Embargos Culturais

Giorgio Agamben e a arqueologia do juramento

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

21 de julho de 2013, 8h01

O filósofo e ensaísta italiano Giorgio Agamben apresenta-nos em O Sacramento da Linguagem[1], interessante estudo sobre simbologia e efeitos práticos do juramento, focando vários momentos da civilização ocidental. O texto visita autores antigos, Cícero, Hesíodo e Platão, autores canônicos de antropologia jurídica, Lévy-Bruhl e Lévi-Strauss, os jusnaturalistas, a exemplo de Samuel Pufendorf, autores mais contemporâneos, Paolo Prodi, Georges Dumézil e Ernest Cassirer. Agamben propõe-nos uma arqueologia do juramento, esforço que informa exatamente o subtítulo desse precioso livro. O pensador italiano mapeia a prática do juramento, enquanto um ato solene de comprometimento e de revelação de vontade.

Segundo Agamben, estudiosos sempre vincularam o juramento a fortíssimos componentes teológicos, com base em práticas de magia e de religião, situação que paradoxalmente revelaria alguma aproximação entre juramento e blasfêmia. E assim, segue o pensador italiano, “os estudiosos frequentemente explicaram, de maneira mais ou menos explícita, o instituto do juramento remetendo-se à esfera mágico-religiosa, a um poder divino ou a ‘forças religiosas’ que intervém para garantir a sua eficácia punindo o perjuro”[2].

Agamben, no entanto, avança com hipótese distinta, isto é, defende que não seria a esfera mágico-religiosa preexistente ao juramento; “mas é o juramento, na qualidade de experiência performativa originária da palavra, que pode explicar a religião (e o direito, que está estreitamente vinculado a ela)” [3]. A prática do juramento antecederia a metafísica e a fixação dos arranjos institucionais reguladores da vida social.

Haveria intensa ligação entre juramento e confirmação e de validade da palavra. Agamben ilustra a assertiva com as linhas gerais das religiões monoteístas, particularmente do cristianismo, para a qual o juramento qualificaria a centralização da palavra, divinizada, explicitando um “conteúdo essencial da experiência religiosa”[4]. Agamben vale-se da tradição paulina e retomando o ambiente de formação e de organização da Igreja, enquanto uma comunidade burocraticamente regulada.

Agamben persiste nas relações de convergência conceitual e de identidade entre direito e religião. O tema do juramento é propício para tal estudo, ainda que as conclusões sejam absolutamente provocantes. Para o pensador italiano, haveria proximidade essencial entre juramento e devoção[5]. De tal modo, prossegue Agamben, o juramento também pode assumir a forma técnica de maldição, que seria o veículo pelo qual uma lei seria revelada. Por isso, segundo Agamben, “(…) o direito está, constitutivamente, vinculado à maldição, e só uma política que tenha rompido esse nexo original com a maldição poderá um dia, eventualmente, permitir outro uso da palavra e do direito”[6].

O juramento é prática recorrente na experiência da palavra. Vincula a ação política ao mistério do logos. Este último é nossa marca característica, revelador do fato de que detemos consciência; diferencia-nos de outras formas de vida. O jurar em vão, na fórmula de Agamben, faz da política um esforço vazio em favor da palavra dada, mas não cumprida, sob a argumentação que o juramento qualifica um arcaísmo da conduta e das relações humanas.

Acrescento que há juramentos para as mais variadas finalidades. Jura-se eterno amor, jura-se servir ao povo, jura-se cumprir a Constituição, jura-se fidelidade ao governo; há quem jure descumprindo mandamento bíblico.

Ao repassar as primitivas formas de juramento, Agamben insiste que a garantia da veracidade e da palavra dada transcendem qualquer finalidade semiótica ou cognitiva da linguagem[7]. E assim, continua Agamben, “é possível então que, originalmente, no juramento não estivesse em jogo apenas a garantia de uma promessa ou a veracidade de uma afirmação, mas que o instituto que hoje conhecemos com este nome contenha a memória de um estágio mais arcaico, no qual ele tinha a ver com a própria consistência da linguagem humana e com a própria natureza dos homens enquanto animais falantes”[8].

O juramento é resquício de um tempo no qual se reconhecia a “inconfiabilidade dos homens, incapazes de serem fiéis à próprias palavras”, bem como é atual comprovação de uma “fraqueza que tem a ver coma própria linguagem”[9]. Nuclear na experiência da política (e por extensão na experiência do direito), o juramento é prática que sofre o desuetudo, o desuso, ainda que consignada em documentos políticos, sempre jurados, e no mais das vezes pouco cumpridos. O juramento é veiculado pela palavra, unidade comunicativa que proclama verdades, mas que também pode ser manipulada pela astúcia. Assim, insinua Agamben, o retorno aos fundamentos éticos que justificam os juramentos parece ser indicativo necessário do retorno à boa via, então perdida, a valer-me de excerto do início da mais famosa obra da literatura italiana.


[1] Agamben, Giorgio, O Sacramento da Linguagem-Arqueologia do Juramento, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011. Tradução de Selvino José Assmann.
[2] Agamben, Giorgio, cit., p. 76.
[3] Agamben, Giorgio, cit., loc. cit.
[4] Agamben, Giorgio, cit., loc. cit.
[5] Agamben, Giorgio, cit., p. 77.
[6] Agamben, Giorgio, cit., loc. cit.
[7] Cf. Agamben, Giorgio, cit., p. 12.
[8] Agamben, Giorgio, cit., p. 15.
[9] Agamben, Giorgio, cit., loc. cit.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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