro de Estado (cf. inciso III do parágrafo único do artigo 25, com a redação dada pela Lei 12.462, de 2011).

Daí, é até bastante natural que, sendo um ministro de Estado, nos termos da lei, esteja o advogado-geral da União submetido à vontade da Presidência da República. Porém, numa República, desde que se aceite o dogma da supremacia da Constituição, essa leitura de uma instituição de matiz constitucional a partir do que dizem os textos legais é de todo equivocada.

Com efeito, não se pode aceitar que, mesmo após a Constituição ter apartado explicitamente a advocacia pública das entranhas do poder Executivo, venha o legislador ordinário dispor que o chefe dessa função essencial à Justiça será um ministro de Estado.

De acordo com a Constituição em vigor, compete privativamente ao presidente da República nomear e exonerar os ministros de Estado (artigo 84, I). Tais agentes, segundo a Lei Maior, são auxiliares da Presidência da República, no exercício do poder Executivo (artigo 76) e na direção superior da administração federal (artigo 84, II), escolhidos entre brasileiros maiores de 21 anos e no exercício dos direitos políticos (artigo 87).

Do normativo constitucional, nota-se que os ministros de Estado são subalternos ao presidente da República e estão indiscutivelmente inseridos no Poder Executivo. Os ministros, em auxílio à Presidência, exercem o mais alto grau da hierarquia da administração pública federal, sendo responsáveis diretos pela condução das políticas públicas.

Muito diversamente, a Constituição da República não confere ao advogado-geral da União o tratamento de ministro de Estado. Reveladora dessa circunstância é a previsão constante do artigo 84, XVI, segundo a qual é da competência privativa da Presidência da República “nomear os magistrados, nos casos previstos nesta Constituição, e o Advogado-Geral da União”. Ora, se fosse da ideia do constituinte tratar o advogado-geral da União como um ministro, certamente, teria aditado ao texto do inciso I do artigo 84 (nomear e exonerar os ministros de Estado), alguma referência ao advogado-geral da União. No entanto, como se nota do inciso XVI do artigo 84, o chefe da AGU foi ladeado aos magistrados que são nomeados pelo presidente da República, mas que, nem por isso , são vistos como seus auxiliares.

Mas não é só. A advocacia-geral da União é um órgão/instituição de toda a União, pessoa jurídica de direito público interno, e não de um de seus poderes/funções, o Executivo. Seu chefe não é um cidadão qualquer com mais de 21 anos, como a generalidade dos ministros (artigo 87), mas um cidadão maior de 35 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada (artigo 131, parágrafo 1º).

O papel da AGU é o de ser essencial à Justiça, representando a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos de lei complementar, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do poder Executivo (artigo 131). É a advocacia-geral da União, assim, que atua judicialmente na defesa dos atos de quaisquer dos poderes da União, e não só do poder Executivo. Donde, já não faz qualquer sentido, num esquema constitucional de separação de poderes (artigo 2º), a colocação da AGU nas entranhas do poder Executivo, por meio de uma lei ordinária, na qualidade de um simples ministério.

Ao prestar o assessoramento jurídico “do Poder Executivo” (a Constituição não diz “no Poder Executivo”), a Advocacia-Geral da União não se transmuda em órgão subalterno à Presidência ou em auxiliar da administração da coisa pública. O parecer lançado pela advocacia pública não é um ato administrativo nem encerra natureza decisória. A decisão concreta e reveladora de exercício de poder estatal é, sempre, do gestor. O parecer, embora possa ser obrigatório em determinadas situações, possui sua dignidade específica e não compõe a vontade do administrador. Contribui para uma decisão mais acertada do gestor, mas não é a decisão propriamente dita.

É preciso ponderar que, mesmo quando empregado, o advogado mantém sua isenção técnica e independência profissional, pois essas condições são inerentes à advocacia (artigo 18 da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994), logo, tratamento diferenciado não poderia ser conferido à autoridade máxima da Advocacia-Geral da União.

Pertencer à advocacia pública é estar ao lado do constituinte. É ser chamado pelo “cliente” e estar adjacente a ele, resguardando sua isenção técnica e independência profissional. Não é estar dentro do constituinte, como se fosse um órgão, compondo-lhe a vontade, substituindo-lhe em seu atuar no mundo. Não é possível à advocacia pública falar em “áreas clientes”, se a própria instituição vê-se enquadrada dentro da estrutura organizativa dos destinatários de suas manifestações. É impossível estar em ambos os lados do balcão ao mesmo tempo.

A postura do advogado-geral da União na entrevista concedida à ConJur, no ponto em que não distingue a decisão da presidente da República do parecer que lhe é ofertado pela advocacia pública, revela, portanto, uma profunda incompreensão do altíssimo papel destinado pela Constituição à Advocacia-Geral da União. Apesar de conforme com a concepção legal de que o advogado-geral da União teria status de ministro, isto é, de subalterno direto da Presidência da República, a entrevista despreza o entendimento de que à advocacia pública deve ser conferida independência técnica suficiente para dizer ao governante que sua vontade, nem sempre, é a lei.

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