Iluministas tardios

O impossível é possível; ingresso de drogas nos presídios

Autor

  • Orlando Faccini Neto

    é juiz de Direito do TJ-RS titular da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre ex-juiz auxiliar do STJ membro do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa e professor do mestrado no IDP-Brasília.

12 de julho de 2013, 15h05

O debate que se estabeleceu na ConJur, a partir de texto aqui publicado por Diógenes Vicente Hassan Ribeiro (clique aqui para ler) enseja relevante discussão. Tudo surgiu porque, num de seus instigantes textos (clique aqui para ler), Lenio Streck criticou decisão proferida pelo Tribunal de Justiça gaúcho, em que se afirmava ser crime impossível a tentativa de ingresso com substância entorpecente em ambiente carcerário, particularmente quando feita por familiares de presos.

Tive a honra de ser orientado por Lenio em meu mestrado em Direito e, na pluralidade de seus textos e na vastidão de assuntos de que se tem ocupado, talvez seja, atualmente, a sua reiterada insistência em asseverar que a atividade judicial há de atuar a partir de limites democráticos o que mais chama a atenção. E o texto do desembargador Diógenes é prova de que Lenio está certo.

Boas razões, emotivas que sejam, não conferem ao julgador a possibilidade de decidir um caso jurídico como quiser. E não é apenas porque, aberta que seja a porteira, não saberemos quais hão de ser as razões dos demais, mas, sobretudo, porquanto nunca há razões nobres para violar-se a democracia; exceto quando nos sentimos superiores a ela.

Discutamos, rapidamente, o papel dos juízes numa situação como essa. Podemos manipular o conceito de crime impossível para nele fazer ingressar tudo aquilo que se apresente na mente, boa ou má, do julgador? Ignorar praticamente toda a sólida doutrina sobre o crime impossível, que existe há muitos e muitos anos, e com discussões relevantes inclusive no direito comparado, não seria algo mais do que discricionário, para resvalar num quase exercício de arbítrio? O arbítrio se justifica se sustentado em supostas nobres razões?

Essas perguntas cobrariam uma investigação mais detida sobre o que se tem escrito a respeito das situações em que, efetivamente, dá-se a inviabilidade de consumação do crime. Isto para não dizer que não são poucos os autores que se mostram críticos à própria exclusão da punição em alguns modelos do designado crime impossível. Com efeito, e ficando apenas no exemplo alemão, apenas a partir de 1975 é que se passou a permitir, e ressalto tratar-se de permissão e não imposição, que o julgador prescinda da pena, ou a atenue, naqueles casos em que o autor do fato desconhece ser inviável a consumação, por conta de uma impossibilidade do objeto ou de uma ineficácia absoluta do meio — trata-se do artigo 23, n. 3, do Strafgesetzbuch.

Não é caso, contudo, de ocuparmo-nos com isso, e a razão está em que o inusitado da tese, consistente em afirmar a impossibilidade de consumação no caso debatido, leva o ônus argumentativo para quem assim o supõe. E isto se deve fazer no universo do Direito. Além disso, o ingresso de drogas em presídios é um problema com o qual todo juiz criminal se depara, seja em que comarca for e, portanto, há várias e várias decisões tratando deste tema. Muitos tribunais julgam recursos a esse respeito, e devemos ter claro que, para se aludir a uma posição, digamos assim, tão inovadora, seria conveniente que os desacertos daqueles que julgaram apelações em casos semelhantes fossem apontados. Noutras palavras: por quais razões a jurisprudência majoritária está errada nos casos similares? Como os demais tribunais do país decidem essa questão?

Suplantar uma discussão deste tipo, e combiná-la com referências ao excessivo trabalho dos juízes, que os impediriam de pensar melhor sobre os seus casos, revela, no limite, o surgimento de uma nova classe de magistrados, não aqueles que enfocam o Direito Penal ao modo do iluminismo — como, argutamente, vem referindo Lenio —, mas aqueles que se qualificam, deveras, como iluminados.

Uma das regras que se deve atender quando da manifestação de um discurso é a de que o falante deve fundamentar o que afirma. Esse é o ônus que lhe cabe e a sua argumentação não é livre de qualquer peia; há limites! E se nós cada vez mais acreditamos na possibilidade de alcançar, para os casos jurídicos, uma resposta que se afigura como correta , não chegaríamos a tanto aqui —  essa discussão, sob a influência de autores como Gadamer, Dworkin e Lenio Streck, já a fizemos em nosso livro Elementos de uma Teoria da Decisão Judicial: Hermenêutica, Constituição e respostas corretas em Direito, a que nos reportamos.

Bastaria, portanto, dizer, que o resultado de crime impossível, quanto ao fato de tentativa de ingresso com droga em presídio, é uma resposta errada!

E isto se poderia apontar pela simples razão de que nenhum autor que já tenha tratado de crime impossível postulou solução semelhante à mesma situação; pela razão de que nosso sistema constitucional delineia um rigor maior quando o crime tratado é o tráfico de drogas e, porque não dizer, pela razão de que o ingresso de entorpecentes é um dos fatores mais relevantes para a desestabilização de nosso já degradado sistema carcerário.

Há, ainda, outra regra no âmbito da teoria do discurso, por intermédio da qual se o falante aplicar um predicado a determinado objeto, deve aplicá-lo, também, a outros objetos semelhantes, o que no Direito poderia se expressar pela ideia de analogia. Pergunto: alguém que seja barrado na revista de um presídio com uma arma de fogo estará na situação de crime impossível? Se for este o caso, qual a razão? A de que, como o Estado deveria fiscalizar, e acaso essa fiscalização fosse decente, uma arma não entraria no cárcere? Não será o simples fato de sabermos que entorpecentes ingressam em grande quantidade em nossas cadeias a razão mais evidente para assinalar que este ingresso não é impossível?

Se esse fundamento tem alguma idoneidade, fica por responder o caso em que as autoridades sejam informadas de que uma remessa de droga entrará pelas fronteiras do país e, por isso, guardem bem as fronteiras, prendendo os traficantes. Crime impossível? Pois também é obrigação estatal cuidar das fronteiras. A mesma situação não se daria com a apreensão de drogas em aeroportos? Parece que estamos confundindo prisão em flagrante com crime impossível, e esquecendo, no mínimo, que durante o trajeto para a cadeia, seja com arma, seja com droga, já não se está mais no campo da licitude penal, porque o transporte de qualquer um destes objetos já se apresenta como crime.

Se o argumento, porém, é a inegável tristeza decorrente de vermos mulheres presas em número apavorante, por esses casos, ora, então todos os crimes cometidos em grande escala deveriam receber o mesmo tratamento, ou supormos que universalizando a tese de crime impossível estaríamos por melhorar a situação, quando, deveras, podemos nos deparar exatamente com o inverso. Ou será que essas pessoas não serão chamadas a levar mais e mais entorpecente para dentro dos presídios, embora, vejamos, se esteja a afirmar que é impossível mesmo fazer-se ingressar o entorpecente.

Seria, com efeito, essa afirmação, uma espécie de contradição performativa, a qual não deixa de ocorrer quando presos pedem para as suas mulheres levarem drogas para eles justamente quando isso é afirmado como impossível…ou o impossível aqui está errado? Um falante não pode usar a mesma expressão que outros falantes com significados diferentes. Crime impossível tem um significado, aliás, o que é impossível tem um significado, e, ou mostramos argumentativamente porque todos os outros estão errados, ou nos situamos fora do discurso, e, já aí, o que sobra é puramente o argumento de autoridade.

Não excluímos, e isso há de ficar claro, que situações pontuais revelem efetivamente uma espécie de pressão indevida, para que determinada pessoa faça ingressar no cárcere substâncias proscritas ou ilícitas. Isto, entretanto, possui nome e sobrenome, e já se antevê cuidar-se essa hipótese de uma espécie de coação. Aceitamos para alguns casos essa possibilidade, mas desde logo convém ressaltar: em nenhum sistema, e assim também o é no Brasil, a coação moral irresistível afasta a punição do coator. Isto significa que, se provada — e dizemos provada porque a coação aqui há de ter existido no mundo real, e não na cabeça do julgador —, ela haverá de ensejar a absolvição do coagido, com a consequente condenação do coator, vale dizer, daquele que empreendeu a coação.

Não se trata, portanto, de mera presunção, e que deriva de uma espécie de paternalismo penal, pelo qual os indivíduos que delinquem são tratados como pessoas sem capacidade de se definirem pelo cumprimento ou descumprimento das normas. Não se trata, em suma, de uma coação genérica, cuja aceitação implicaria não apenas no desconsiderar-se a imperatividade do Direito, mas também numa enorme fogueira, em cujas chamas arderiam os mais sérios tratados da dogmática penal.

Neste ponto, aliás, seria o caso de invocar Figueiredo Dias — em seu Direito Penal; Parte Geral. Tomo I: questões fundamentais; a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 603 —, quando deixa claro que a doutrina da inexigibilidade de outra conduta, em que se insere a coação moral irresistível, não está presa a uma valoração individual dos motivos pelo agente, justamente porque, se assim fosse, alguém dotado de uma fraca capacidade de resistência acabaria por ceder facilmente à pressão de um circunstancialismo exógeno, violando bens jurídicos, a cuja proteção, em última análise, destina-se, assim o cremos, o Direito Penal.

De tudo, portanto, remanesce o acerto do que suscitou Lenio Streck: cuidado com os iluministas tardios do Direito Penal. Eles deixaram de lado a doutrina, abdicaram da análise da jurisprudência e estão a dizer que é  impossível o que é possível — como se essas palavras estivessem desapegadas de qualquer carga de conteúdo, ficando à disposição do voluntarismo do intérprete. Parece impossível, mas aconteceu.

Autores

  • é doutorando em Direito, especialidade em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito pela Unisinos — Universidade do Vale do Rio dos Sinos e juiz de Direito no estado do Rio Grande do Sul.

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