Direito Comparado

Aos poucos, Brasil se abre para o Direito africano

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

30 de janeiro de 2013, 16h16

As notícias sobre a intervenção francesa no Mali, o estado permanente de crise institucional no Egito, a rebelião na Líbia, os escândalos políticos na África do Sul parecem unir-se a um histórico de referências negativas sobre o grande continente africano. Sem que se possa esquecer dos massacres em Ruanda ou dos regimes despóticos do ugandense Idi Amin Dada e do ex-imperador centro-africano Jean-Bédel Bokassa. Essa é uma perspectiva muito pouco encorajadora, especialmente para os que se voltam para a África com o objetivo de realizar pesquisas de Direito Comparado. A despeito desses inegáveis problemas, e não é este o espaço para inventariá-los, essa visão é reducionista e um tanto preconceituosa. Da mesma maneira como o Brasil é divulgado na América do Norte e na Europa sob a luz de estereótipos mais do que vulgares, muitos no Brasil se deixam influenciar por equívocos semelhantes em relação aos africanos.

É inegável que a postura diplomática brasileira em relação à África modificou-se consideravelmente. Um dos importantes marcos desse processo foi a mudança de orientação na política externa ocorrida nos anos 1970, cuja síntese foi o chamado “pragmatismo responsável”, em favor dos movimentos de libertação colonial africanos, mormente nas possessões portuguesas. O mérito desse câmbio radical na diplomacia é de um grupo de integrantes de nosso Ministério das Relações Exteriores, podendo-se citar o embaixador e ex-chanceler (no governo do general Ernesto Geisel) Antonio Francisco Azeredo da Silveira, o Silveirinha. Na administração do presidente Luís Inácio Lula da Silva, o Brasil voltou-se para a África de modo absolutamente notável. O continente tornou-se prioridade nos negócios estrangeiros do país, com o aumento de embaixadas, acordos de cooperação, visitas presidenciais e de transferência de tecnologia.

No Direito, porém, a “descoberta” africana ainda está por se fazer. Nesse aspecto, Portugal tem sido mais ágil, até por razões históricas, com a presença de muitos de seus melhores professores de Direito em cursos e intercâmbios universitários em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Exemplos dessa atuação encontram-se na Universidade de Lisboa, com os catedráticos da Faculdade de Direito Jorge Miranda (Direito Constitucional) e Dário Moura Vicente (Direito Comparado), que se têm dedicado a essa modalidade de cooperação acadêmica com a África.[1]

A presença de juristas brasileiros em África é ainda pouco significativa. Nos últimos anos, isso tem mudado. A Ordem dos Advogados do Brasil promove eventos conjuntos com suas homólogas ou com universidades da África de língua portuguesa. São também dignos de nota os projetos de cooperação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Agostinho Neto, em Angola, coordenados pelos professores Roberto Kant de Lima (UFF) e José Otávio Van-Dúmem (Angola), com a participação dos docentes da Faculdade de Direito de Niterói Alexandre Veronese e Roberto Fragale Filho. A Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP), por intermédio da professora Flavia Trentini, um dos grandes nomes do Direito Agrário contemporâneo, iniciou uma parceria de grande relevância em Moçambique, voltada para o estudo jurídico dos biocombustíveis.[2]

Muito bem. A ampliação desses intercâmbios é algo de extrema relevância e espera-se que isso ocorra cada vez mais. Mas, por que estudar o Direito produzido em África?

Essa pergunta encobre duas questões, de algum interesse para os meios jurídicos brasileiros. A primeira está em que, infelizmente, em certos países capitalistas centrais, há um interesse por assuntos “típicos” do Direito nacional, ao exemplo da situação dos indígenas, dos problemas ambientais ou da reforma agrária. É óbvio que são temas de grande importância, mas muitos estudiosos desses países não consideram relevante a produção intelectual brasileira em áreas que não as mencionadas. O porquê disso está na visão preconceituosa sobre nossa capacidade de “sentar à mesa” nos grandes debates teóricos do Direito contemporâneo. Quando muito é admissível citar ou referir algum autor nacional que seja o representante do pensamento desenvolvido alhures ou em escritos de caráter histórico sobre a influência dos grandes sistemas jurídicos sobre nosso próprio ordenamento.

A segunda questão encoberta é a necessidade artificial de se estudar o Direito brasileiro sob o influxo de uma atitude politicamente correta de dar espaço ao que se produz em uma nação capitalista periférica (hoje mais não tanto), a despeito de seu real valor ou de sua efetiva contribuição para o desenvolvimento da Ciência Jurídica. Essa postura “colonial” também encontra reflexo no Brasil, que pouco valoriza seus juristas e filósofos e segue com interesse certas correntes teóricas estrangeiras como se fossem desfiles de moda em Paris.

O estudo do Direito dos países africanos não se deve pautar por essas duas questões, que também se revelam aplicáveis à realidade brasileira. Em suma, os africanos não precisam de paternalismo, muito menos do interesse alheio por seu Direito sob a óptica do exotismo cultural.

Volte-se à pergunta: o que pode interessar aos que se dedicam ao exame do Direito dos países africanos?

Há diversos temas e muitos juristas de enorme relevância. Vejam-se alguns exemplos.

A Constituição da África do Sul, que já foi objeto de referências em colunas anteriores (clique aqui e aqui para ler), é um documento jurídico importantíssimo, com um excelente e bem estruturado catálogo de direitos fundamentais. É um exemplo de texto constitucional pluralista, mas que não recai no extremismo e no ódio, tão esperáveis após anos de opressão racial. Essa Constituição possui norma expressa sobre a eficácia dos direitos fundamentais em relação aos particulares, diferentemente da brasileira. Um estudo comparativo sobre esse tema revelaria o erro que vem sendo perpetuado há tempos na doutrina nacional sobre a chamada eficácia imediata dos direitos fundamentais e seu suporte constitucional explícito.

A África do Sul, aproveitando-se da experiência alemã do pós-guerra (julgamentos de Nuremberg) e da reunificação (os crimes cometidos na Alemanha Oriental contra os dissidentes políticos e os fugitivos do Muro de Berlim), desenvolveu as “Comissões da Verdade e da Reconciliação”, com assento na Constituição provisória de 1993. O modelo sul-africano é fonte de inspiração para o Brasil e muitas soluções de “transição” daquele país podem servir de modelo para os estudos jurídicos aqui desenvolvidos. O Tribunal Constitucional sul-africano é outra fonte riquíssima para pesquisas sobre temas comuns à realidade brasileira. Atualmente, há um forte debate político iniciado pelo Poder Executivo e pelo partido governista, o Congresso Nacional Africano, para restringir os poderes dessa Corte, por considerarem-na excessivamente ativista.

A Carta Africana de Direitos do Homem e dos Povos (CADHP) é outro documento jurídico que mereceria atenções especiais dos juristas brasileiros.[3] Em vigor desde 1986, com aprovação na Conferência de Nairóbi de 1981, a Carta Africana, em seu preâmbulo, afirma que “os direitos civis e políticos são indissociáveis dos direitos econômicos, sociais e culturais, tanto na sua concepção como na sua universalidade, e que a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais garante o gozo dos direitos civis e políticos”. Essa é uma das características diferenciadas e inovadoras de seu texto, que se revela apto a outro tipo de abordagem: as assimetrias entre o meio político-social onde a norma tem de incidir e seu conteúdo jurídico. A violação aos direitos humanos é algo que ainda se verifica em níveis extraordinários em alguns territórios africanos. Ruanda é uma lembrança perturbadora e, mais recentemente, os dramáticos acontecimentos no Egito e na Líbia, na chamada “Primavera Árabe”, parecem confirmar a persistência dessas práticas. Esse descompasso entre a norma e a realidade é também muito vulgar no Brasil e a comparação entre as duas experiências jurídicas seria mais do que conveniente.

A propósito da verticalização dos estudos sobre a CADHP, lançou-se em Portugal, no ano de 2011, uma obra coletiva intitulada Os direitos humanos em África: Estudos sobre o sistema africano de protecção dos direitos humanos, da Coimbra Editora, sob a coordenação do professor José Melo Alexandrino, da Universidade de Lisboa. Para além da enorme qualidade desse livro, que trata de diversos aspectos da Carta Africana e dos direitos humanos, há o fato de que a maioria dos autores é formada por brasileiros, o que deu ensanchas a que se realizasse um rico estudo comparativo luso-afro-brasileiro.[4]

O “convite” ao aprofundamento dos estudos do Direito de África no Brasil não se limita ao exame de textos e documentos normativos. Há também doutrinadores de altíssimo nível que desenvolvem seus ofícios no continente africano ou em universidades europeias. Dadas as dimensões deste espaço, citam-se (de entre vários) apenas dois autores que merecem ser mais (re)conhecidos no país.

O primeiro deles é Emílio Kafft Kosta, professor da Faculdade de Direito de Bissau e juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça da Guiné-Bissau. Tive a oportunidade de conhecê-lo durante meu pós-doutorado em Lisboa e de ler alguns de seus escritos. Um deles é sua portentosa tese de doutoramento intitulada Estado de Direito — O paradigma zero — Entre lipoaspiração e dispensabilidade, com estampa pela Almedina, em 2007. Texto de grande densidade teórica, fruto de suas pesquisas em Portugal e Alemanha, é uma polêmica análise das possibilidades de transposição para o solo africano (mais precisamente, a Guiné-Bissau) do modelo clássico de Estado de Direito. Muitas de suas conclusões são polêmicas, mas o livro é um tratado sobre a realidade constitucional africana em permanente diálogo com o que se mais profundo se produziu em Teoria do Estado na década passada.

Alioune Badara Fall é outro grande jurista da atualidade, que se dedica aos estudos africanos. Nascido no Senegal, onde conserva fortes vínculos políticos e jurídicos, ele atualmente é professor (com agregação) na Université Montesquieu — Bordeaux IV, na República Francesa. Ele é diretor do Centro de Estudos e de Pesquisas sobre os Direitos Africanos e o Desenvolvimento Institucional dos Países em Desenvolvimento (Centre d’Études et de Recherches sur les Droits Africains et sur le Développement Institutionnel des pays en développement — Cerdradi), que também recebe estudantes de pós-graduação (em todos os seus níveis) e pesquisadores interessados no Direito dos povos africanos e de países em desenvolvimento. Alioune Badara Fall tem sua orientação alguns mestrandos e doutorandos brasileiros, embora a maior parte dos vínculos institucionais do Cerdradi ainda seja com universidades francófonas.

As investigações de Alioune Badara Fall voltam-se para temas conexos aos debates em Direito Público no Brasil. Em 2003, ele publicou na Revue d’étude et de recherche sur le droit et l’administration dans les pays d’Afrique, por ele dirigida, um artigo no qual avalia o papel do juiz nos sistemas políticos africanos.[5] Nesse texto, ele critica a posição ainda secundária do Poder Judiciário em muitos textos constitucionais africanos, o que se dá em detrimento de sua função única de protetor natural dos direitos individuais em face dos poderes públicos, independentemente da estrutura da organização do sistema judicial.[6] Em outra passagem, ele profere ácidas críticas ao modo como a jurisprudência tem-se valido da noção de “ordem pública”, um exemplo de má transposição de um conceito jurídico para o Direito africano, para lhe santificar e reconhecer um âmbito muito mais amplo do que o existente no sistema jurídico francês.[7]

Os espaços para o diálogo e o (re)conhecimento do Direito produzido nos Estados africanos ainda são muito dilatados e carecem de pesquisadores. O momento atual é assaz propício para essas iniciativas.


[1] Em África, Dário Moura Vicente foi professor visitante das Universidades Agostinho Neto (Luanda), e Eduardo Mondlane (Maputo), além da Faculdade de Direito de Bissau e do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais de Cabo Verde (Praia). Jorge Miranda é conferencista e partícipe de comitês científicos em Marrocos, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola e na Guiné-Bissau.

[2] Evidentemente, há outras importantes iniciativas, todas dignas de referências. As citadas nesta coluna são meramente exemplificativas.

[3] Há alguns estudos brasileiros sobre a Carta Africana, que a analisam de modo direto ou como capítulos de textos gerais sobre direitos humanos:             TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A evolução dos sistemas regionais : o sistema africano de proteção dos direitos humanos. In.        Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porte Alegre : S.A. Fabris, 1997-2003. v. 3, p. 193-233; COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo : Saraiva, 1999; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional : um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo : Saraiva, 2006; KOSTA, Kafft. A carta africana dos direitos do homem e dos povos no tempo: notas sincopadas para a arguição de uma dissertação de mestrado na faculdade de direito de Lisboa. PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (Coords). Direito Constitucional e Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012.   

[4] Além do coordenador José Melo Alexandrino, são autores do livro “Os direitos humanos em África” os alunos do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa: Arthur Maximus Monteiro, Kellyne Laís Laburú Alencar de Almeida, Luciana Figueiredo Maia, Luiz Antônio Freitas de Almeida e Maurício Mazur.

[5] FALL, Alioune Badara. Le juge, le justiciable et les pouvoirs publics : pour une appréciation concrète de la place du juge dans les systèmes politiques en Afrique. Revue d’étude et de recherche sur le droit et l’administration dans les pays d’Afrique. Disponível em: http://afrilex.u-bordeaux4.fr/le-juge-le-justiciable-et-les.html. Acesso em 29-1-2013.

[6]L’autorité judiciaire est ainsi considérée comme le protecteur naturel des libertés individuelles face aux pouvoirs publics, et cela indépendamment de l’organisation du système juridictionnel selon qu’il s’agisse d’une unité de juridictions (avec uniquement des tribunaux judiciaires) ou d’une dualité de juridictions (avec des tribunaux judiciaires et administratifs)”.

[7]On le voit, cette tendance jurisprudentielle tend à sacraliser la notion d’ordre public en lui donnant une portée beaucoup plus large que celle qu’on lui reconnaît habituellement dans le système juridique français d’où elle est issue” .

Autores

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    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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