Reflexões sobre a AP 470 e a lavagem de dinheiro
16 de julho de 2013, 15h38
Por isso, feitas as considerações que a lealdade intelectual exigem, passemos à análise de alguns temas sobre os quais o STF se debruçou durante os últimos meses do ano passado[1].
Ponto um: a Ação Penal 470 e a lavagem de dinheiro
Segundo o acórdão — ainda não transitado em julgado — os réus teriam praticado crimes contra a administração pública — notadamente peculato e corrupção —, crimes contra o sistema financeiro nacional e, posteriormente, ocultado ou dissimulado o produto de tais delitos através de um sistema de empréstimos simulados e saques encobertos de dinheiro em espécie.
A análise a seguir empreendida não tem o escopo de se debruçar sobre fatos e provas. O objetivo é apenas apresentar as principais orientações do Supremo sobre lavagem de dinheiro.
No plano objetivo, embora as condutas descritas na Ação Penal 470 sejam heterogêneas, algumas orientações foram fixadas, como (i) o reconhecimento da admissibilidade da autolavagem de dinheiro, (ii) o afastamento da complexidade da dissimulação como elemento implícito do tipo penal, e (iii) os requisitos para o concurso entre lavagem de dinheiro e corrupção passiva[2].
Tratemos das duas primeiras nesse momento, deixando as demais para a próxima semana.
A primeira questão enfrentada pelo STF foi o reconhecimento do concurso de crimes nos casos de autolavagem de dinheiro (selflaudering), quando o autor do crime antecedente também efetua a reciclagem de seu produto. Nesses casos, a Corte entendeu possível a condenação pelos dois delitos, em concurso[3].
A questão é controversa, inclusive no plano internacional. Há países, como a Itália, cujos Códigos Penais excluem expressamente o autor do crime antecedente do âmbito da lavagem de dinheiro, ou seja, fazem a reserva de autolavagem (artigo 648, bis). Outros, como a Espanha (artigo 301, 1) e Portugal (artigo 368-A, 2) fazem referência direta à punição da autolavagem como concurso de crimes.
A lei brasileira não veda expressamente a autolavagem, mas o STF seguiu inúmeros precedentes já existentes na jurisprudência pátria (inclusive do próprio órgão), interpretando tal silêncio como autorizador da dupla punição[4]. Ou seja, admitiu imputar à mesma pessoa a responsabilidade pela lavagem de dinheiro e pela infração antecedente caso tenha concorrido para ambos. E parece correta tal posição, porque o bem jurídico protegido pela norma de branqueamento de capitais (administração da Justiça[5]) é, em regra, diferente daquele afetado pela infração anterior, e a distinção material permite a punição em concurso material sem que exista o bis in idem, desde que inexistente qualquer hipótese de consunção.
No crime de lavagem de dinheiro, portanto, não incide a exoneração do autor do ilícito antecedente, como ocorre nos casos de favorecimento real (art.349 do CP). E isso pelos seguintes motivos:
i) o tipo penal de favorecimento real, assim como a lavagem de dinheiro, tutela a administração da Justiça.[6] Portanto, em ambos o bem jurídico protegido é distinto (em regra) daquele lesionado pelo crime anterior e seria aplicável a dupla incriminação. No entanto, no favorecimento real o tipo penal expressamente afasta a punição do autor original,[7] enquanto na lavagem de dinheiro a ressalva inexiste.
ii) Mas, ainda que o crime do artigo 339 do CP não indicasse expressamente a exoneração do autor do crime original, a punição do autor do delito antecedente seria descabida pela inexigibilidade de conduta diversa, pois não parece possível impor ao agente de um delito prévio que não tome medidas e precauções para tornar seguro o proveito dele decorrente[8]. Esse raciocínio, no entanto, não se aplica à lavagem de dinheiro. Ainda que esse último delito também afete a administração da Justiça, ele o faz de forma mais incisiva, mais intensa, pois o agente não se contenta em tornar seguro o proveito do crime. Ele vai além, busca tal segurança através da reciclagem, do mascaramento, da reinserção dos bens na economia formal, com aparência lícita. Trata-se de uma lesão qualificada à administração da Justiça que afasta a inexigibilidade de conduta diversa. Do agente do crime anterior se espera que atue para tornar seguro o proveito do crime, mas não que o faça por meio de manobras para conferir a ele um manto de licitude, por meio de operações financeiras e comerciais de aspecto legítimo.
Em suma, esse plus em relação ao mero proveito seguro do produto do crime justifica a possibilidade de punição do autor do delito anterior pela lavagem de dinheiro por ele praticada subsequentemente. Por isso, correta a interpretação da Suprema Corte, indicando o crime de lavagem de dinheiro como comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa, até mesmo pelo agente ou partícipe da infração anterior.
A segunda orientação também não é inovadora: o STF reconheceu — como já o fizera[9] — que o ato de ocultação necessário à lavagem de dinheiro não exige complexidade ou sofisticação. Ainda que simples, precário e primário, o mascaramento pode materializar lavagem de dinheiro.
Efetivamente, a redação legal não prevê que os atos de dissimulação sejam elaborados para a caracterização do crime em discussão. Como já apontava o então ministro Sepúlveda Pertence, “quer o fato retrate modalidade tosca e elementar de lavagem do dinheiro sujo, quer materialize momento inicial de um processo mais complexo a desenvolver”, basta o escamoteamento à tipicidade da lavagem de dinheiro.[10] O simples ato de esconder os bens ou movimentá-los de forma capaz de ludibriar a fiscalização é considerado típico do ponto de vista objetivo, desde que acompanhado da intenção especifica de reinseri-los na economia formal sob um manto de legalidade aparente.
Questão mais complexa envolve a discussão sobre as condenações em concurso de delitos pela prática de lavagem de dinheiro e pelo crime de corrupção. O assunto, que demandará alguma reflexão, será abordado na próxima coluna.
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