Observatório Constitucional

Restringir manifestações não é inconstitucional

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

6 de julho de 2013, 8h00

Spacca
“Diz-me que liberdade de reunião e de manifestação praticas no teu país e dir-te-ei que democracia alcançaste”. Com essa frase, António Francisco de Souza, um dos grandes estudiosos desse tema em Portugal, iniciou sua palestra na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em setembro de 2012, já ressaltando, de pronto, que, sem liberdade de reunião e de manifestação, não há democracia de fato[1].

Nas últimas semanas, diversos protestos eclodiram nas ruas brasileiras. O povo, basicamente mobilizado por meio de redes sociais, reuniu-se em várias cidades do Brasil para requerer melhorias na área de saúde, política, educação. Esse “acordar de um Gigante” foi largamente associado ao fortalecimento de nossa democracia, e a boa finalidade de tais marchas aparentemente justificou o bloqueio de grandes avenidas — com o consequente caos no trânsito — e outras perturbações da ordem pública.

O direito fundamental de liberdade de reunião vincula-se de forma direta à liberdade de expressão, mais precisamente à de manifestação. Nosso texto constitucional assegura a liberdade de manifestação de pensamento, vedando o anonimato (artigo 5º, inciso IV, da Constituição) e garante que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” (artigo 5º, inciso XVI, CF). Destes dois incisos é possível depreender que a liberdade de reunião e de manifestação não são direitos absolutos, mas possuem restrições impostas pelo constituinte, além das que resultam da colisão com outros direitos ou valores constitucionalmente protegidos.

É importante definir, em primeiro lugar, o objeto do direito fundamental à liberdade de reunião. Este pressupõe um agrupamento de pessoas, que possua um mínimo de coordenação (finalidade comum e consciente) e que seja passageiro, transitório — caso contrário, seria uma associação. Um mero ajuntamento ocasional ou fortuito, como a concentração de pessoas em torno de um acidente de trânsito ou o público de um concerto musical não se enquadram, em princípio, no conceito de reunião.

A liberdade de reunião também abrange as vertentes da liberdade de convocação (por exemplo, a criação de páginas com esse propósito no Facebook), de promoção, de participação em reuniões (liberdade positiva) e a liberdade de não manifestação (liberdade negativa)[2].

O caráter pacífico tem relação com o estado de tranquilidade ou a ausência de desordem. Não é qualquer perturbação, contudo, que permite a intervenção estatal para impedir a realização da reunião como um todo. Pequenas ocorrências podem ser consideradas aceitáveis e até mesmo “naturais” nos ajuntamentos de muitas pessoas[3]. Em manifestação ocorrida recentemente no Rio de Janeiro, a marcha pacífica de milhares de pessoas pela Avenida Rio Branco foi transmitida ao vivo pela televisão. Ao final, já um pouco separados do grande grupo, criminosos aproveitavam para realizar saques e destruir bens públicos. Apenas contra esse tipo de minoria é que deve haver intervenções pontuais, não apenas para garantir a segurança pública, mas também dos demais participantes da reunião.

No Brasil, o caráter de licitude da reunião é considerado seu requisito pela doutrina e pela jurisprudência, ainda que não mencionado expressamente no texto constitucional[4]. Do ponto de vista penal, é certo que vale o princípio de que ninguém pode executar, em uma reunião, algo que seja proibido fora dela[5]. As autoridades públicas, ao perceberem que uma reunião está sendo utilizada para fins ilegais, têm o dever e o direito de interrompê-la, afastando a ocorrência do ilícito. A reunião poderá, se possível, prosseguir regularmente após essa intervenção. Fernando Dias Menezes de Almeida ressalta que, em se tratando de atitudes ilícitas realizadas em uma reunião, não há de se falar em colisão de direitos, mas, sim, de tipificação de conduta delituosa[6].

A proibição de qualquer manifestação deve ser baseada em razões fundadas. Nesse aspecto, a doutrina italiana entende que não é suficiente a simples menção ao perigo de alteração da ordem pública ou possível agressão a bens protegidos[7]. Tal fundamentação, por ser complexa, faz com que seja difícil o estabelecimento de regras gerais sobre limites à liberdade de expressão. É necessário, por conseguinte, analisar-se o caso concreto.

Essa avaliação torna-se mais difícil quando inexiste regulamentação infraconstitucional com clara definição dos limites básicos da liberdade de reunião, como há, por exemplo, na Alemanha. Por aqui, o texto constitucional impõe duas restrições ao direito de reunião: que um encontro não frustre outro, anteriormente agendado para o mesmo local, e que a reunião seja previamente avisada à autoridade competente.

Do direito estrangeiro, válido mencionar a Lei sobre reuniões e manifestações da Alemanha (Versammlungsgesetz), de 1978, que regulamenta o artigo 8º da Lei Fundamental[8]. Seu parágrafo 1a dispõe que todos têm o direito de organizar e de participar de reuniões e de manifestações públicas, exceto partidos inconstitucionais, que tenham o objetivo de eliminar a ordem fundamental livre e democrática ou por em perigo a existência da República Federal da Alemanha, cabendo ao Tribunal Constitucional Federal apreciar tal questão. Também militares e prestadores de serviço civil ou militar, nos termos da legislação castrense, não possuem direito de reunião, de acordo com a Lei Fundamental (artigo 17a).

O texto legal alemão divide as reuniões entre as públicas realizadas em ambientes fechados e as públicas realizadas em ambientes abertos. Para estas, o organizador da manifestação deverá comunicar sua realização em até 48 horas antes do evento. As autoridades competentes poderão proibir a manifestação — ou especificar condições para sua realização — caso se verifique que a reunião poderá ser perigosa para a segurança pública. Há proibição expressa para manifestações realizadas em memoriais ou locais históricos e de especial significado às vítimas do holocausto. A lei ressalta que o Memorial do Holocausto, localizado em Berlim, inaugurado em 2007 e famoso por seus expressivos blocos de concreto, enquadra-se em tal proibição. Quando não cumpridos estes requisitos ou a manifestação destes se desviar, as autoridades podem interrompê-la.

Outro ponto bastante polêmico, por ser considerado uma forma de intimidação, é a filmagem de manifestantes pelos policiais. Sobre isso, a Lei sobre reuniões e manifestações especifica que a filmagem dos participantes somente é legal quando existam evidências reais que a justifiquem e que o manifestante represente risco significativo. A gravação deve ser apagada logo após o evento, exceto nas hipóteses em que prove a ocorrência de algum delito ou seja possível acreditar que algum participante poderá ser perigoso em manifestações futuras.

Em 2006, por meio da denominada Reforma Federativa, que alterou diversos dispositivos da Lei Fundamental, a competência para legislar sobre liberdade de reunião e de manifestação foi transferida da União aos Estados. O artigo 125a, inciso I, LF determinou que, para este caso, continua válida a lei federal, mas os estados podem substituí-la por leis locais. Com isso, alguns Länder já possuem leis próprias sobre o assunto, como a Bavária, que promulgou o Bayerisches Versammlungsgesetz em 2008.

Por aqui, não temos diploma legislativo federal completo e específico que regulamente o direito de reunião. O tema é tratado por poucos e esparsos dispositivos, como pela legislação eleitoral[9]. A primeira e única lei sobre liberdade de reunião no Brasil data de 1950 (Lei 1.207). Promulgada na vigência da Constituição de 1946, essa lei nunca foi revogada expressamente, mas muitos dos seus dispositivos certamente não são compatíveis com a atual ordem constitucional[10].

Para organização funcional do direito de reunião, diversos Estados possuem portarias que especificam qual órgão é competente para recebimento do aviso prévio. Disposições sobre este tema também são encontradas em leis municipais que dispõem sobre reuniões que possam afetar a circulação e qual órgão será competente para acompanhá-las[11].

O Decreto 20.098, de 1999, do Distrito Federal foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.969[12]. O decreto impugnado proibia a utilização de carros de som ou assemelhados em manifestações públicas realizadas na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios e na Praça do Buriti. A restrição foi considerada inconstitucional, já que a alegação de que o barulho atrapalharia a atividade laboral dos servidores que trabalham nesta região é “inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição”. No julgamento, chegou a ser ressaltado que situação outra seria a realização de manifestações com carro de som na frente de hospitais, e que a proibição, na forma apresentada no decreto, serviria para “emudecer” o povo.

Um direito que usualmente entra em conflito com a liberdade de reunião é a liberdade de locomoção. O bloqueio de grandes vias tornou-se comum nas últimas semanas. A Avenida Paulista, em São Paulo, que é uma das principais vias da cidade e abriga diversos hospitais e clínicas médicas por suas proximidades, é um claro exemplo disso. Presas no trânsito, pessoas que não conseguiram chegar ao trabalho, perderam voos e compromissos.

É de se considerar, finalmente, a elaboração de lei federal que defina limites essenciais à liberdade de reunião, como a necessidade de prévia indicação de qual percurso será feito, seu horário de realização, a proibição de interrupção total de vias públicas ou a autorização para que ocorra em determinados horários ou dias. O mero estabelecimento de regras procedimentais básicas ao exercício do direito de reunião não significa sua limitação, apenas garante que o evento se realize de forma segura não apenas aos seus participantes, mas a todos os cidadãos por ela diretamente afetados.

A liberdade de expressão, em suas variadas vertentes, é essencial para a manutenção do regime democrático. Especialmente quando demonstrada por meio de reuniões e de manifestações, auxilia o desenvolvimento da consciência dos cidadãos, que passam a ter acesso a novas informações, podem externar o que pensam, o que desejam para o país. As manifestações instigam o debate de temas polêmicos pela sociedade. Qualquer espécie de censura injustificada à liberdade de reunião deve ser reprimida, assim como qualquer abuso ou crime cometido por seus participantes. E é o bom senso, baseado nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que deve prevalecer na análise concreta de cada situação.


[1] Apresentação publicada na revista Direitos Fundamentais e Justiça, ano 6, nº 21, p. 27-38, out dez 2012.
[2] Conferir MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 428.
[3] SOUZA, António Francisco de. Liberdade de Reunião e de Manifestação no Estado de Direito. In: Direitos Fundamentais e Justiça, ano 6, nº 21, p. 27-38, out dez 2012P. 31 antonio
[4] BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.
[5] TORRES MURO, Ignacio. El derecho de reunion y manifestacion.Madrid: Servicio de publicaciones de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense,1991, p. 96.
[6] ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Liberdade de Reunião. São Paulo: Max Limond, 2001, p. 187.
[7] TORRES MURO, Ignacio. Op. cit., p. 136.
[8] Art. 8º, Lei Fundamental: (1)Todos os alemães têm o direito de se reunirem pacificamente e sem armas, sem notificação ou autorização prévia.(2) Para as reuniões ao ar livre, este direito pode ser restringido por lei ou em virtude de lei.”
[9] Por exemplo, art. 39, §1º, Lei n. 9.504, de 1997: “Art. 39. A realização de qualquer ato de propaganda partidária ou eleitoral, em recinto aberto ou fechado, não depende de licença da polícia. § 1º O candidato, partido ou coligação promotora do ato fará a devida comunicação à autoridade policial em, no mínimo, vinte e quatro horas antes de sua realização, a fim de que esta lhe garanta, segundo a prioridade do aviso, o direito contra quem tencione usar o local no mesmo dia e horário.”
[10] ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Op. cit., p. 107.
[11] ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Op. cit., p. 270.
[12] ADI 1969, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 28.6.2007.

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    é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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