Panorama fático

Ficha Limpa não fere princípios da razoabilidade

Autores

  • Rogerio Favreto

    é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ex-procurador-geral do município de Porto Alegre e secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.

  • Luiz Manoel Gomes Junior

    é advogado doutor e mestre em Direito pela PUC-SP professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG) de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar-PR) dos cursos de pós-graduação da PUC-SP e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso (FESMP-MT).

24 de janeiro de 2013, 15h41

Conforme já destacamos em nossos Comentários à Lei de Improbidade Administrativa, foi realmente surpreendente a aprovação da Lei Complementar 135/2010, que altera a redação da Lei Complementar 64/90 que disciplina as hipóteses de elegibilidade eleitoral. Referidas modificações, como decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral: a) seriam aplicáveis de forma imediata, inclusive para as eleições de 2010[1] e; b) produziriam seus efeitos mesmo em relação às condenações proferidas antes da sua publicação.[2]

Nossa posição era no sentido de que as restrições originárias das modificações da Lei Complementar 64/90, introduzidas pela Lei Complementar 135/2010, incidiriam nas eleições de 2010, inclusive com referência as condenações anteriores segundo o magistério jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral. Ocorre que referido entendimento acabou sendo vencido no Supremo Tribunal Federal[3] que, por maioria, adotou a posição que haveria vedação pelo artigo 16 da Constituição Federal para que as modificações originárias da Lei da Ficha Limpa pudessem incidir de forma imediata.

Posteriormente, a Lei da Ficha Limpa passou a ser objeto de mais três ações no STF (Ações Declaratórias de Constitucionalidade 29 e 30, ajuizadas pelo PPS e Conselho Federal da OAB,[4] respectivamente, e ADI 4.578, ajuizada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais). O pedido na ADC 30 era o mais amplo: declaração da constitucionalidade de toda a Lei da Ficha Limpa, atingindo atos e condenações passados e futuros, tudo na proteção dos valores da legalidade e da probidade administrativa.

Na linha defendida na ADC 30, a Lei da Ficha Limpa realmente não fere os princípios da razoabilidade (ou proporcionalidade), tampouco sua aplicação a atos/fatos passados ofende os incisos XXXVI[5] e XL[6]do artigo 5º da Constituição Federal, notadamente ao estabelecer novas hipóteses de inelegibilidade, daí a constitucionalidade das alíneas c, d, e, f, g, h, j, k, l, m, n, o, p e q, todos do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/90, com a redação dada pela Lei Complementar 135/2010.

Na verdade, há uma busca pela ética na política, pela transparência e a melhoria da representação do poder popular em todos os níveis de governo, com a incidência das novas regras mesmo diante de atos/fatos ocorridos antes da sua vigência, na forma do parágrafo 9º do artigo 14 da Carta da República, sem que se possa falar em ofensa aos incisos XXXVI e XL do artigo 5º da CF/88.

O que se tem é que a Constituição que determina que possa a lei complementar, ao estabelecer causas de inelegibilidade, que observe a vida pregressa do candidato, o seu passado e, à luz desse mandamento, as novas hipóteses de inelegibilidade criadas pela Lei Complementar 135/2010 devem considerar o passado do cidadão.

Deste modo, os efeitos da Lei Ficha Limpa, seguindo a orientação do STF: a) incide de forma imediata e; b) atinge atos e/ou condenações praticados antes e depois da vigência do referido texto normativo.

Vários são os requisitos para a incidência da restrição legal. O primeiro é que na aplicação das penas tenha sido imposta a suspensão dos direitos políticos,[7] já que se trata de uma exigência expressa. Se esta espécie de condenação não foi imposta não há a incidência da Lei Ficha Limpa. Além disso, a decisão deve estar acobertada pela coisa julgada (art. 20, da Lei de Improbidade) ou pelos menos ter sido proferida por órgão colegiado (tribunal, por maioria ou por unanimidade), o que não causa maiores problemas na interpretação.

Como não há possibilidade de ser imposta a suspensão de direitos políticos em Ação Popular, eventuais condenações proferidas nesse tipo de demanda também não atende aos requisitos exigidos pela Lei da Ficha Limpa.[8] Em outros termos: condenação em ação popular não torna admissível a imposição das restrições originárias da Lei da Ficha Limpa, especialmente pela impossibilidade de imposição da pena de suspensão de direitos políticos.

A celeuma está no trecho da lei que exige que o ato questionado judicialmente seja doloso e que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito. A primeira conclusão é a de que atos culposos não autorizam a imposição da restrição legal (inelegibilidade), mesmo na hipótese do artigo 10, da Lei de Improbidade, que admite a condenação na modalidade culposa, aliás como decidido em sede liminar pelo Superior Tribunal de Justiça.[9]

Mas o maior problema é na exigência da lei que tenha ocorrido lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito. Contudo, na Lei de Improbidade Administrativa os dois tipos são regulados em regras diversas, quais sejam, os artigos 9º (enriquecimento ilícito) e 10º (lesão ao erário). Como regra geral, um mesmo ato não estará enquadrado nos dois artigos, sob pena de bis in idem, pois se houver enriquecimento ilícito, já incidirá as sanções correspondentes ao artigo 9.º e, se negativa a resposta, poderá haver o enquadramento nas hipóteses do artigo 10, com as respectivas penas. [10]

Como as duas hipóteses são realmente graves, especialmente quando somadas à necessidade do dolo, a exegese mais razoável é a de que o legislador quis utilizar o “ou” e não o “e” sob pena de restringir de forma desproporcional a incidência da restrição legal.

A posição ora defendida justifica-se ainda mais quando se verifica que as hipóteses do artigo 11, da Lei de Improbidade Administrativa — violação aos princípios da administração pública — não estão submetidos ao regramento da Lei da Ficha Limpa por ausência de previsão legal. Aqui houve manifesta falha do legislador, pois atos de elevada gravidade ficarão fora dos efeitos da Lei da Ficha Limpa.

Assim, havendo ato de improbidade administrativa doloso que importe enriquecimento ilícito[11] ou lesão ao erário, incide a inelegibilidade, mas somente se houver condenação à suspensão dos direitos políticos.

Apesar do precedente mencionado, temos como indispensáveis os seguintes requisitos para a incidência da Lei da Ficha Limpa: a) condenação pela prática de ato doloso de improbidade administrativa; b) que haja enriquecimento ilícito, que não precisa ser necessariamente do agente ou lesão ao patrimônio público, sem necessidade de cumulação e; c) que tenha sido imposta a pena de suspensão de direitos políticos ao interessado.

Outra questão complexa é se a Justiça Eleitoral pode alterar a definição (limites e fundamentação) dada quando da condenação por ato de improbidade administrativa. Explicamos: entende a Justiça Estadual, por decisão colegiada, que o ato praticado é caracterizador de improbidade administrativa, mas não reconhece o enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, mas unicamente a violação aos princípios da administração (art. 11, da Lei de Improbidade Administrativa).

Pode a Justiça Eleitoral, por exemplo, alterar a qualificação jurídica do ato, entendendo que, no caso, houve enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário?

Esta situação tem-se apresentado com frequência na apreciação de ações do último pleito eleitoral, como ocorreu em precedente do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo[12]. A condenação originária foi pela violação ao artigo 11, da Lei de Improbidade, mas o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo deu nova definição dos fatos, entendendo presente o enriquecimento ilícito e o prejuízo ao erário.

Pensamos que não é possível à Justiça Eleitoral alterar a qualificação dos fatos já que a Lei da Ficha Limpa exige que tenha ocorrido uma condenação anterior; “(…) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena”.

Assim, parte-se da condenação já imposta, decidida. Compete à Justiça Eleitoral verificar a presença dos requisitos legais retro apontados, mas partindo da moldura fática desenhada pela Justiça Estadual.

Entender de forma diversa poderá originar situações com decisões antagônicas, ou seja, a Justiça Estadual condenar, mas afastando expressamente o enriquecimento ilícito e/ou o prejuízo ao erário (podendo até ter o trânsito em julgado), com outro entendimento da Justiça Eleitoral sobre a mesma situação fática.

O que nos afigura mais correto é que a Justiça Eleitoral tem um campo mais delimitado na aplicação da Lei da Ficha Limpa, ou seja, deve partir dos termos da condenação imposta pela Justiça Estadual. Caso não fosse esta a exegese correta não teria a lei exigido uma prévia condenaçãoos que forem condenados — ou que a mesma fosse prolatada por órgão colegiado. Poderia ter autorizado a análise dos fatos diretamente pela Justiça Eleitoral, mas não foi esta a opção legal.

Em resumo, temos que a Lei da Ficha Limpa será uma grande inovação no Sistema Eleitoral, mas deve ser aplicada nos seus limites, sem possibilidade de a Justiça Eleitoral alterar o panorama fático da condenação anterior da Justiça Estadual.

O fato é “não há nada mais poderoso do que a força de uma ideiacujo tempo chegou”, ponderação de Victor Hugo. Estamos no tempo da defesa da honestidade e da probidade administrativa.


[1] TSE, Consulta 1120-26.2010.6.00.0000, relator o Ministro Hamilton Carvalhido.

[2] TSE, Consulta 1147-09.2010.6.00.0000, Classe 10, Brasília, rel. Min. Arnaldo Versiani.

[3] STF, RE663.703-MG, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23.03.2011, DJ 17.11.2011.

[4] Um dos autores destes comentários foi coautor da inicial da ADC 30, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, juntamente com os advogados José Miguel Garcia Medina e Oswaldo Pinheiro Ribeiro Junior, sendo também subscrita pelo Presidente do Conselho Federal, Ophir Cavalcante Junior. Todas as ações tiveram a relatoria do Ministro Luiz Fux e foram julgadas no dia 16 de fevereiro de 2012.

[5] A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e coisa julgada.

[6] A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

[7] Neste sentido: TRE-SP, Registro de Candidatura 3464-54.2010.6.26.0000, Classe 38, São Paulo, rel. Moreira de Carvalho, j. 23.08.2010. Pedido de impugnação contra Paulo Salim Maluf.

[8] “2. À luz dos referidos cânones, ressalvadas as hipóteses de aplicação subsidiária textual de leis, a sanção prevista em determinado ordenamento é inaplicável a outra hipótese de incidência, por isso que inacumuláveis as sanções da ação popular com as da ação por ato de improbidade administrativa, mercê da distinção entre a legitimidade ad causam para ambas e o procedimento, fato que inviabiliza, inclusive, a cumulação de pedidos. Precedente da Corte: REsp 704570/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Rel. p/ Acórdão Ministro Luiz Fux, DJ 04.06.2007” (STJ, REsp. 879.360-SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 17.06.2008, DJ 08.09.2008). No mesmo sentido: TJSP, Apelação Cível 92.644-5, rel. Des. Teresa Ramos Marques, j. 21.06.2000 – LEX – JTJ 240/13-14. Na doutrina, com outra posição: “(…). Cumpre ainda recordar, com apoio em Mendes, que a sentença judicial transitada em julgado, com o decreto de procedência da ação popular obrigando o condenado a reparar o dano que provocou ao patrimônio público, é suficiente para caracterizar a quebra do dever de probidade. Dessa forma, as hipóteses contidas na Lei da Ação Popular caracterizam-se como atos de improbidade que, reconhecidos judicialmente, implicam a suspensão dos direitos políticos até o ressarcimento do ônus imposto ao erário, a teor do art. 15, inciso V, combinado com o art. 37, § 4.º, da Constituição Federal. (…)” (Marcelo Figueiredo. O Controle da Moralidade na Constituição. São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 58).

[9] STJ, MC 17.051-SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 23.07.2010 – decisão monocrática do Min. Hamilton Carvalhido. Na fundamentação da decisão foi reconhecido que o ato de improbidade administrativa seja doloso: “Tem-se, assim, que a improbidade administrativa não se ajusta à inelegibilidade tipificada no art. 1.º, I, alínea “l”, da Lei Complementar 64/90, com a redação que lhe foi dada pela Lei Complementar 135/2010, que tem como elementar o dolo do agente (…)”.

[10] Em julgado do Tribunal Superior Eleitoral (TSE, Recurso Ordinário 2136-89.2010.6.26.000-SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 25.11.2010), em voto do Min. Ricardo Lewandowski ficou claro que três são as condições para a incidência da Lei da Ficha Limpa em se tratando de ato de improbidade: a) condenação em suspensão de direitos políticos; b) enriquecimento ilícito ou lesão ao patrimônio público e; c) presença do dolo.

[11] Aqui também concordamos que o enriquecimento ilícito não precisa ser necessariamente do agente político, pode ser de terceiros, como já decidido (TRE-SP, Registro de Candidatura 3464-54.2010.6.26.0000, Classe 38, São Paulo, rel. Moreira de Carvalho, j. 23.08.2010. Pedido de impugnação contra Paulo Salim Maluf): “Nota-se que no texto legal consta o enriquecimento ilícito, mas não determina que seja enriquecimento ilícito do agente, podendo ser de terceiros. No presente caso, o favorecimento foi ás empresas que contrataram com o Município, favorecidas pela conduta de improbidade praticada pelo impugnado. Desse modo, presente o enriquecimento ilícito exigido pela lei”.

[12] TRE-SP, Recurso Eleitoral nº 100-37.2012.6.26.0022, rel. Juiz Paulo Hamilton, j. 13.09.2012.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!