Antirregulamentação da Carta

Anteprojeto do CJF propõe reserva de cargos judiciais

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13 de julho de 2013, 12h56

O Conselho da Justiça Federal, órgão que exerce a supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal de primeiro e segundo graus com poderes correicionais (parágrafo único, inciso II, do artigo 105, da Constituição Federal), acaba de divulgar um Anteprojeto de Lei[1] que, a pretexto de regulamentar a EC 73/2013 (cria quatro novos Tribunais Regionais Federais da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões), mas sem sequer remotamente ressaltar essa atitude, acabou esboçando a completa inversão da vontade do constituinte reformador, porque incluiu a possibilidade de "remoções" precedentes entre cargos de segunda instância (juízes dos primeiros TRFs) e outros que ainda irão ser instalados (novos TRFs), e a reserva regional das sobras exclusivamente para os juízes federais das regiões atingidas, com quebra do sentido de unidade da Justiça Federal. Tampouco se debateu o assunto amplamente e a matéria vai ao plenário do Superior Tribunal de Justiça, depois ao Conselho Nacional de Justiça e depois, ainda, ao Congresso Nacional sem ter sofrido a crítica social merecida, nada obstante a sua importância para a nação.

Ao fim e ao cabo, uma grande perplexidade toma a atenção do distinto leitor, pois vai se deparar com o fato de que a providência esboçada não encontra respaldo assim na vontade do constituinte reformador — que pela Emenda Constitucional 73/2013 introduziu o parágrafo 11, ao artigo 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e repristinou, constitucionalmente, suas demais regras — quanto na jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal nas decisões precedentes do próprio Congresso Nacional.

Em primeiro lugar, o anteprojeto de lei negligencia solenemente o que se houve estabelecido na cláusula constitucional em alusão: “São criados, ainda, os Tribunais Regionais Federais...”. O advérbio de tempo — ainda — confere corporeidade à vontade do constituinte reformador no sentido de que se pretendeu ajustar, pelo tempo transcorrido e pelos achados históricos (simultaneidade lógica), a plataforma judicial federal comum de segundo grau no país, no sentido de que outros quatro TRFs (parágrafo 11) se juntassem aos atuais cinco, criados por força do parágrafo 6º, do mesmo artigo 27, do ADCT, cujas regras foram agora constitucionalmente repristinadas. Quanto a isto, um estranho esforço de captura dos novos cargos em favor de uma clientela não prevista pelo constituinte reformador logo tomou vulto durante a pauta de processamento legislativo próprio que encaminhou a PEC 544/2002, originária da EC 73/2013. Foi por uma Emenda do deputado João Magno (EMC 01/2003) que se pretendeu estabelecer a prioridade de “remoção” dos integrantes dos primeiros TRFs na composição das novas cortes federais, e ainda restringir as promoções remanescentes somente aos quadros de juízes federais em exercício nas regiões afetadas pela nova configuração federativa da Justiça Federal. A iniciativa, porém, acabou sendo firmemente rejeitada, a partir de preclaro parecer do deputado Eduardo Sciarra, o qual se fundamentou, acertadamente, na necessidade de observância das normas constitucionais pertinentes, máxime a do artigo 107, da Carta. Com efeito:

A aplicabilidade das normas e princípios inscritos no artigo 93 da Constituição Federal independe da promulgação do Estatuto da Magistratura, em face do caráter de plena e integral eficácia de que se revestem aqueles preceitos.” (STF, ADIN 1.892/DF, Min. Celso de Mello, DJ 22/05/92).

Nada obstante, o esboço do comentado anteprojeto de lei apresentado agora pelo CJF, sem mencionar, sequer remotamente, a EC 73/2013, intenta desta feita ressuscitar, pela via regulatória, o que foi rejeitado na via constitutiva.

Tampouco se poderia negligenciar o argumento conceitual pelo qual remoção não é ato de provimento, mas de puro deslocamento funcional (artigo 36, da Lei 8112/1990) para o quê se exige um cargo de origem — de onde se é removido (o servidor) — e um cargo de destino — para onde se vai remover (o servidor). No caso, não se estaria a cogitar de cargo de destino (no âmbito dos novos TRFs), porque ele simplesmente ainda não existe, fato jurídico somente consolidável, do ponto de vista administrativo, a partir de sua instalação e para o quê se exige, tecnicamente, provimento originário (nomeação, caso dos juízes oriundos do “quinto constitucional”, ex-vi dos artigos 94, e seu parágrafo único, e 107, inciso I, da CF) ou derivado (promoção, por acesso, caso dos juízes de carreira na alternância antiguidade/merecimento, ex-vi dos artigos 93, inciso III, e 107, inciso II, da Carta Política). O provimento originário, resultante de nomeação (“quinto constitucional”), e derivado, resultante de promoção por acesso (carreira judicial federal comum), para a fixação das composições iniciais dos novos TRFs está, sem discrepância formal ou material, novamente consagrado na EC 73/2013, cuja norma central passou a integrar o sistema do artigo 27 do ADCT.

De acordo com a melhor doutrina de Direito Administrativo, provimento é fato administrativo que preenche cargo público vago. No mesmo sentido, o artigo 8º, da Lei 8112/1990. Há duas espécies de provimento: originário e derivado. Segundo Odete Medauar: 

O provimento originário existe quando o cargo foi criado e nunca foi provido ou quando o futuro ocupante não tem vínculo com a Administração. O provimento originário se efetua mediante nomeação, ato administrativo pelo qual se atribui um cargo a alguém. (Direito Administrativo Moderno. 7. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 267) 

No tocante ao provimento derivado, este pressupõe a existência de vínculo entre o servidor e a administração. Alguns exemplos desse instituto são: a progressão vertical na carreira (promoção/ascensão), a readaptação, o aproveitamento, a reversão e a reintegração.

Cabe ressaltar que a remoção não está inserida na forma de provimento derivado. Como bem leciona o mestre José dos Santos Carvalho Filho:

Embora possa haver certa semelhança com algumas dessas formas, com elas não se confundem a remoção e a redistribuição, que não são formas de provimento derivado por não ensejarem investidura em nenhum cargo. Em ambas há apenas o deslocamento do servidor: na remoção, o servidor é apenas deslocado no âmbito do mesmo quadro e, na redistribuição, o deslocamento é efetuado para quadro diverso. Em qualquer caso, porém, o servidor continua titularizando seu cargo, o que não ocorre nas formas de provimento derivado. (Manual de Direito Administrativo. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004. p. 506)

Com base nesses ensinamentos, verifica-se que o provimento dos cargos de juiz de segunda iinstância ocorre de forma mista. Para os integrantes da carreira da magistratura, seja por antiguidade ou por merecimento, o provimento é derivado (promoção). Já para os que são nomeados para assumir os cargos destinados ao “quinto constitucional”, o provimento é originário (nomeação).

Parece irrefutável e a possibilidade de regulamentação do parágrafo 1º, do artigo 107, da Constituição Federal (que trata das remoções e permutas entre membros dos TRFs), tampouco justifica o esboço apresentado pelo CJF. É que o referido anteprojeto de lei de regulação da EC 73/2013 não reúne essa intenção, sequer implicitamente. Fala apenas em "remoções” precedentes para fins de materialização das composições iniciais dos novos TRFs. Ali não se trata de regulamentar o instituto da remoção em geral e das permutas, consoante resulta da orientação do dispositivo constitucional recitado, longe de ser ou ter sido trabalhado pelo STJ até hoje, titular da iniciativa para essa regulamentação específica (artigos 61, caput, e 96, inciso II, alínea “c”, da Constituição Federal), passadas mais de duas décadas da instalação dos primeiros TRFs.

O excerto jurisprudencial definitivo que aqui se vai reproduzir trata sobre antiguidade e também da inconstitucionalidade de aproveitamentos de juízes do segundo grau para cargos novos criados em tribunal distinto no âmbito da União. A dicção é do STF. Essa dicção vai sendo violada pela costura que o mencionado anteprojeto de lei, que diz estruturar os novos TRFs, intenta proceder, à revelia do texto e do espírito da EC 73/2013 e, portanto, da vontade do constituinte reformador. O dispositivo está situado ao tempo da criação dos novos Tribunais Regionais do Trabalho (TRT’s), na década de 1990, em que se decidiu, clarissimamente, sobre a antiguidade de juízes na formação das novas cortes, afastando-se critérios restritivos (ou de reserva de cargos) de ordem puramente legal (infraconstitucional), conforme se intenta, agora, inadvertidamente, empreender para o caso dos novos TRFs, insiste-se. A saber:

EMENTA: – Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Inconstitucionalidade parcial do inciso I, do art. 3º, da Lei nº 7.872, de 1989, e inciso I, do art. 3º, da Lei nº 7.873, além da parte final dos parágrafos únicos dos referidos artigos.

3. Cautelar deferida. 4. Previsão de elaboração de listas tríplices autônomas com Juízes Presidentes de Juntas de Conciliação e Julgamento de cada uma das áreas que integravam a Região desmembrada. Alegação de ofensa aos arts. 115, parágrafo único, I e 93, III, "b", da Constituição.

5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar no inciso I do art. 3º, das Leis nº 7.872, de 08.11.89, e 7.873, de 09.11.89, a inconstitucionalidade das expressões: "com o aproveitamento de 2 (dois) Juízes da 1ª Região da Justiça do Trabalho e 2 (dois) Juízes da área desmembrada, apurada a antiguidade em razão do efetivo exercício da judicatura na respectiva área, ainda que em períodos descontínuos", e, no parágrafo único, do mesmo art. 3º, das referidas Leis, das expressões: "só podendo integrar aquelas listas os Juízes do Trabalho Presidentes de Junta de Conciliação e Julgamento que tenham jurisdição nas respectivas áreas há, pelo menos, 2 (dois) anos da data da publicação desta Lei.

(ADIN 306-2, DJU 03/03/2000, Min. Néri da Silveira)

A norma jurisprudencial acima transcrita, e jamais refutada, ajudará a eliminar eventuais dúvidas técnicas, acaso ainda existentes, sobre a impossibilidade igualmente técnica de que se possam lançar mão de "remoções" de cargos pré-existentes para cargo nenhum, como sugere o anteprojeto multicitado, pelo qual se propõe, na prática, o estabelecimento de uma espécie de reserva insólita — e pouco democrática — de cargos judiciais a uma determinada clientela de magistrados (definidos por região, e não pela unidade federativa que encerra a organização judiciária federal comum). Pense-se, ademais, no artigo 37, da Constituição da República, no princípio da impessoalidade, da legalidade, enfim, e no próprio caráter federativo da Justiça Federal. Por ventura não se nos ocorre, com o esboço do mencionado anteprojeto de lei, tal como estabelecido, mesmo por enquanto, um certo viés fisiológico, de natureza regionalista, que é frontalmente contrário à dimensão nacional da própria Justiça Federal, além de revelar menosprezo à vontade do constituinte reformador no episódio da EC 73/2013? Adicionalmente, qual a legitimidade jurídica, política e social de membros de um órgão que, em tese e pela sua composição (artigo 2º, inciso III, da Lei 11.798/2008), podem se beneficiar com as soluções por eles mesmos encontradas em causa própria?

Por felicidade, nada disso pode prosperar oficialmente, pois, muito além das conveniências locais, de grupos ou de pessoas, nada obstante os muitos méritos com os quais possam contar, estão os princípios ativos de Direito encartados na Constituição Federal, que a todos os juízes federais, no contexto da sociedade e da instituição em que atuam, une, dá vida, profissional e corporativa, e sentido de unidade federativa como tem de ser!

Outrossim, nesse episódio, sem dúvida, está em xeque o Estado de Direito no Brasil!

O Conselho da Justiça Federal tem a fundamental responsabilidade de preservar essa unidade, e não de implodi-la de vez. Que o bom senso triunfe nas etapas seguintes do processo de iniciativa legal sob encargo do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça, antes de desaguar no Congresso Nacional para o processo legislativo próprio.

E que, para o bem do Brasil, seja cumprida, fielmente e sem rearranjos corporativos, a vontade do constituinte reformador (EC 73/2013).


[1] Acesso em: http://www.jornalggn.com.br/sites/default/files/documentos/anteprojeto_lei_trfs_0.pdf

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