Sigilo aberto

Poucas decisões tratam de convênios entre MP e órgãos

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16 de julho de 2013, 8h49

Apesar de a Constituição Federal proteger o sigilo de informações de cidadãos ao prever o direito à privacidade, convênios feitos entre órgãos públicos e o Ministério Público para compartilhamento de dados sem autorização da Justiça desafiam a premissa. São exemplos as relações do MP com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério da Fazenda, e com a Receita Federal. O mais recentemente divulgado foi o do Banco Central. Em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, o procurador-geral da instituição, Isaac Ferreira, confirmou que o Bacen informa ao MP sobre movimentações indicativas de crimes financeiros. A lista de operações consideradas atípicas inclui 106 hipóteses. A justificativa para a transferência de dados é a polêmica Lei Complementar 105/2001, que determina o procedimento.

No Supremo Tribunal Federal, há pelo menos cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a LC 105/2001 (ADIs 2.386, 2.390, 2.397, 4.006 e 4010). Todas, no entanto, tratam apenas da possibilidade de quebra, sem ordem judicial, de sigilo bancário pela Receita Federal, para investigar sonegações. O artigo 5º da norma é que traz essa autorização. No caso do Banco Central, porém, é o artigo 9º que disciplina as comunicações ao MP, e apenas em casos de crimes financeiros. Mas não se tem notícia de ADIs contra o artigo 9º.

Há pouca jurisprudência sobre o assunto — a maior parte favorável à quebra. Levantamento feito pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região a pedido da ConJur mostra apenas uma decisão colegiada do Supremo exclusivamente sobre compartilhamento de dados com o MP posterior à edição da LC 105. “Não há óbice a que o Ministério Público requisite esclarecimentos ou diligencie diretamente a obtenção da prova de modo a formar seu convencimento a respeito de determinado fato, aperfeiçoando a persecução penal, mormente em casos graves como o presente, que envolvem altas somas em dinheiro movimentadas em contas bancárias”, diz o acórdão da 2ª Turma no Recurso Extraordinário 535.478, lavrado em 2008 e relatado pela ministra Ellen Gracie (aposentada).

No julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, o STF recebeu um questionamento sobre a prática, mas não entrou no mérito da celeuma. Um dos réus questionou a entrega de um relatório de fiscalização de contas do Banco Central pedido diretamente pela Procuradoria-Geral da República. No entanto, segundo os ministros, o relatório foi pedido pela CPMI dos Correios, que tem a prerrogativa de pedir essas informações sem aval da Justiça. "No âmbito deste Inquérito [2.245], o Presidente do Supremo Tribunal Federal determinou o ‘compartilhamento de todas as informações bancárias já obtidas pela CPMI dos Correios’ para análise em conjunto com os dados constantes destes autos", diz o acórdão.

Ao julgar monocraticamente no Inquérito 2.822, envolvendo o senador Ivo Cassol, em 2011, o ministro Marco Aurélio acatou alegação da defesa de que o Ministério Público não pode ter acesso a informações sigilosas sem autorização judicial. "Qualquer medida nesse sentido há de submeter-se previamente ao crivo judicial, preservando-se, assim, o primado do Judiciário no tocante à exceção à regra do sigilo de dados, tal como previsto no artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal", disse em despacho. 

No Superior Tribunal de Justiça, decisão de 2009 da 1ª Turma vai no sentido contrário. O ministro Luiz Fux, então relator do Recurso Especial 1.060.976 na corte, afirmou que a Lei Complementar, ao ampliar as hipóteses de exceção do sigilo em relação a requisições do Poder Legislativo em Comissões Parlamentares de Inquérito, dispensou também de autorização do Judiciário os pedidos do MP, “revelando inequívoca intenção do legislador em tornar a quebra do sigilo bancário instrumento eficiente e necessário nas investigações patrimoniais e financeiras tendentes à apuração da autoria dos atos relacionados com a prática contra o erário de condutas ilícitas, como soem ser a improbidade administrativa, o enriquecimento ilícito e os ilícitos fiscais”. E concluiu: “A regra do sigilo bancário deve ceder todas as vezes que as transações bancárias são denotadoras de ilicitude, porquanto não pode o cidadão, sob o alegado manto de garantias fundamentais, cometer ilícitos. O sigilo bancário é garantido pela Constituição Federal como direito fundamental para guardar a intimidade das pessoas desde que não sirva para encobrir ilícitos”.

Em 2010, a 2ª Turma do STJ seguiria o exemplo ao julgar o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.362, relatado pelo ministro Herman Benjamin. Diz o acórdão: “A exemplo do entendimento consagrado no STJ, no sentido de que nas Execuções Fiscais a Fazenda Pública pode requerer a quebra do sigilo fiscal e bancário sem intermediação judicial, tal possibilidade deve ser estendida ao Ministério Público, que possui atribuição constitucional de requisitar informações para fins de procedimento administrativo de investigação, além do fato de que ambas as instituições visam ao bem comum e ao interesse público”.

Apenas uma decisão se opõe ao entendimento. A 6ª Turma, em 2003, ressalvou que, embora o Banco Central tenha obrigação de comunicar a prática de ilícitos penais ou administrativos e que isso não é quebra de sigilo, o Judiciário deve mediar o pedido do MP. “Os sigilos bancário e fiscal não constituem direito absoluto e devem ceder quando razões de interesse público, devidamente fundamentadas, demonstrarem a conveniência de sua quebra, mediante ordem judicial”, diz o acórdão relatado pelo ministro Paulo Medina (aposentado).

Tribunais federais
Em segundo grau, as decisões se dividem. No TRF da 2ª Região, em pedido de Habeas Corpus julgado em 2009 (HC 2008.02.01.017095-4), a 1ª Turma Especializada entendeu que não viola preceitos constitucionais a prescrição da LC 105 de que órgãos públicos comuniquem ao MP a “prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa; e, ainda, autoriza o Bacen e a CVM a informarem ao Ministério Público Federal a ocorrência de crimes definidos em lei como de ação penal de iniciativa pública, ou mesmo indícios de sua prática, juntando à comunicação eventual documentação necessária a comprovação dos fatos”.

Já na 3ª Região, o TRF concedeu Habeas Corpus em 2008 afirmando que a quebra administrativa de sigilo bancário só é autorizada pela LC 105 em relação à Receita Federal, e não ao MP. “A norma constitucional prevista no artigo 129, inciso VIII, da Constituição Federal não exime o Ministério Público do dever de buscar, perante o Poder Judiciário, a autorização para a quebra do sigilo bancário”, ressalvou a desembargadora Ramza Tartuce (aposentada), relatora do HC 31.142 na 5ª Turma da corte. Em 2000, a mesma Turma julgava HC relatado também por Ramza Tartuce, com a mesma fundamentação.

Em 2012, decisão relatada pelo desembargador Walter Nunes, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, reconheceu que contratos de financiamento firmados com instituições financeiras também estão protegidos pelo sigilo bancário. No entanto, o julgador lembrou que o direito não se sobrepõe ao interesse público que motive uma ordem judicial de quebra. “Ainda que seja justificável a recusa do fornecimento dos documentos sigilosos diretamente ao Parquet, não prospera o inconformismo do apelante contra a decisão judicial que determinou a apresentação dos documentos, sem estabelecer uma abrangência de espaço e de tempo”, diz o acórdão da Apelação Cível 542.480 — a última localizada pela pesquisa sobre o assunto. Não foram encontradas decisões específicas sobre o compartilhamento de dados, sem ordem judicial, entre órgãos públicos e o MP no TRF-1 e no TRF-4.

Lei versus Constituição
Especialistas ouvidos no mês passado pela ConJur se dividem sobre o perigo do compartilhamento de dados protegidos de cidadãos entre o MP e o Banco Central. “O fato de passar documentos — cuja constitucionalidade me parece duvidosa — não significa que o MP os utilizaria para realizar investigações, mas para instruir requisição de instauração de inquérito policial, ou oferecer denúncia, se achar que as peças são suficientes a tanto”, afirma o criminalista Arnaldo Malheiros Filho, do escritório Malheiros Filho, Rahal e Meggiolaro – Advogados.

O procurador-geral do Banco Central, Isaac Ferreira, confirmou que há casos de informações sigilosas repassadas ao largo da Justiça. “Não tenho conhecimento de decisão do STF suspendendo a eficácia da LC 105, que obriga o BC a comunicar indícios de crimes ao MP, com os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos. Assim, pelo princípio da presunção de legitimidade e constitucionalidade das normas, a LC 105 está em vigor e deve ser cumprida pelo BC até decisão em sentido contrário da suprema corte”, disse.

Mas o criminalista Rogério Taffarello, do escritório Andrade e Taffarello Advogados, ressaltou que a entrega dos dados é inconstitucional. “Se no exercício de seus deveres fiscalizatórios o Bacen constatar indícios de crimes, deve ele comunicar ao titular da ação penal pública, mas não poderá disponibilizar automaticamente ao MP eventuais documentos acobertados por sigilo bancário. Isso porque, em nosso sistema constitucional, o afastamento de direitos fundamentais para fins de investigação exige, sempre, autorização judicial prévia, e a legislação do sistema financeiro não excepciona essa regra”, diz.

Ele afirma que o artigo 9º da LC 105 não anula o artigo 2º da própria lei, que firma caber ao BC manter o sigilo de informações bancárias. “O artigo 9º não excepciona de modo algum o artigo 2º da mesma lei, que estende o dever de sigilo ao Banco Central, e menos ainda o artigo 5º da Constituição, que tutela a intimidade e o sigilo de dados em seus incisos X e XII.” O criminalista lembra que a quebra de sigilo, como um afastamento de direito fundamental, tem “reserva de jurisdição” — ou seja, só pode ser determinada pela Justiça. “Referida interpretação só seria possível se o artigo 9º da LC 105 mencionasse expressa e inequivocamente o dever de anexar, na comunicação ao MP, inclusive informações e documentos obtidos mediante afastamento de sigilo”, acrescenta.

Desde 2003, quando defendeu sua monografia para conclusão do curso de Direito, o criminalista Guilherme San Juan Araújo, do San Juan Araújo Advogados, afirma que a lei complementar não pode mitigar o sigilo de dados previsto na Constituição. “Lei complementar esclarece pontos em que a Constituição é obscura, não altera conteúdo constitucional”, explica. “Não podem o BC ou a Comissão de Valores Mobiliários entregar, de ofício, documentos que entendam ser suspeitos. Seria o mesmo que dizer que a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] pode informar telefones suspeitos ao MP.” Segundo o advogado, ações penais com base em tais dados podem ser anuladas.

É no que também insiste o advogado Celso Vilardi, professor da FGV e especialista em crimes financeiros. “O Banco Central e o Coaf podem — e devem — comunicar às autoridades competentes sobre operações que possam ser criminosas. Não podem, contudo, fornecer ao Ministério Público dados protegidos por sigilo bancário, sem autorização judicial”, apregoa. Vilardi já conseguiu convencer a Justiça de seu ponto de vista. Em 2010, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu Habeas Corpus pedido pelo advogado em favor de cliente que teve movimentações bancárias informadas pelo Coaf ao Ministério Público, sem ordem judicial para quebra de sigilo. No caso, os desembargadores da 15ª Câmara de Direito Criminal desconsideraram as provas colhidas e anularam a ação.

Ex-corregedor do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (Dipo) de São Paulo, o desembargador Alex Zilenovski, hoje na 2ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP, contou que a questão era recorrente no departamento. “Eram comuns reclamações de falta de acesso de advogados a provas apuradas na investigação.” Responsável por zelar pela correição dos procedimentos de apuração da Polícia e pelo equilíbrio entre acusação e defesa nos inquéritos, ele apontou o centro do problema na transferência direta de informações sensíveis ao MP: “A investigação tem que ter paridade de armas, a defesa precisa conhecer o que foi apurado para ter oportunidade de oferecer contraprova. O MP não pode simplesmente pegar os dados e oferecer a acusação”, disse. “Do contrário, o Judiciário ficaria à margem do controle de direitos fundamentais. É preciso uma formalização.”

Investigação informal
Está na ainda não questionada constitucionalidade da previsão de Lei Complementar 105 a raiz da discussão. "Os problemas de conflito entre as disposições contidas na LC 105 e a proteção outorgada pela Constituição começam já no parágrafo 3º do artigo 1º da Lei Complementar e se projetam por sobre diversos outros dispositivos, inclusive o artigo 9º", avalia o advogado e professor Sérgio Niemeyer. "O artigo 9º atalha a necessidade imposta pela Constituição de autorização judicial para a quebra do sigilo de dados e das comunicações telefônicas, bem como usurpa a competência da Polícia Judiciária, como se fosse possível a uma lei complementar revogar uma cláusula pétrea da Constituição Federal."

Niemeyer lista as incongruências que vê na norma: "Não compete ao Banco Central investigar a ocorrência de crime. Tal competência é da Polícia Judiciária. Ainda que na avaliação dessas entidades haja indícios ou até mesmo capitulação de alguma conduta cujo monitoramento encontre-se sob sua responsabilidade para outros fins, admita-se devam comunicar o fato ao Ministério Público ou à autoridade policial para que tomem as medidas necessárias, ainda assim não poderão quebrar o sigilo de dados sem mais", pontua.  

O professor lembra que a quebra de sigilo só pode ocorrer quando já houver procedimento formal aberto para apurar crimes, com o conhecimento do suspeito e direito de defesa. "A possibilidade excepcional de quebra do sigilo somente pode ocorrer para fins de investigação criminal, o que pressupõe um inquérito policial em andamento, e isso, por sua vez, pressupõe no mínimo o conhecimento do crime investigado, ou seja, a materialidade certa; ou para fins de instrução processual penal, o que pressupõe a existência de uma ação penal em andamento."

Ele sugere uma leitura da Constituição que facilita o entendimento: "Para interpretar corretamente o inciso XII do artigo 5º da Constituição, deve-se fazer a reordenação do texto em ordem direta: ‘o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas é inviolável, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal’". 

[Notícia alterada em 16 de julho de 2013, às 13h28, para acréscimo de informações.]

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