Prática comum

Preço diferenciado para compra com cartão não é ilegal

Autor

  • Victor Sampaio Gondim

    é advogado da banca Carlos Henrique Cruz Advocacia em Fortaleza-CE. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

2 de julho de 2013, 7h43

Mesmo após mais de 20 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor, muitos aspectos do dia a dia das relações de consumo ainda despertam controvérsias e embates entre fornecedores e os órgãos de proteção. Dentre eles, destaca-se a possibilidade ou não de cobrança de preços diferenciados (com descontos ou sobretaxas) de acordo com a forma de pagamento, em especial o cartão de crédito.

Essa prática, comum no comércio tradicional, costuma se dar de forma contida, revelando-se apenas quando o próprio consumidor toma a iniciativa de, ao pagar através de instrumento mais vantajoso para o comerciante, solicitar desconto em relação ao preço tabelado. Com a popularização do comércio eletrônico, tornou-se possível vislumbrá-la manifestamente, já que muitas lojas preestabelecem abatimentos ou acréscimos conforme a opção de pagamento do consumidor.

Por vislumbrar prejuízo ao elo mais fraco da relação, os órgãos de proteção ao consumidor têm combatido veementemente este tipo de desconto, sendo comuns autuações do Ministério Público contra empresas que habitualmente oferecem preços diferenciados ao comprador que paga, por exemplo, em dinheiro. Inobstante seja este o entendimento que hoje prevalece, pretende-se aqui fazer uma análise crítica dos seus fundamentos, a fim de que se conclua se há ou não o alegado dano ao consumidor.

As autuações ministeriais têm como base direta normas infralegais, em especial a Portaria 118/94 do Ministério da Fazenda[1] e a Resolução 34/1989 do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça[2]:

PORTARIA 118/94 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA:

Artigo 1º Dispensar a obrigatoriedade da expressão de valores em cruzeiro real nas faturas, duplicatas e carnês emitidos por estabelecimentos industriais, comerciais e de prestação de serviços, representativos de suas vendas a prazo, inclusive para serem liquidados com prazo inferior a trinta dias, observado o seguinte: (…)

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se também às faturas emitidas por empresas administradoras de cartões de crédito, caso em que:

I – não poderá haver diferença de preços entre transações efetuadas com o uso do cartão de crédito e as que são em cheque ou dinheiro; e,

II – os comprovantes de venda são expressos em URV. (grifou-se)

RESOLUÇÃO 34/89 DO CNDC – MINISTÉRIO DA JUSTIÇA:

(…) RESOLVE: Considerar irregular todo acréscimo ao preço de mercadoria nas compras feitas com cartão de crédito (…).

É preciso salientar, em sentido diverso, que estes normativos foram exarados em período econômico conturbado, de inflação descontrolada, no qual houve sabido exagero na intervenção estatal sobre os preços praticados no comércio. Ademais, seu caráter vinculativo é bastante questionável, por consistirem em atos do Poder Executivo que não se prestam a criar vedações não previstas em lei. Para cumprir o requisito da legalidade (vide artigo 5º, II, da Constituição Federal), sua aplicação costuma ser acompanhada dos artigos 39, V e X, do Código de Defesa do Consumidor, que proíbem a exigência de vantagem manifestamente excessiva e a elevação sem justa causa de preços, respectivamente. Impende, pois, discutir se o preço diferenciado conforme a forma de pagamento infringe ou não a lei consumerista.

Sobre o tema, destaque-se julgado do Superior Tribunal de Justiça que ponderou os ônus e bônus da venda mediante cartão de crédito para os estabelecimentos comerciais, concluiu pela impossibilidade da prática de preços diferenciados conforme o meio de pagamento e servirá como base desta análise:

RECURSO ESPECIAL – AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO – COBRANÇA DE PREÇOS DIFERENCIADOS PRA VENDA DE COMBUSTÍVEL EM DINHEIRO, CHEQUE E CARTÃO DE CRÉDITO – PRÁTICA DE CONSUMO ABUSIVA – VERIFICAÇÃO – RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

I – Não se deve olvidar que o pagamento por meio de cartão de crédito garante ao estabelecimento comercial o efetivo adimplemento, já que, como visto, a administradora do cartão se responsabiliza integralmente pela compra do consumidor, assumindo o risco de crédito, bem como de eventual fraude;

II – O consumidor, ao efetuar o pagamento por meio de cartão de crédito (que só se dará a partir da autorização da emissora), exonera-se, de imediato, de qualquer obrigação ou vinculação perante o fornecedor, que deverá conferir àquele plena quitação. Está-se, portanto, diante de uma forma de pagamento à vista e, ainda, pro soluto" (que enseja a imediata extinção da obrigação);

III – O custo pela disponibilização de pagamento por meio do cartão de crédito é inerente à própria atividade econômica desenvolvida pelo empresário, destinada à obtenção de lucro, em nada referindo-se ao preço de venda do produto final. Imputar mais este custo ao consumidor equivaleria a atribuir a este a divisão de gastos advindos do próprio risco do negócio (de responsabilidade exclusiva do empresário), o que, além de refugir da razoabilidade, destoa dos ditames legais, em especial do sistema protecionista do consumidor;

IV – O consumidor, pela utilização do cartão de crédito, já paga à administradora e emissora do cartão de crédito taxa por este serviço (taxa de administração). Atribuir-lhe ainda o custo pela disponibilização de pagamento por meio de cartão de crédito, responsabilidade exclusiva do empresário, importa em onerá-lo duplamente (in bis idem) e, por isso, em prática de consumo que se revela abusiva;

V – Recurso Especial provido. (STJ — RESP 1.133.410 — 3ª Turma — Min. Rel. Massami Uyeda — Julgado em 16/03/2010)

O primeiro aspecto abordado pelos doutos ministros é o da garantia do adimplemento, pela administradora, presente nos pagamentos via cartão de crédito. Esta diferenciação, contudo, cabe apenas em relação ao cheque; o pagamento em dinheiro, por óbvio, também não enseja riscos neste sentido, pelo que referido argumento não se sustentaria.

Prossegue a 3ª Turma do STJ afirmando que o pagamento por cartão de crédito é à vista, como aquele realizado em pecúnia, por desobrigar imediatamente o consumidor. A relação subsistente seria a do estabelecimento com a administradora dos cartões, vínculo este que não poderia interferir prejudicialmente na obrigação consumerista.

Para contextualizar: o debate acerca deste tópico se sustenta em razão do prazo (de 30 dias, normalmente) estabelecido pelas operadoras de cartão de crédito para a devida quitação ao estabelecimento comercial, o que faz os lojistas tratarem, erroneamente, o cartão de crédito como uma forma de pagamento a prazo. Assim, estaria justificada a cobrança diferenciada de preços, segundo a ótica do fornecedor.

Embora se concorde com o fato de que o uso do cartão de crédito proporciona pagamento à vista, e não a prazo, o argumento não serve para deslegitimar a diferenciação. É que o meio de pagamento utilizado pelo consumidor implica em custos (em específico, a demora no recebimento da verba) diferentes para o lojista, mesmo que ambos sejam considerados pagamentos à vista. Discute-se, portanto, não o caráter do pagamento, mas sim o ônus de sua utilização para o estabelecimento. Com isso, deve-se reconhecer o erro na justificativa dos fornecedores, mas também que este erro não macula o mérito da questão.

Aborda-se em seguida o custo pela disponibilização do cartão de crédito como meio de pagamento, que seria inerente à atividade econômica e, por isso, não poderia ser repassado ao consumidor, outro argumento que não se sustenta. Neste aspecto, é preciso diferenciar eventual despesa do estabelecimento com a oferta deste meio de pagamento daquela decorrente da própria compra via cartão de crédito, com a cobrança de uma taxa sobre o valor da transação.

Para o primeiro caso, imagine-se que o lojista paga um valor mensal para a operadora, de forma a viabilizar em seu estabelecimento o uso de determinado cartão de crédito. Aqui, o benefício aos consumidores não é específico nem divisível, visto que não há como mensurar o quanto cada consumidor do estabelecimento terá de vantagem com isto. Neste cenário, o STJ estaria com a razão ao concluir que o custo do comerciante é inerente à atividade, sendo vedado dividi-lo com o consumidor.

Porém, para a segunda hipótese, é evidente que o custo com a taxa da operadora está intrinsecamente ligado ao fato de se estabelecer compra via cartão de crédito, pois ele não existiria caso o consumidor optasse pelo pagamento em dinheiro. É serviço específico (permissão de pagamento através de cartão) e divisível (o custo decorre de determinada compra), não havendo motivo para que não possa ser cobrado em separado.

Faça-se um paralelo com o serviço de estacionamento disponibilizado por muitas lojas. Caso haja segurança específica para o estacionamento, o salário dos funcionários responsáveis certamente comporá o custo do negócio, e não poderá ser repassado diretamente ao consumidor. Ele será um dos fatores a influir no preço das mercadorias, ainda que a parcela respectiva no preço de cada compra não possa ser medida em termos exatos. Contudo, caso o consumidor efetivamente faça uso do estacionamento, será possível estabelecer objetivamente um custo de utilização, pelo que nada impedirá a cobrança de uma taxa específica do serviço, até por não ser justo que todos, inclusive os que não possuem veículo, arquem indistintamente com as despesas do estacionamento. O mesmo raciocínio é válido para a denominada “taxa de serviço” (gorjeta), cobrada por muitos estabelecimentos e que não costuma ser questionada pelos órgãos de defesa do consumidor.

Continuando sob a ótica econômica, é oportuno citar nota técnica do Banco Central do Brasil publicada em 2010[3], na qual se conclui que as famílias de baixa renda (cujo instrumento primordial para pagamento é o dinheiro) financiam compras dos usuários de alta renda, principais portadores do cartão de crédito, no chamado subsídio cruzado. A proibição à cobrança diferenciada (no surcharge rule) consiste, portanto, em verdadeiro programa de transferência de renda das camadas populares para as mais nobres.

Estudo do Ministério da Fazenda[4], por sua vez, cita que a falta de diferenciação de preços: reduz a concorrência entre as administradoras de cartão (pois não há vantagem direta em cobrar taxas menores do lojista, já que este não tem como favorecer as operadoras cujas tarifas são mais baixas); e ainda evita que o próprio consumidor se porte como agente de pressão sobre o preço das tarifas, visto que os custos de cada meio de pagamento (e de cada operadora) não lhe são transparentes e, pior, lhe são indiferentes. Por conta disso, a opção do consumidor por um meio ou um cartão específico passa a ser feita considerando sempre fatores externos, que não o preço pago.

Também é explicitado neste estudo um importante fator político para que o Poder Executivo deseje a proibição da cobrança diferenciada (relembre-se que as restrições hoje vigentes são oriundas deste Poder): o uso do cartão de crédito é uma ferramenta das autoridades para a fiscalização tributária tanto do lojista, quanto do consumidor. Enquanto este torna possível o rastreamento dos seus gastos, aquele vê registradas as origens dos seus ganhos, de forma que é interessante para os órgãos governamentais que a população sinta-se estimulada a utilizar o cartão de crédito (e a manutenção dos preços independentemente do meio de pagamento utilizado é um belo motivo para tanto). Ainda no âmbito político, deve-se ter em consideração que as operadoras de cartão de crédito, em sua maioria empresas globais, possuem força suficiente para pressionar o Estado a manter situação que as beneficie.

Voltando ao acórdão exarado pelo STJ, tem-se como último argumento a tese de que o consumidor não poderia ser onerado duas vezes pelo uso do cartão de crédito, o que ocorreria caso lhe fosse cobrada a taxa de administração (independente do uso) e ainda uma taxa no preço (esta oriunda da utilização do cartão).

Quanto a isso, observa-se, data venia, que a Corte Superior contradiz-se com o que expõe no próprio acórdão em debate. No decorrer da decisão, faz-se diferenciação entre a relação estabelecida entre o lojista e o consumidor e o liame entre este e a administradora de cartões para concluir que um vínculo não poderia influenciar negativamente o outro. Contudo, proibir o estabelecimento de praticar preços diferenciados por considerar que o consumidor já foi onerado pela taxa de administração consiste exatamente numa mistura indevida entre estas duas relações distintas. Além disso, em muitos casos não há a cobrança de taxa de administração pela operadora, notadamente quando os gastos do usuário são elevados, o que só aumenta o problema do subsídio cruzado já relatado.

Da análise do tema sob aspectos legais, concorrenciais, econômicos e até políticos, vislumbra-se que, ao contrário do que foi compreendido pelo Superior Tribunal de Justiça, o consumidor e os comerciantes são os maiores prejudicados diante da “proibição” à precificação de acordo com o meio de pagamento utilizado, enquanto são beneficiados outros agentes, como o Estado e as operadoras de cartão de crédito. Posto isso, não há qualquer ilegalidade na prática, embora a sua regulamentação legal se faça necessária, haja vista a jurisprudência contrária e a insistência dos órgãos de proteção em — equivocadamente — combatê-la.


[1] Disponível em: http://sijut.fazenda.gov.br/netacgi/nph-brs?s1=P0000001181994031101$.CHAT.+E+MF.ORGA.+E+19940314.DDOU.&l=0&p=1&u=/netahtml/sijut/Pesquisa.htm&r=0&f=S&d=SIAT&SECT1=SIATW3

[2] Disponível em: http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={C018B222-9863-4A5D-9F94-04DF13384D89}&ServiceInstUID={7C3D5342-485C-4944-BA65-5EBCD81ADCD4}

[3] Disponível em: http://www.bcb.gov.br/htms/spb/Relatorio_Cartoes_Adendo_2010.pdf

[4] Disponível em: http://www.senado.gov.br/comissoes/cct/ap/AP20080527_MinisteriodaFazenda_CartoesdeCredito.pdf

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  • é advogado da banca Carlos Henrique Cruz Advocacia em Fortaleza-CE. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

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