Texto decepcionante

Novo CPC representa oportunidade desperdiçada

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27 de julho de 2013, 9h59

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou, dia 17 deste mês de julho, a redação final do Projeto de Lei n. 8.046/2010, que institui o “novo” Código de Processo Civil. Agora, segundo notícias do parlamento, o projeto seguirá a plenário e deverá ser votado no início do mês de agosto.

O texto daí tirado conseguiu ser ainda mais decepcionante, por seu surpreendente anacronismo e disfuncionalidade, do que aquele saído do Senado e encaminhado à Câmara dos Deputados, tempos atrás.

Apenas para se ter uma ideia do que virá por aí, o “novo” (?) CPC ressuscitou a separação judicial, que tristemente insiste em permanecer no Código Civil de 2002. Figura canhestra e desbotada, sem qualquer sentido prático sincero na vida das pessoas de bem, foi em boa hora banida pela emenda constitucional n. 66/2010, mas mantida por parte da doutrina em seus manuais escolares sob os argumentos mais excêntricos, com o objetivo de utilizar-se, quando conveniente, das suas estranhas espécies — separação “remédio” e separação “sanção” —, para punição, por exemplo, do cônjuge adúltero (?), figura penal tardiamente varrida do Código Penal no ano de 2005.

Enfim, seremos presenteados com um Código que se intitula “novo”, mas que se mostra na verdade mumificado, que nada ou quase nada servirá para a melhoria dos serviços de justiça, como se demonstrará a seguir.

As principais motivações da “Comissão de Juristas” para feitura do “novo” CPC: agilidade, simplicidade e efetividade do resultado da ação (resolver problemas)

O núcleo da reforma proposta pela “Comissão de Juristas”, inicialmente instituída pelo Senado, reside na decantada morosidade do Poder Judiciário.

Pretende o “novo” Código proporcionar ao país uma “Justiça mais rápida e, naturalmente, mais efetiva”, através de um texto de linguagem simples, como simplificada imaginam a própria ação processual.

“Resolver problemas”. Esta, conforme a Comissão, uma das linhas principais do trabalho ali desenvolvido. “Deixar de ver o processo como teoria descomprometida de sua natureza fundamental de método de resolução de conflitos, por meio do qual se realizam valores constitucionais”. Este o mote utilizado.

Portanto, “celeridade”-“efetividade” é o binômio que permeia toda a novel compilação, almejando o “novo” CPC ser também “inovador” e “moderno”, mas sempre com estrita observância do “due process of law”.

Nossa impressão a respeito do “novo” CPC

A isenta e sincera leitura do texto do “novo” Código até aqui apresentado parece indicar ter ele se afastado, em vários momentos, de suas motivações originais, sendo muito pouco provável a percepção, na prática forense diária, da prometida celeridade/efetividade, menos ainda da resolução concreta de problemas. Tampouco se constata a propalada “simplificação do sistema”, capaz de lhe proporcionar coesão suficiente a permitir centre o juiz sua atenção no mérito da causa.

Também não é possível inferir tenhamos nos livrado da disfuncionalidade sistêmica que envolvia o antigo CPC. Ainda, e pior, haverá novos focos de “estrangulamento” do processo, com o “travamento” do trâmite do feito e a necessidade de se retornar, em incontáveis hipóteses, à utilização do mandado de segurança para a garantia dos direitos fundamentais processuais dos litigantes (devido processo, ampla defesa e, principalmente, contraditório).

A deformação do anteprojeto em seu atual estágio chega ao ponto de não levar em consideração a natureza das ações, suas particularidades, enfim, culminando na determinação, ao juiz, para que atente obrigatoriamente à ordem cronológica de conclusão dos processos quando for proferir sentença ou acórdão, numa evidente inversão de valores, partindo do equivocado princípio da insinceridade e da desconfiança nos magistrados.

O “novo” texto, vezes várias, limitou-se a ser cópia fiel de inúmeros dispositivos do CPC que agora considera vetusto. Noutras tantas, optou por modificar levemente a forma, substituindo expressões consagradas no dia-a-dia forense por simples sinônimos, numa alteração nem sempre bem sucedida e invariavelmente desnecessária. Noutras, ainda, buscando talvez “simplificar” a linguagem, como sublinhado na apresentação, empobreceu-a, possivelmente querendo aproximar o “direito” do “povo”, como se as pessoas comuns (não técnicas) pudessem abrir um Código desta magnitude e entendê-lo perfeitamente.

Ocorre que o empobrecimento da linguagem traz, em seu bojo, o esfacelamento do próprio direito que alega proteger, pois (re)cria dificuldades à aplicação de conceitos e institutos, reavivando polêmicas interpretativas com a utilização inadvertida de termos polissêmicos e dúbios, tudo em prejuízo da compreensão do direito e de sua aplicação final, que se continuará a prestar a destempo.

Não vemos real significado em várias das “inovações” nem nos parece, de igual forma, por exemplo, agredir aos princípios retores da Carta Maior o fato de o Magistrado extinguir o feito, de plano (sem oitiva de todos os interessados), verificando prescrita a pretensão autoral. Pelo contrário, a adoção da “nova regra” acarretará ainda maior e injustificado atraso na prestação jurisdicional. Na mesma esteira, pergunta-se qual a utilidade do julgamento parcial de mérito? Quais vantagens trará ao jurisdicionado? Valerá o sem-número de inconvenientes que fatalmente criará ao trâmite do feito (recursos os mais variados, inclusive o mandado de segurança)? Como interpretar utilmente dispositivo assim redigido: “Desde que possível, o órgão jurisdicional resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria o pronunciamento que não o resolve.”?

Utilizando-se da inteligência genuína e singular do Prof. Barbosa Moreira, refere nota da Comissão ser necessário “pôr na primeira instância o centro de gravidade do processo” (Breve notícia sobre a reforma do processo civil alemão. Revista de Processo. São Paulo, v. 28, n. 111, p. 103-112, jul./set. 2003, p. 105).

Com o merecido respeito, entretanto, é preciso consignar com franqueza que para que a Justiça de primeiro grau opere eficazmente, não basta editar mais uma norma, por melhores que sejam as intenções de todos. A questão não é singela e merece reflexão profunda, passando inafastavelmente pelo redesenho do papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário numa sociedade complexa, pela reformulação dos concursos de ingresso (e permanência) no serviço público, pelas estruturas físicas e de pessoal dos fóruns, pelo repensar da inserção da tecnologia da informação no quotidiano forense, pelo resgate do respeito mútuo que se devem juízes, advogados, promotores de justiça e tribunais, pelo desempenho efetivo, dinâmico, proativo e menos punitivo das Corregedorias de Justiça e do CNJ, como forma de estancar o desprestígio corrosivo por que passa principalmente a magistratura da base, por exemplo.

De igual forma, em que pese alguns poucos dispositivos virem ao encontro de antigos anseios da advocacia, como o detalhamento de seus honorários e a redução de prazos processuais para manifestação do MP e Defensoria, e.g., como um todo, a atual versão do “novo” CPC representa não só mais uma oportunidade perdida, mas clamoroso retrocesso aos genuínos interesses da classe. Do que vale, por exemplo, suspender prazos processuais no período de final de ano e manter a continuidade dos trabalhos forenses? Com a redação do artigo 220 pretendem seus autores proibir o recesso de final de ano, desautorizando CNJ e tribunais? Qual a utilidade dessa visão revanchista e pequena para o jurisdicionado? O que acontecerá, na verdade, é que os cartórios simplesmente represarão o trabalho e, findo o prazo de suspensão, farão publicar todas as relações de intimação duma só vez, inviabilizando o cumprimento dos despachos, interlocutórias e sentenças pelo advogado.

A fundamentação utilizada para a inserção de vários dispositivos do “novo” CPC mostra-se altamente conflitante, o que transparece da sua simples e desapaixonada leitura.

Assim, inconciliável se apresenta o contido nos parágrafos acima (centrar o foco do processo no juiz de primeiro grau), com o afirmar que “o desvirtuamento da liberdade conferida ao juiz de decidir com base em seu entendimento sobre o sentido real da norma implicou no comprometimento do princípio da “isonomia””. Conseguirá o “novo” Código, com essa postura, “pôr os juízes da primeira instância no centro de gravidade do processo”?

A fim de justificar o engessamento da criação judicial na base (criação esta a mais saudável, pois permite inclusive a oxigenação do entendimento dos tribunais superiores, posto que os juízes brasileiros ainda possuem a tríplice garantia —vitalícios, inamovíveis, sem redução nominal de vencimentos —, o que lhes confere liberdade ideológica e política, vez que desvinculados dos favores do poder), forjou-se o “incidente de julgamento conjunto de demandas repetitivas” sustentando que, “uma vez firmada jurisprudência em certo sentido, esta deve, como norma, ser mantida, salvo se houver relevantes razões recomendando sua alteração”. Explicitou assim, o “novo” CPC, acreditando com isso inibir a multiplicidade de decisões sobre um mesmo tema, que “a mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas” para, ao depois, estabelecer que “na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores, ou oriunda de julgamentos de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Como se vê, continuamos à mercê dos ventos. Não há limite algum para que a alteração jurisprudencial ocorra ao sabor dos entendimentos do dia, desde que “fundamentada” (e poderia ser diferente, sem agressão ao comando do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal?). Mais ainda, e aí estiolando os princípios da “legalidade” e “isonomia” que inspiraram o dispositivo central, permitiu-se a “modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”, como hoje já se verifica, a.e., quando do julgamento de questões envolvendo a cobrança ilegal de tributos pelo Estado e sua tormentosa devolução (vide artigo 27 da Lei nº 9868/1999).

Com o inegável intuito de “revogar” sólida jurisprudência dos tribunais superiores, a nova versão do anteprojeto prevê a obrigatoriedade de a sentença enfrentar “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. Todos os argumentos? Em tese? Ora!

E ainda, na esteira do grosseiro “engessamento” e “desoxigenação” da jurisprudência, determina-se a invalidade de sentença que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. É o fim do livre e sério convencimento do magistrado. Petições e contestações “quilométricas”, contendo pedidos quase infinitos e muitas vezes desprovidos de seriedade, exigirão sentenças igualmente enormes e, claro, cada vez mais escassas!

No que se refere à condução interna do feito, com a obrigatoriedade (como regra) de prévia audiência conciliatória em todas as hipóteses, andou muito mal o Código. Sem estrutura adequada (física, financeira, de pessoal), encheremos as já abarrotadas pautas de julgamento/conciliação dos juízes de primeiro grau (aqueles que serão o “centro gravitacional do novo processo”, lembra?), retardando o julgamento das causas, em clamoroso prejuízo da celeridade processual. A experiência mostra quão pouco eficaz é a tentativa de conciliar as partes, v.g., em feitos que envolvam questões bancárias, as teles, seguradoras e temas relacionados a danos anímicos e estéticos. Por razões até de estrutura societária, muitas das empresas envolvidas em demandas tais só podem efetuar pagamento ou proposta de acordo após a prolação da sentença.

 No tópico, para maior desprestígio dos advogados, oneração das partes, dos cofres públicos e atraso na prestação jurisdicional, serão os tribunais obrigados a criar “centros judiciários de solução consensual de conflitos”. A ausência de técnica e qualidade redacionais acabou por dizer mais que o óbvio, i.e., que na conciliação é “vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem”. Por acaso, em algum outro momento ou ato processual são permitidos o constrangimento ou a intimidação?

Também inconcebível conste num Código que se quer moderno e atual, como se de inovação de ponta se tratasse, artigo que trate do “assessoramento direto do juiz por um ou mais servidores”.

Ainda, a advertência ao réu acerca da aplicação de “pena por ato atentatório à dignidade da justiça” em razão de seu não comparecimento à audiência prévia de tentativa de conciliação só aumentará a animosidade entre as partes e servirá de “moeda de troca ao autor”, que poderá assumir, dependendo do caso, posição de “ataque/intransigência”, colocando-se em situação de vantagem desmedida em face do réu.

Então, porque não manter as disposições atuais do CPC/1973, permitindo ao Magistrado, a qualquer tempo, verificando a possibilidade de acordo, designar audiência para tal fim (artigo 125, inciso IV, do CPC), sem prejuízo à parte que não comparecer? Porque voltarmos à punição severa pelo não comparecimento em audiência de simples tentativa conciliatória?

Em suma, as mais das vezes, esta audiência será inútil e consumirá indevidamente precioso tempo dos juízes, advogados e principalmente das partes.

Inegável o olhar mais do que atento dispensado pelo projeto aos “recursos” apresentando-se o tema, claramente, como um dos pilares da reforma empreendida, o que consumiu boa parte do tempo das discussões ali travadas, como se conclui já da apresentação do “novo” texto, ao se colocar, exemplificativamente, as seguintes perguntas: Como vencer o volume de ações e recursos gerado por uma litigiosidade desenfreada, máxime num país cujo ideário da nação abre as portas do judiciário para a cidadania ao dispor-se a analisar toda lesão ou ameaça a direito? Como desincumbir-se da prestação da justiça em um prazo razoável diante de um processo prenhe de solenidades e recursos?

Conclusão provisória

Reformas legislativas de fôlego, como o é a introdução de um “novo” CPC no país, deveriam recuperar o Estado para a sociedade. Este projeto, definitivamente, não o faz!

O que se percebe sem esforços, porém, é que o “novo” CPC preocupou-se demasiado com questiúnculas e não será capaz, também por isso, de responder aos angustiantes e gigantescos problemas que pululam nos abarrotados fóruns do país inteiro, introduzindo um modelo academicista que se sustenta no atraso perverso, no qual o futuro financia o passado.

É uma enorme lástima que desperdicemos oportunidades tão raras.

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