Clamor social

Ouvir as ruas ajuda construir um sistema processual ágil

Autor

  • Luiz R. Wambier

    é advogado Doutor em Direito pela PUC/SP Mestre em Direito pela UEL Graduado em Direito pela UEPG professor no Programa de Mestrado da Universidade Paranaense.

7 de julho de 2013, 8h47

Uso como fonte de inspiração, retratada no título do artigo, expressão imortalizada por Chico Buarque em “Funeral de um lavrador”, para me arriscar em terreno movediço: o da parcela de responsabilidade daqueles que pensam e operam o Direito, no atual momento por que passa o Brasil.

A enxurrada de protestos que tem ocorrido por todos os quadrantes do país, nas últimas semanas, desafia uma série de reflexões quanto às suas causas sociais, econômicas e políticas.

Aturdidos, analistas políticos procuram desvendar sua motivação, que teve como estopim o aumento das tarifas de transporte coletivo urbano, em São Paulo. Os próprios políticos parecem fortemente acuados, sem entender exatamente as razões de tanta movimentação social. O isolamento a que se historicamente se impuseram talvez explique essa falta de compreensão quanto à causa das ruas.

Ao observador atento é possível entender que desde seu início muitas outras foram as motivações que levaram jovens de todas as idades a protestar nas ruas. Vimos isso na TV, nos jornais, na web, enfim, em todos os tipos de mídia a que temos acesso. Aliás, vimos e sentimos. E, no geral, exceção à depredação do patrimônio público e privado, obra de bandidos travestidos de manifestantes, concordamos.

Multifacetados, os protestos parecem ser uma catarse coletiva, um verdadeiro grito de “basta”, dirigido a uma série de erros, desmandos, omissões e abusos que se têm verificado ao longo dos últimos anos. Cartazes havia e há mostrando a insatisfação da população com a endêmica e lamentável corrupção que não escolhe níveis governamentais ou partidos políticos, e que solapa recursos públicos e os desvia de suas reais finalidades.

Os aparentemente excessivos gastos com a construção de estádios para que o Brasil possa sediar a Copa do Mundo; a também aparente subserviência do Governo Federal às imposições da Fifa; a visível e histórica falta de investimentos em obras de infraestrutura, nas últimas décadas; a lamentavelmente precária situação a que foi relegada a educação pública fundamental; as péssimas condições de atendimento nos serviços públicos de saúde e, de novo, a endêmica corrupção que a todos dá a sensação de que pagamos tributos para que poucos desses recursos se locupletem, mediante desvios, superfaturamento, financiamento de ongs “mandrakes”; a violência que não tem fim, nem combate; a completa inversão de valores, nesse último aspecto, que faz do bandido a vítima e da vítima o “malvado social” parecem constituir, em resumo, a lista de causas mais fortes dessa intensa e admirável movimentação social.

Mas, penso eu, há mais causas que se encontram ainda encobertas pela bruma, e que se podem encontrar, em linhas gerais, na falência quase absoluta do serviço público brasileiro.

Em 1970 éramos 90 milhões de brasileiros. Graças à teimosia de não colocar em prática programas de controle da natalidade, somos, hoje, perto de 200 milhões de pessoas.
De 1988 para cá tivemos o reconhecimento de uma série de direitos que estavam, até então, esquecidos, em estado latente. E esses dois modos de crescimento (que chamaria, grosso modo, de quantitativo e qualitativo, respectivamente), foram acompanhados de terrível descaso no campo da infraestrutura. O descompasso é gritante e pouco estudado, infelizmente.

Temos muito mais gente e gente muito mais reivindicante, porque conhecedora de sua magnífica trama de direitos (muitos dos quais estavam lá, como disse antes, em estado latente), mas não temos a estrutura de serviços públicos capaz de dar respostas eficazes à demanda social.

Não me arrisco a analisar os serviços de transporte público, de saúde pública, de educação pública, a precária infraestrutura rodoviária, portuária ou aeroportuária; nem os motivos que levam os serviços de segurança a serem frouxos; nem mesmo as possíveis razões que costumeiramente levam a ministra da Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos a não se pronunciar sobre a morte de inocentes, inclusive de crianças, em bárbaras ações criminosas. Isso tudo não é a minha praia, embora, como brasileiro, seja de minha conta. Mas proponho que reflitamos sobre nossa parcela de responsabilidade no que diz respeito ao serviço jurisdicional. Nossa contribuição, ao longo do tempo, tem sido para aprimorá-lo, diante das reais necessidades sociais? Nós as conhecemos, ao menos?

Contamos com estrutura física e humana que está muito aquém da que seria minimamente necessária para atender a demanda social por prestação de justiça. Pelas mazelas do sistema judiciário não culpo exclusivamente os tribunais, até porque em alguns estados da Federação muito se faz, com poucos recursos.

Penso que somos todos culpados, em alguma medida. O leitor, paciente, que me aguentou até aqui, poderia perguntar, de modo coloquial: “todos quem, cara-pálida?”
Todos nós que, de algum modo construímos e operamos o serviço jurisdicional, a começar por professores que, talvez por falta de formação adequada, falham ao ensinar a pensar defeituosamente.

Falha a assim chamada “Academia”, composta por doutrinadores, professores, juristas, enfim, que, no mais das vezes, encastelados em seus próprios egos, apegados às suas próprias ideias geniais, deixam de sentir (porque a vaidade atrofia a sensibilidade) as reais necessidades de um sistema em construção, num país com diferenças econômicas e sociais, que sequer conhecemos em profundidade; numa democracia que carece de recursos de todas as ordens, ou que os têm mal aplicados: num Estado de Direito ainda frágil, porque jovem e inexperiente.

Falham os legisladores e seus mentores ao, com frequência, editarem leis desconectadas da realidade brasileira, das aspirações de seu povo (afinal, nem os ouvem), fazendo prevalecer opiniões lastreadas em fundamentos ideológicos (às vezes, em puro rancor ideológico) que não têm qualquer conexão com o Brasil das ruas, com o Brasil real.
Falham, também, os autorizadores de despesas públicas, insensíveis, por vezes, às reais necessidades da prestação do serviço jurisdicional. Há tribunais monumentais e faltam fóruns decentes. Há estruturas físicas faraônicas e faltam juízes e auxiliares. Há, enfim, gasto de recursos desproporcional às necessidades, que sequer são conhecidas em sua real extensão. Ou, se são conhecidas, a isso não se dá a mínima atenção.

Quem tem alguma atuação de destaque nesse setor da vida nacional, deve se esforçar para responder a esse conjunto de queixas sociais, buscando maior eficiência e menos entraves, sejam eles derivados da burocracia ou da dificuldade que temos em aceitar que nem sempre nossa concepção do mundo é a mais correta ou adequada ao tempo presente.

Como cidadão, reafirmo minha fé na democracia, como único regime de governo capaz de dar forma ao Estado de Direito fundado por Constituição que garanta em plenitude os direitos fundamentais.

Como advogado e professor de Direito, tenho o dever de alertar, a mim mesmo e aos meus pares nessas duas áreas de atuação, para a falta de legitimidade popular de um sistema de prestação do serviço público jurisdicional que se perde em si mesmo e que está longe de atender àquilo que o povo quer e àquilo que a democracia exige. A burocracia em que nos enrolamos é a mãe da ineficiência que, somada a tantos outros fatores, que procurei elencar antes, deixa a sociedade cansada e descrente.

A soma de poucos faz o muito. Pensando nessa máxima é que me permito sugerir a todos quantos se dedicam a pensar o sistema, para que o façam com os ouvidos bem abertos, para ouvir sem medo, com clareza, com boa vontade, os gritos das ruas, portadores do clamor social.

Aos que hoje se dedicam à elaboração de leis processuais, peço que deixem de lado suas preferências teóricas, suas ligações históricas com este ou aquele sistema normativo, sua ideologia, seus ranços acadêmicos, e procurem ouvir as ruas, ainda que sua voz, no que nos diz respeito, esteja encoberta pelos outros gritos, e construir um sistema processual ágil, dinâmico, operativo, adequado ao povo a que servirá.

Talvez possamos, com algum esforço, dar nossa contribuição para que o país faça valer, também no plano da prestação jurisdicional, o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana.

Autores

  • é advogado, Doutor em Direito pela PUC/SP, Mestre em Direito pela UEL, Graduado em Direito pela UEPG, professor no Programa de Mestrado da Universidade Paranaense.

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