Constituição e Poder

Da irracionalidade à hiper-racionalidade nas decisões

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14 de janeiro de 2013, 20h41

Spacca
Uma das mais importantes discussões da teoria jurídica dos últimos tempos, que há muito vem incomodando tanto a Academia como os Tribunais, consiste na crítica que autores absolutamente sérios levantam quanto à possibilidade de a técnica da ponderação de bens oferecer decisões racionais para casos jurídicos controvertidos. Em síntese, opõem-se os especialistas quanto à capacidade de a ponderação de bens conformar um procedimento racional de aplicação de normas, muitos preferindo nela enxergar um mero expediente retórico de que se lança mão para justificar, sem muito jeito, as decisões judiciais.

A “ponderação” ou “sopesamento” (como prefere onotável professor Virgílio Afonso da Silva na tradução que fez do termo alemão Abwägung), ou ainda balanceamento (balancing dos norte-americanos), sempre despertou polêmica entre os juristas. Do ponto de vista prático — dos advogados e operadores do Direito em geral —, a maior crítica é a de que esse procedimento estaria a conferir excessiva discricionariedade aos juízes, conformando uma indevida usurpação de poderes do legislador e do administrador. Além disso, afirmam os críticos, seria um método cujos critérios são vagos ou inexistentes, resultando numa fórmula arbitrária de “equiparar” intereses e valores que não são equiparáveis.

Tendo realizado uma tese doutoral, precisamente, sobre colisão e ponderação de direitos fundamentais, não posso dizer que morro de amores pela ponderação de bens. Nunca considerei correta a postura acadêmica daqueles que se apaixonam pelo objeto de sua investigação científica — não obstante, temos que reconhecer, seja essa uma das doenças mais frequentes na Academia. Penso que a ponderação de bens é um método de solução de conflitos normativos, limitado exclusivamente a casos de colisão de princípios e que, mesmo assim, só será bem compreendida e de alguma utilidade prática para quem (defensor ou crítico) aceite uma série de pressupostos e limitações metodológicas, teóricas e mesmo jurídicas (regras de competência, por exemplo) que a envolvem. Aliás, quem fala em racionalidade fala, em primeiro lugar, em presuspostos e condições de controle e restrição de discurso.

Entretanto, o certo é que, se, de um lado, cobram da ponderação mais do que ela (ou qualquer discurso normativo) pode oferecer, de outro, imputam-lhe — em direção contrária — o erro de promessas excessivas. Num caso, a ponderação pecaria por dar pouco. No outro, por oferecer demais. Vamos conversar hoje com aqueles que cobram da ponderação as limitações de seus resultados. Em outras palavras, vamos discutir aqui as críticas daqueles que vêem na ponderação um método pouco racional e sem objetividade.

Medindo a extensão da linha pelo peso da pedra
Conhecido como um de seus maiores críticos, Antonin Scalia, no seu voto dissidente em Bendix Autolite Corp. Vs. Midwesco Enterprises, 486 EUA 888, considerou a ponderação nada mais nada menos do que uma mera ilusão (cito): “Este processo é normalmente chamado de balancing (…), mas essa analogia ou equiparação por escala não é realmente apropriada, uma vez que os interesses de ambos os lados são incomensuráveis.” Por fim, de forma peremptória com sua conhecida verve, concluiu com uma de suas mais ácidas ironias (cito): “Isso é como julgar se uma determinada linha é mais ‘longa’ do que uma pedra em particular é ‘pesada” (no orginal: It is more like judging whether a particular line is longer than a particular rock is heavy).

Em sua desconcertante inteligência, Scalia resumia duas das mais sérias críticas à racionalidade da ponderação: de um lado, uma suposta impropriedade em sopesar valores ou bens em tudo diferentes; de outro, a impossibilidade de encontrar uma medida ou critério único com o qual se pudesse realizar esse balanceamento.

Fazendo um inventário das críticas recorrentemente lançadas contra a ponderação de bens, Carlos Bernal Pulido identifica três grandes objeções manifestadas à ponderação como método racional de solução de conflitos jurídicos: “De acordo com os críticos, a ponderação é irracional por algumas razões. As mais importantes críticas referem-se à ausência de precisão, à incomensurabilidade e à falta de previsibilidade da ponderação.[1]

Ao afirmarem a “ausência de precisão” do sopesamento de bens, os críticos afirmam que “a ponderação não passa de uma fórmula retórica ou técnica de exercício de poder que não tem um claro conceito e uma precisa estrutura legal”, faltando-lhe “critérios legais objetivos” com os quais se possa vincular os julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário. A ponderação revelaria uma “estrutura formal e vazia”, baseada apenas em preferências ideológicas, subjetivas e empíricas do magistrado[2].

Quanto à “incomensurabilidade”, objetam os críticos que a ponderação seria irracional porque “implicaria a comparação de duas medidas que, devido à sua radical diferença, não podem ser comparadas”. Essa, como vemos, é, precisamente, a crítica do Justice Scalia.

Já os críticos da “falta de previsibilidade” afirmam que, por depender da configuração do caso concreto, a ponderação consistiria essencialmente em um processo que não permite generalizar os seus resultados — “todo resultado da ponderação é individual”. O método da ponderação conduziria sempre a resultados vinculados exclusivamente (ad hoc) ao caso concreto, não permitindo a criação de critérios passíveis de generalização para o futuro[3].

Aqueles que se dedicam ao estudo de temas como “racionalidade e objetividade no discurso jurídico”, “ponderação de bens”, “discricionariedade e vinculação das decisões judiciais”, ficarão surpresos como Carlos Bernal Pulido consegue, em seu maravilhoso pequeno artigo (The Rationality of Balancing), oferecer respostas bastante convincentes a todas essas questões tão complexas.

Retomando os passos de Robert Alexy, mas com alguma sutileza crítica, Pulido retrabalha de forma didática três elementos da estrutura da ponderação: a regra da ponderação, a fórmula do peso e o dever de argumentação. De fato, ali há uma convincente análise da “regra da ponderação” (“quanto maior o grau de não-satisfação de, ou em detrimento de um princípio, tanto maior deve ser a importância de satisfação do outro”). Essa regra é analisada em três outros estágios: em primeiro lugar, impõe-se aquilatar, em consideração às circunstâncias do caso concreto, o quanto um dos princípios envolvidos na colisão não será satisfeito, ou será afastado; em segundo lugar, verificar o quanto é importante, também no caso concreto, que o outro princípio seja atendido; e, por fim, exige-se demonstrar (com carga argumentativa) quando realmente, tudo considerado, se justificaria satisfazer o segundo princípio em detrimento do primeiro. Não é por outra razão que Alexy designará o resultado da ponderação como primazia condicionada de um dos princípios colidentes.

Como se vê, presentes na ponderação também dois elementos essenciais à sua racionalidade: a carga de argumentação e a dimensão de peso dos princípios. Com a fórmula do peso (the weight formula), busca-se racionalmente verificar um dos temas mais discutidos quando se fala em ponderação de bens, isto é, enfrenta-se o problema bastante complexo que é o do grau de importância — no caso concreto — dos princípios que entraram em colisão.

Em muitos casos é fácil perceber que um princípio tem maior peso do que o outro. No exemplo de Punido, quando um jornal ou uma revista, com intuito de criticar, chama um servidor público, que é portador de necessidade especial, de “aleijado”, obviamente, os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção da imagem ou da honra da pessoa deficiente, por exemplo, têm peso considerável e vão ter primazia sobre a liberdade de expressão, que, no caso, teria pouco peso, porquanto restrito à proteção da utilização de expressão discriminatória.

Diversamente, contudo, em outras situações, como é o caso daquelas que envolvem a liberdade religiosa, quase sempre haverá dificuldades consideráveis, que só podem ser solucionadas com a fórmula do peso e o dever de maior argumentação (lembremo-nos do caso da transfusão de sangue em testemunhas de Jeová)[4]. Aqui, quanto mais eu afasto a aplicação de um princípio em favor de outro com ele em colisão, mais tenho o dever de argumentar e justificar a sua preterição.

A fórmula do peso permite tanto a análise da importância dos princípios em relação a outros princípios em colisão, como também permitirá analisar a importância ou peso de um princípio em confronto consigo mesmo — quando em conformações diferentes de fato e de direito. De um jeito ou de outro, é inegável que um princípio pode ter maior peso do ele mesmo teve em outra situação — portanto, dependendo do caso concreto, pode ter peso diferente, já agora no confronto com os outros princípios.

O dever de demonstrar o maior e o menor peso dos princípios envolvidos numa colisão, bem como o dever de argumentar em favor da primazia de um dos princípios, sem dúvida, é um dos fatores que suportam evidente medida de racionalidade no método da ponderação.

Da hiper-racionalidade em discursos normativos
Não obstante o resumo aqui já verificado, o artigo de Carlos Bernal Punido realmente merece ser lido, sobretudo, considerado que hoje está à disposição do público na internet[5]. Entretanto, dos temas ali levantados, gostaria de destacar a oposição que o autor dirige ao que designou de hiper-racionalidade (hyper-rationality). Com essa expressão, Pulido busca contrapor-se a uma recorrente manifestação teórica — presente também no Direito —, que entende possível excluir, e de forma absoluta, do discurso jurídico, como de qualquer discurso normativo, avaliações (appraisals) de caráter subjetivo.

Essas teorias (hiper-racionais), contudo, sob o escudo e a exigência de uma hiper-racionalidade, nada mais são do que manifestações irracionais, pois desconhecem que é impossível a qualquer discurso normativo um grau absoluto de objetividade. Em outras palavras, o fato de subsistir na ponderação de bens, eventualmente, espaço para alguma avaliação subjetiva não implica que toda ponderação seja baseada apenas em avaliações subjetivas.

De outro lado, mesmo a técnica da subsunção não pode afirmar-se — já que também referida a discurso normativo — como completamente alheia a espaços de discricionariedade e de avaliação subjetiva. Como avalia Pulido, fôssemos recusar à ponderação a capacidade de conformar-se como método racional pela presença, em alguma medida, de juízos de avaliação subjetiva, teríamos que recusar racionalidade a todos os métodos de aplicação do Direito, incluída aí a técnica mais simples da “subsunção”, pois sempre, em qualquer discurso normativo, se fará presente algum espaço para subjetividade[6].

Aliás, Karl Larenz já, há muito, havia denunciado a ingenuidade de se afirmar como totalmente objetivo um juízo que pretende aplicar textos legais (plano das abstrações) a fatos concretos (plano da realidade). A começar pelos textos legais, que só se transformam em normas pelo filtro subjetivo e sempre (pré)conceituoso da interpretação e hermenêutica dos tribunais, também os fatos submetidos ao Judiciário não passam de “interpretação de interpretação” — o juiz interpreta os fatos a partir da interpretação feita pelas testemunhas, peritos, procuradores e advogados. Assim, tudo num juízo de “mera” subsunção abre-se a alguma avaliação subjetiva.

O aplicador da lei, se pretende ser intelectualmente honesto, guardados os limites semânticos e sintáticos do texto legal, muito mais não pode fazer do que admitir as limitações práticas de todo o compreender humano e, com isso, armar-se — no que for possível — contra sua promessa de “inata e absoluta objetividade”. Não é à toa que Nietzsche, no segundo tratado de sua Genealogia da Moral, afirmava que o maior problema da natureza foi pretender criar um animal (o homem) que faz promessas.

Ao enfrentar a crítica de “falta de precisão” do método da ponderação, Pulido, corretamente, argumenta que, se o discurso da objetividade absoluta fosse uma realidade, então, ter-se-ia que admitir que, através da jurisdição constitucional, a atividade do legislador ou do administrador se transformaria em mera execução do texto constitucional.

Com efeito, seria sempre possível e obrigatório subtrair mecanicamente das normas constitucionais, mesmo dos princípios constitucionais, as demais decisões normativas, sem espaço, portanto, para subjetividade do legislador ou do administrador. Assim, as decisões constitucionais controlariam de forma irrecusável e completamente as decisões legislativas e administrativas.

Como afirma Pulido, em uma tal realidade normativa, “o direito seria ancorado no passado, incapacitado de qualquer habilidade para adaptar-se às novas necessidades da sociedade[7]”. Contudo, na sociedade, “nenhum poder tem tempo ou informações suficientes para prever e regular todos os conflitos que poderiam, hipoteticamente, nascer no campo dos princípios”. Além disso, não se pode esperar, como já advoguei várias vezes neste espaço, cuidando-se de colisão de princípios constitucionais, “que exista uma única resposta correta para controvérsias de tamanha magnitude e complexidade” [8].

Obviamente, ao afirmar-se que uma “objetividade absoluta” é uma impossibilidade em discursos normativos, não se pretende afirmar que não se deva buscar, como princípio, a maior objetividade possível quando se cuida de valores ou de princípios normativos. É aqui, precisamente, que a ponderação cumpre um inestimável papel para a busca da racionalidade no Direito.

Como procedimento racional, além das limitações metodológicas e teóricas acima sugeridas, setorialmente, à possibilidade de ponderação pelo Judiciário impõem-se as restrições jurídicas decorrentes, por exemplo, das regras de competências. De fato, onde o legislador decidiu na forma de regra (posição jurídica definitiva), no espaço de discricionariedade constitucional que lhe é conferido, não pode o juiz pretender substituir a escolha do representante do povo por sua própria e política escolha pessoal. A jurisprudência das Cortes Superiores também é outra restrição que se impõe à possibilidade de ponderação pelas instâncias inferiores do Poder Judiciário.

Para concluir, não obstante não exista consenso sobre o que e o quanto podemos considerar um discurso normativo racional, há muito Robert Alexy insiste, no seu Teoria da Argumentação Jurídica, na necessidade de que um discurso racional deve suportar uma conceituação clara e coerente, onde as premissas a serem empregadas sejam completamente justificadas e exauridas, de forma lógica, exigindo-se ainda carga de argumentação, com consistência e coerência de todos os participantes de discurso sob conflito[9].

Tudo isso sugere que, para uma adequada compreensão do método da ponderação de bens, especialmente como proposta por R. Alexy, a leitura de sua Teoria dos Direitos Fundamentais, consoante se viu acima, deve ser antecedida pela leitura de sua Teoria da Argumentação Jurídica. Por fim, não se pode esquecer que Alexy, com o passar do tempo, pela honestidade intelectual que o caracteriza, tem assimilado algumas das considerações críticas dirigidas à sua teoria (tanto dos opositores como de seus seguidores), sem que isso, contudo, comprometa o núcleo fundamental de suas proposições teóricas[10].


[1] Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing. Ótimo artigo, assinado por um dos autores hoje certamente mais destacados no estudo sobre o tema proporcionalidade, ponderação e racionalidade do discurso jurídico, com acesso em 12.01.2013, no seguinte sítio

http://www.upf.edu/filosofiadeldret/_pdf/bernal_rationality_of_balancing.pdf.

[2] Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing, p. 2.

[3] Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing, p. 3.

[4] Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing, p. 13 e seguintes.

[5] Não obstante em língua inglesa, é versado em linguagem absolutamente simples, bem acessível a quem tenha algum contato com esse idioma – Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing. com acesso em 12.01.2013, no seguinte sítio

http://www.upf.edu/filosofiadeldret/_pdf/bernal_rationality_of_balancing.pdf

[6] Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing, p. 4.

[7] Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing, p. 5.

[8] Carlos Bernal Pulido. The Rationality of Balancing, p. 5.

[9] R. Alexy. Theorie der Juristischen Argumentation. Frankfurt: Suhrkampf, 1983, p. 234 e 301.

[10] Disso é exemplo o pós-escrito da recente publicação de sua Teoria dos Direitos Fundamentais nos Estados Unidos, p. 388 e seguintes (Robert Alexy. A Teor of Constitucional Rights. Trad. Julien Rivers, Oxford University Press, 2002).

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