Diário de Classe

Crise do Exame de Ordem exige criação de novo modelo

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27 de julho de 2013, 8h00

Spacca
A recente polêmica acerca de uma questão mal formulada na segunda fase do último Exame de Ordem, mais especificamente na prova de Direito Penal, instalou uma verdadeira situação de crise em torno do certame. Setores autorizados do pensamento jurídico nacional reivindicam a anulação da questão com a consequente aprovação de todos os candidatos que se inscreveram para a prova de Direito Penal. A crise instalada, contudo, merece uma reflexão mais acurada por parte da comunidade jurídica. É certo que, logo na sequência da divulgação do gabarito, importantes juristas, dentre os quais César Bittencourt e Eugênio Pacelli, ofereceram interpretações apontando os equívocos na formulação da questão. Mais recentemente, Guilherme Nucci firmou sua posição tentando defender a questão na forma como apresentada pelo exame. Sem embargo, muitas dessas posições externadas até o momento estão presas ao “presente”, às consequências diretas do problema, e pouco refletem sobre o modo de se lidar com o exame e sua formulação nas próximas edições do certame.

Em sua última coluna publicada nesta mesma ConJur, Lenio Streck (clique aqui para ler) volta a chamar a atenção, de maneira enfática, para os vínculos que existem entre a questão do ensino jurídico tradicionalmente praticado no Brasil e aquilo que está no âmago do problema envolvendo a questão objeto do imbróglio: o ficcionalismo do discurso jurídico e os seus descaminhos nessa época de massificação do curso de Direito. O ponto principal de reflexão, me parece, passa exatamente por esse caminho: a questão de se saber de que forma o Exame de Ordem se relaciona com o ensino jurídico e de que modo a reprodução de velhas práticas pedagógicas acabam por trazer problemas para a formulação do Exame.

Relação entre ensino jurídico e Exame de Ordem
O primeiro ponto sobre o qual precisamos refletir diz respeito ao tipo de relação que existe, hoje, entre o ensino jurídico e o Exame de Ordem. De há muito a OAB utiliza o exame para estabelecer uma espécie de ranking entre as faculdades de Direito. Nos últimos anos, as faculdades com boas médias de aprovação — que acabam recomendadas pela OAB como sendo portadoras de um ensino jurídico de qualidade — passaram a usar, cada vez com mais agressividade, esses índices como verdadeiras peças publicitárias.

Dito de um modo simples: de olho no mercado da educação jurídica — cada vez mais competitivo em face do crescente número de cursos autorizados — as faculdades anunciam seus bons índices de aprovação no Exame de Ordem como uma prova definitiva de que ali se pratica um ensino jurídico adequado, apto a colocar os seus egressos em boas condições de inserção no mercado jurídico. Assim, os eventuais consumidores do “produto” curso de Direito procuram pautar a escolha da faculdade que irão cursar a partir desse critério preponderante que é a “capacidade aprovatória” que a instituição demonstra possuir.

Porém, é de se perguntar: o Exame de Ordem pode ser considerado uma instância legítima para afiançar a qualidade do curso de Direito praticada por uma determinada instituição de ensino?

Em primeiro lugar, é preciso considerar o seguinte: o objetivo de uma faculdade de Direito não é — nem pode ser — formar apenas advogados. Além de ser enciclopédico do ponto de vista do conhecimento, o curso é policêntrico na perspectiva da formação profissional. Do bacharelado em Direito não se tem como consequência necessária o exercício da advocacia. Há uma plêiade de profissões jurídicas que, a despeito de exigirem o bacharelado em Direito como condição sine quo non para o seu exercício, dispensam a inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil[1].

Assim, considerando que não há uma relação necessária entre o bacharelado em Direito e o exercício da advocacia, então, por qual motivo o Exame de Ordem, isoladamente, pode fornecer índices de indexação da qualidade do ensino praticado nos cursos existentes em nosso país?

Alguém poderia objetar: “mas não é critério isolado, há também o Enade!” De fato, o poder simbólico do Enade é enorme para angariar candidato a alunos de Direito. Na verdade, nunca ouvi o relato de um acadêmico sequer dizendo ter escolhido a faculdade “x” ou “y” porque estas possuem boas notas no Enade. Muitos dos discentes, principalmente calouros, sequer sabem o que representa o Enade na avaliação do ensino superior no Brasil. Em contrapartida, é muito comum o depoimento de alunos que dizem ter escolhido a faculdade que frequentam pelos índices, considerados por eles bons, de aprovação no Exame de Ordem.

Esse aspecto nos leva a indagar por uma segunda consequência da pergunta pela efetiva relação que existe entre ensino jurídico e Exame de Ordem: é amplamente difundida a argumentação de altos dirigentes da OAB no sentido de que o exame se propõe a “verificar no candidato a existência de conhecimentos mínimos para o exercício da advocacia”. Vale dizer: ele tem caráter profissional. É um verdadeiro concurso que tem por finalidade aferir a aptidão e conhecimentos técnicos para o exercício da advocacia.

Ora, se, como dito acima, o curso de Direito não se propõe a formar apenas advogados o que autoriza, então, o Exame de Ordem servir como farol para os cursos jurídicos de todo o país?

De se notar que esse fator é sentido na enorme maioria dos cursos de Direito. Na busca pelo “Santo Graal” dos índices de aprovação, muitas faculdades extirpam de seus currículos disciplinas essenciais para a formação global do acadêmico, mas que não estão inseridas no leque das matérias cobradas pela OAB. No mesmo passo, qualquer movimento no sentido de incluir determinados conteúdos no Exame gera frisson nas faculdades para prover eventuais lacunas curriculares nesse quesito. Assisti isso com relação à inclusão de questões de Filosofia na fase objetiva da prova. No início, quando não se sabia exatamente como tal conteúdo seria cobrado, algumas faculdades cogitaram reservar um espaço curricular para que os alunos do quinto ano pudessem rever em sala de aula um ponto ou outro que pudesse ser objeto de questão. Depois, diante das “assustadoras” duas questões, a poeira abaixou: de fato, por duas míseras questões, todo esforço despendido não seria adequadamente recompensado.

Isso sem contar que, em alguns casos, têm-se a criação de uma verdadeira “grade curricular paralela”, não oficial, que serve para tentar suprir “deficiências” observadas no decorrer do curso, oferecendo ao discente conhecimentos necessários para sua adequada aprovação no certame.

Parece evidente, portanto, que a reprodução cíclica desse modelo vai levar a resultados desastrosos. Resultados esses muito piores do que o observado no contexto desse atual e polêmico exame. Na verdade, se olharmos mais de perto, poderemos perceber que aquilo que ocorreu nessa prova é um sintoma de algo que não aparece na superfície do discurso, mas que lhe condiciona de forma subterrânea.

Manutenção do modelo de ensino
É um fato que a educação jurídica no Brasil de hoje se manifesta como mercado. Essa é uma conclusão inescapável: as faculdades se constituem como empresas — o gerenciamento de problemas ligados ao enquadramento dos professores por titulação são tratados como assuntos de RH e as ouvidorias são verdadeiros SACs à disposição dos alunos para reclamarem de algum “serviço mal-prestado”. Por outro lado, os alunos são tratados como consumidores. Muitas vezes se portam como tal, lidando com as questões de sua própria formação como quem compra uma mercadoria com defeito em uma loja de conveniências.

Assim, se é certo que as faculdades são empresas e os alunos consumidores, é certo também que o modo de produção que conforma tudo isso é o “capitalismo à brasileira”. De fato, entre nós, ao invés do mercado instaurar uma situação de competitividade criativa, o que ele faz é trazer a inércia para aqueles que nele atuam. Por aqui, quem tem proximidade com os órgãos do Estado, tem também a possibilidade de se valer de suas prebendas. A questão do mercado da educação jurídica não escapa a essa lógica do nosso peculiar “capitalismo de Estado”.

Alguém poderia se perguntar, por exemplo, como é que nós chegamos ao ponto de possuir um número tão alarmante de cursos de Direito? A resposta, na verdade, é sobejamente conhecida. Entre o início do governo Collor e o primeiro ano do governo Lula foram criados e autorizado o funcionamento de mais de 500 cursos de Direito. Parcela significativa desses cursos foram atribuídos, é claro, à iniciativa privada. Diante de tal fato, poder-se-ia aduzir: são os ares da democratização do ensino superior soprando, ainda timidamente, a doce brisa do progresso. Pois a tal “democratização” pode também ser lida de outra maneira: o Estado, ao invés de investir nos cursos já existentes, aumentando as vagas dos melhores, preferiu transferir para o setor privado as atividades necessárias para a expansão do sistema. A distribuição desses novos cursos se deu, obviamente, na velha lógica patrimonialista-estamental que governa a política brasileira. E, por acaso, alguém acredita que de 2004 até 2013, essa proliferação de cursos — principalmente no setor privado — sofreu algum tipo de freio? Tanto não sofreu que, no início deste ano, o Ministério da Educação emitiu comunicado para dizer que a autorização de novos cursos de Direito estavam bloqueadas. Havia mais de 100 propostas pendentes de análise! Em uma frase de efeito, que representa bem o que foi dito, o ministro Mercadante teria afirmado: “está fechado o balcão” (clique aqui para ler notícia da época).

Assim, num mercado com mais de 1.200 cursos funcionando, a maior parte deles explorados pela iniciativa privada, o que se verifica não é a existência de uma competitividade criativa, mas, a ocorrência de uma inércia paralisante. E aqui, novamente, o Exame de Ordem — no modo como se apresenta atualmente — tem um papel desabonador nessa história. Como denunciado desde a década de 1980 por importantes autores, tais quais José Eduardo Faria e Celso Campilongo Fernandes[2], o ensino jurídico no Brasil é do tipo cartorial: reproduz um saber domesticado, praticamente incapaz de uma critica produtiva. Pesquisa e produção de conhecimento são pedras preciosas, raramente encontrados no âmbito dos cursos de Direito.

De lá para cá, é fato, muita coisa mudou. A pesquisa em Direito, por exemplo, se fortaleceu, principalmente no âmbito da pós-graduação stricto senso. Na graduação, todavia, a articulação desses fatores criativos-produtivos ainda não é a regra. Pelo contrário, são apenas em determinados nichos — geralmente ligados a universidades públicas — que o desenvolvimento desse tipo de atividade pode florescer. Na esmagadora maioria dos casos, o que prevalece é a mesma lógica denunciada desde os anos 1980: o ensino cartorial, acrítico e que se vale, na maioria das vezes, do mesmo material didático e dos mesmos autores utilizados naquele tempo.

Evidentemente, isso é efeito de um círculo vicioso: as provas oficiais, como é o caso do Exame de Ordem, são elaboradas por essas mesmas pessoas que tendem a reproduzir aquilo que absorveram durante os anos de seu aprendizado.

Quando o Exame de Ordem é usado como peça de propaganda, como fator diferenciador em um mercado de mais de 1.200 cursos de Direito, é obvio que aquilo que nele é cobrado irá pressionar a grande maioria dos cursos a se vincularem programaticamente a tais conteúdos. Num contexto de competição extrema, chega-se, no limite, a se propagar uma lógica que pretende ensinar ao aluno, não o conteúdo propriamente dito, mas o modo mais adequado de se fazer a prova. Como entender as pegadinhas dos examinadores? Como redigir a sua peça de modo a contemplar melhor a “vontade do examinador”? E assim por diante.

No sistema privado de ensino, o ajuste aos padrões exigidos pelo Exame de Ordem é uma necessidade. Se uma universidade pública não consegue bons índices de aprovação no exame, isso pouco altera a sua estrutura acadêmica. Quando muito, gera um mal estar em face de uma pretensa “perda de prestígio”. Já no caso de uma instituição privada, o insucesso generalizado na prova pode significar um abalo decisivo no futuro do curso. Diminuição na procura, dificuldade de formar turmas, entre outros, podem ser listados como contratempos.

Por isso, é óbvio que a prova da ordem tende a moldar aquilo que é ensinado e o modo como é ensinado na grande maioria das faculdades de direito do país.

Uma anotação final
A insistência nesse mesmo modelo pode levar a resultados ainda piores do que aqueles que já estamos vivenciando nos últimos anos. De outra banda, seria possível afirmar que o exame funciona bem para selecionar os profissionais que estão por aí, no “mercado jurídico”? Em parte. O Brasil tem excelentes advogados. Mas, não é difícil de encontrar, no dia-a-dia da profissão, colegas que apresentam peças processuais que são praticamente cópias de modelos disponíveis na internet. Mas o que há de surpreendente nisso? Na verdade, nada. É um sintoma do nosso tempo. E, em um tempo de mínimo eu, o traço que pode marcar de forma mais indelével a individualidade de um autor, que é seu texto, é, às vezes, terceirizado em favor de um grande “outro” que encontramos por aí, nas tramas da internet.

Mas, de tudo isso, podemos destacar uma nota final de otimismo: talvez a crise que se instalou por conta desse problema pontual com o último Exame de Ordem possa levar a uma reflexão sobre o destino dos próximos certames. A OAB se reunirá. Anuncia-se a realização de várias audiências públicas. Vamos aguardar e torcer para que, no desenrolar dessas discussões, um novo modelo possa, de fato, emergir.


[1] Podemos considerar aqui, a título exemplificativo, as profissões de professor, delegado de polícia, promotor de justiça e juiz de direito, sem embargo de , nestes dois últimos casos, existir exigência constitucional da prática de 3 anos de atividade jurídica – art. 93, inciso I e art. 129, parágrafo 3o., todos da Constituição Federal – que, como é cediço, não necessariamente terá que ser a militância na advocacia – nos termos da Resolução n. 75/2009 do CNJ e Resolução n. 40/2009 do CNMP.
[2] Cf. FARIA, José Eduardo. CAMPILONGO, Celso Fernandes. A Sociologia Jurídica no Brasil, Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 29-31. Os autores apontam, ainda, como causa deste excesso tecnicista e da proliferação incontrolada de cursos jurídicos no Brasil, o regime burocrático-militar pós-64 que necessitava de recém diplomados – independentemente do que haviam aprendido – para ocupar o grande número de atividades de “ensino superior”, que exigia, quando muito, habilidades bastantes genéricas. Cf. FARIA, José Eduardo. CAMPILONGO, Celso Fernandes. op., cit., p. 10-11.
 

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