Dificuldade de compreensão

PEC dos jatinhos e a infeficácia da capacidade contributiva

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11 de julho de 2013, 7h47

Há uma inexplicável incapacidade em se tornar eficaz o princípio da capacidade contributiva em nosso sistema tributário. Por vezes, precisamos de uma Emenda Constitucional para nos dizer o óbvio. Num claro exemplo dessa incoerência, estamos precisando de uma PEC pra nos dizer que jatinhos e iates também são veículos automotores, pra nos dizer que os donos de jatinhos e iates também devem pagar IPVA, assim como já o fazem os donos de automóveis, caminhões e motocicletas.

Pois bem. Foi encaminha ao Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição, elaborada pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, a PEC dos Jatinhos, propondo que o IPVA passe a incidir sobre a propriedade de aeronaves e embarcações[1].

Certamente, essa cobrança resultaria em alguns bilhões aos cofres dos estados. Nem é preciso muito esforço para compreender que é justo, adequado, legítimo e necessário que o IPVA incida sobre a propriedade de helicópteros, jatinhos, lanchas e iates, cujos donos, por óbvio, têm, em geral, muito maior capacidade econômica do que os proprietários de automóveis, caminhões e motocicletas.

Contudo, é preciso atentar para uma questão anterior à PEC. De início, devemos lembrar que o IPVA é um imposto incidente sobre a propriedade de veículos automotores. Ora, sem muita controvérsia, pode-se dizer que veículo automotor é todo equipamento que tem como finalidade transportar pessoas ou coisas e que se movimenta por meio de propulsão própria a motor. O conceito, evidentemente, abrange aeronaves e embarcações. Ademais, como o fato econômico alcançado por esse imposto é a propriedade de um bem, logo, a incidência sobre aeronaves e embarcações representaria uma exata adequação desse tributo ao princípio da capacidade contributiva. Nesse sentido, aliás, tem sido a interpretação do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal. Mas, infelizmente, nessa questão seu voto tem sido vencido, pois outro vem sendo o entendimento predominante no STF.

Alguns estados, como Rio de Janeiro, São Paulo e Amazonas, estabeleceram, em suas leis estaduais, a incidência de IPVA sobre aeronaves e embarcações, como, aliás, era de se esperar. A constitucionalidade dessas leis foi então discutida no STF, RE 134.509-AM [2] e RE 255.111-SP, julgados em 2002, nos quais prevaleceu o entendimento do ministro Sepúlveda Pertence, o que se manteve no RE 379.572-RJ [3], em 2006. Essa tese, de que o IPVA, nos termos da Constituição, só pode incidir sobre veículos automotores terrestres, sustenta-se, basicamente, em quatro argumentos. Todavia, os argumentos são, todos eles, equivocados. Vejamos cada um.

Começaremos pelo argumento de que o IPVA foi instituído em substituição à Taxa Rodoviária Única (TRU), que incidia apenas sobre veículos terrestres, e por isso, o novo tributo não poderia “elastecer o âmbito material de incidência pertinente ao tributo substituído”. Como se pode demonstrar, o argumento é falso, incoerente em suas premissas mais básicas.

De fato, o IPVA sucedeu à TRU. Porém, no argumento ignora-se uma distinção fundamental entre os dois tributos: a distinção entre taxa e imposto. Taxa é a espécie tributária que tem como fato gerador o exercício do poder de polícia ou um serviço público prestado ao contribuinte ou posto a sua disposição. A TRU, obviamente, era a contraprestação pelo uso potencial (serviço posto à disposição) de vias públicas terrestres. Daí, o fato gerador da TRU era justamente o licenciamento do veículo terrestre, pois a partir de então se configurava o uso potencial do serviço. Entretanto, o IPVA, sendo um imposto, é espécie tributária que não tem qualquer vinculação com uma contraprestação estatal. Sua incidência se concretiza numa situação econômica do contribuinte, ou seja, o mero fato de ser proprietário de um veículo automotor, sem qualquer relação com o uso de rodovias e independente de licenciamento do veículo. Portanto, o âmbito de incidência do IPVA nunca foi uma continuação daquele da TRU. Enfim, não se pode falar em manutenção do âmbito material de incidência do IPVA em relação à TRU, pois esses âmbitos são, de antemão, fundamentalmente distintos.

Outro argumento refere-se à previsão constitucional de destinação de metade da arrecadação do IPVA ao município onde estiver licenciado o veículo. Alega-se que isso só seria aplicável aos veículos terrestres, já que aeronaves e embarcações estão sujeitos apenas a registros em órgãos federais, os Comandos da Aeronáutica e da Marinha, respectivamente. Uma vez mais, o argumento é claramente equivocado.

Ora, a incidência do IPVA não está, de forma alguma, vinculada ao licenciamento do veículo. Como já dito, seu fato gerador se concretiza num mero fato econômico, a propriedade do bem. Existem hipóteses de incidência de IPVA sobre veículos que nem mesmo estão sujeitos a licenciamento. Há aqui também uma distinção elementar. É que o registro e o licenciamento consistem em exercício do poder de polícia. Não se deve, pois, confundir poder de polícia com tributação. Ademais, o município não é ente tributante em relação ao IPVA, e a localização do veículo não é elemento do fato gerador. Aliás, não é o município que licencia o veículo, mas sim o Detran, que é órgão estadual. Trata-se, tão somente, da necessidade de identificação do local de residência do proprietário do veículo, para fins de uma mais justa distribuição das receitas do imposto, entre estados e municípios.

Ademais, embora as aeronaves e embarcações sujeitem-se a registro em órgãos federais, essa repartição de receitas é perfeitamente aplicável, pois, obviamente, o proprietário de um avião ou de barco também possui residência, ou seja, é claro que ele mora em algum município, ao qual, consequentemente, seriam destinados os 50% das receitas de IPVA. Não há, pois, qualquer contradição entre a repartição das receitas do IPVA entre estados e municípios, e a possibilidade de incidência desse imposto sobre a propriedade de aeronaves e embarcações.

No argumento seguinte, alega-se que essa incidência não seria permitida porque os estados não tem competência para legislar sobre navegação aérea ou marítima. Esse é um argumento simplesmente absurdo.

Por óbvio, legislar sobre tributação de aeronave ou embarcação não significa legislar sobre direito aeronáutico ou marítimo. Como já dito, o fato gerador do IPVA é a propriedade de um bem, independente da atividade desenvolvida com o uso desse bem. Por exemplo: tributar a propriedade de um automóvel não significa legislar sobre trânsito; tributar a venda de uma embarcação não significa legislar sobre direito marítimo; tributar a propriedade de um imóvel onde funciona um banco não significa legislar sobre direito bancário; tributar a venda de produtos agrícolas não significa legislar sobre direito agrário; tributar a venda de uma antena não significa legislar sobre telecomunicações. Enfim, no direito tributário o que interessa é a relação entre ente tributante e contribuinte, no âmbito do fato gerador (venda, propriedade, produção, etc.), e legislar sobre essa relação não significa, nem de longe, legislar sobre as atividades econômicas subjacentes ao fato gerador do tributo.

Também não se deve confundir tributação da propriedade das aeronaves e embarcações com a cobrança de taxas pelos órgãos federais responsáveis pelo respectivo registro e fiscalização, pois essas taxas correspondem a algum serviço público ou exercício do poder de polícia relativo às atividades aéreas ou marítimas.

O último argumento a ser examinado, por certo, aparenta ser o mais forte. Sustenta-se, então, que o termo “veículo automotor” deve ser tomado em sua acepção técnica, que abrangeria exclusivamente veículo terrestre (viário). No entanto, esse argumento também é falso.

Pois bem, a alegada acepção técnica seria a definição constante do Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro (CTB): “todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas”. Daí, o termo “viário” corresponderia a “terrestre”, dando ao termo “veículo automotor” o sentido de “veículo automotor terrestre”. Por outro lado, a definição de aeronave seria tomada nos termos do artigo 106 do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA): “considera-se aeronave todo aparelho manobrável em vôo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas”. Há, todavia, graves equívocos no emprego dessas conceituações.

Decerto, é plenamente lógico que um conceito previsto no CTB utilize a expressão “transporte viário”. Essa é a definição cabível à legislação de trânsito. Aliás, o anexo I do CTB inicia-se com a expressão “para efeito deste Código adotam-se as seguintes definições”. É preciso entender uma questão anterior a essa conceituação. Há alguns veículos terrestres que mesmo não sendo automotores sujeitam-se à disciplina das leis de trânsito. O artigo 96 do CTB traz essa classificação (quanto a tração, podem ser: automotor, elétrico, de propulsão humana, de tração animal ou reboque). Portanto, o CTB utiliza o termo veículo automotor como um dos tipos de veículo terrestre. Por óbvio, o termo semanticamente mais adequado seria “veículo terrestre automotor”, já que, evidentemente, há veículos de propulsão a motor que não são terrestres, e isso não é possível negar. Contudo, essa especificação do termo foi omitida em razão desse conceito ser adotado tão somente para fins de aplicação das leis de trânsito, as quais, obviamente, alcançam apenas os veículos terrestres. Mas, para o direito tributário não há essa limitação. E por isso, a acepção do termo para fins de aplicação de normas tributárias não pode ser vinculada à acepção técnica da legislação de trânsito.

Quanto ao conceito de aeronave, nos termos do CBA, é óbvio que tal conceito jamais poderia coincidir com a definição de veículo aeromotor, pois nem toda aeronave é um veículo automotor. Existem aeronaves que não possuem motor. Daí, as aeronaves com propulsão a motor são uma das espécies (a mais comum, obviamente) do gênero aeronave. Portanto, o termo veículo automotor jamais poderia consistir em elemento do conceito de aeronave, pois o termo representa uma qualificação que não se aplica a todas as aeronaves.

Assim, constata-se nitidamente a inadequação do uso dos conceitos previstos nas legislações de trânsito (CTB) e aeronáutica (CBA), o que evidencia a invalidade do argumento.

É preciso compreender que estrutura semântica de um texto já é, desde sempre, condicionada por seu contexto. Decerto, é equivocada a afirmação de Roberto Ferraz, citado no voto do ministro Peluzo no RE 379.572-RJ, ao dizer que "nem sempre o significado semântico indica a melhor interpretação da norma". Ora, não podemos romper os limites semânticos de um texto. O contexto é parte dessa estrutura, mas ela não está à nossa disposição, não podemos modificá-la. O intérprete se movimenta sempre dentro desses limites.

Enfim, a questão nos dá uma amostra das dificuldades de compreensão da norma jurídica tributária em nosso país, especialmente no enfrentamento dos problemas de aplicação do princípio da capacidade contributiva, consagrado no texto constitucional (§ 1º, artigo 145) como princípio norteador do nosso sistema tributário.

Por certo, essa dificuldade da doutrina e da jurisprudência em aceitar a incidência do IPVA sobre “jatinhos e iates” nos revela o quanto estamos distantes de aplicar adequadamente o princípio constitucional da capacidade contributiva em nosso direito tributário.


1 Texto disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-jun-30/pec-jatinhos-donos-aeronaves-paguem-ipva >.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 134509 AM. Julgado em 26 de maio de 2002. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp >.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 379.572 RJ. Julgado em 20 de setembro de 2006. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp >.


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