Contra tudo

Gritos e sussurros agitam as ruas

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1 de julho de 2013, 7h00

Pertenço a uma geração forjada na onda de um sonho; o sonho de uma democracia possível. Fomos criados ao som triunfante da ditadura arruinada. Filhos dos planos econômicos, da inflação galopante e das sucessivas crises financeiras, somos também meio filhos, meio irmãos de uma Constituição que nasceu cidadã, mas logo se pôs de joelhos para a burocracia dos tempos do império, e dos ranços de autoritarismo ainda impregnados nas nossas instituições. Somos a geração do impeachment do Collor. E somos uma geração que parou naquele ano de 1992. Mas nem tudo é tão ruim. Somos também a geração do tetra e do penta. O alucinógeno para tantas dores sentidas.

Somos a geração que herdou a liberdade conquistada a fórceps pelos nossos pais, e de repente percebeu que ela não cabia na sala apinhada de quinquilharias eletrônicas. Junto com a vitrola, com a máquina de escrever e o rádio de pilha, enfiamos esta liberdade no fundo do armário, como uma relíquia vintage, um penduricalho qualquer, um adorno imponente.

Somos também a geração do massacre do Carandiru, dos sequestros, planejados e relâmpagos. Somos a geração do PCC e do 11 de setembro. Fomos a primeira geração de adolescentes da história a portar celular, e também os primeiros adolescentes da história a se corresponder por e-mail.

Algumas lembranças, como os ruídos de uma máquina de escrever, do telefone com som de campainha, do orelhão a ficha e da carta enviada pelo correio, ainda soam para nós como um filme nouvelle vague que começou a ser projetado por engano, mas logo foi interrompido, e no lugar dele apareceu um longa-metragem cheio de ação, barulho e muita violência.

É difícil perceber o que esta multidão pretende nas ruas frias da capital paulista e de outras cidades do país. Tantos são os temas envolvidos na revolta pacífica, que nenhum deles chega a caracterizar o lema ou o mote do movimento. Bem capaz até que, embora empunhando a mesma bandeira, os manifestantes estejam a antagonizar-se mutuamente em pontos específicos, numa babel moderna, onde todos gritam, mas ninguém se entende. Por enquanto sabem o que os une; pior será quando se aperceberem das diferenças que os separam. São tantos os temas, que não pode haver concordância em todos eles. Alguém disse que há esquerdas e direitas nas ruas. Quem se arvora defini-los assim ou assado diante de tão complexa plêiade de insatisfações?

Eles protestam contra tudo. Contra a onda de assaltos violentos na cidade, mas também contra a violência da Polícia Militar, e contra prisões ilegais na periferia. Contra uma justiça morosa, que ora permite a impunidade de alguns, mas ora prende por anos a fio para depois declarar a inocência. Contra a PEC 37, mas também contra órgãos do Judiciário que falam outra língua, distantes do cidadão, e cada vez menos sensíveis aos dramas individuais. É contra um Estado letárgico e corrupto, mas ao mesmo tempo inflexível e implacável aplicador da lei, quando se trata de arruinar famílias inteiras com a cobrança de tributos escorchantes.

Somos um país governado por um poder que arruma jeito para tudo, até estádio de primeiro mundo em tempo recorde, mas é incapaz de resolver os mais básicos problemas individuais do cidadão: o transplante de rim do pai do João, a cirurgia cardíaca da tia do Pedro, o alvará do bar do Zé, o parcelamento da dívida fiscal do Seu Mané, a prisão injusta do irmão do Severino… A dificuldade de perceber um discurso único nas passeatas não é por acaso. Nossa miséria é a somatória dos invisíveis sofrimentos individuais de cada um.

Algo nos diz que a revolta não é só contra o Estado. Parece ser um pouco também contra a cultura do automóvel e o consumismo vulgar, contra a publicidade opressiva e as forças invisíveis de um capitalismo brutalizado. São as intermináveis conversas com a empresa de telefonia móvel. Ou a intransigência do plano de saúde que se recusa a cumprir o contrato. O sentimento de ser bem tratado somente na hora de pagar e esquecido na hora de receber. Afora aquelas dívidas que o cidadão paga, mas nunca diminuem; aqueles contratos feitos para consumidor nenhum entender. Agora, para coroar, a inflação.

A sensação é de que vivemos num mundo onde é preciso estar o tempo inteiro à espreita, e sob o menor sinal de desatenção, lá vêm eles, a moça da telefonia vendendo um plano “mais vantajoso”, o rapaz do banco oferecendo um produto “muito interessante para a segurança da família”…. E junto deles vem sempre o seu maior aliado, o medo incutido na veia do cidadão. Não bastasse o medo natural que os problemas no cotidiano já nos provocam, este sentimento ainda é anabolizado pelos oportunistas de plantão. É o apresentador de televisão vendendo pânico a preços populares, com sua melada voz sepulcral em pleno horário nobre.

Nosso Estado tem problemas graves, mas pior do que isto, nossa sociedade está doente, está acometida por aquilo que Jung chamava de epidemia psíquica. Não sabemos aonde as passeatas vão nos levar, se o movimento das ruas é sinal de mudança, ou apenas mais um grito sem resposta da massa descontente. Sabemos, porém, que a sociedade está dando um pequeno passo no sentido de enfrentar questões que estavam escondidas no nosso mais remoto inconsciente coletivo, e daí quem sabe um dia sejamos capazes de curar nossas piores patologias sociais.

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