Cárcere do processo

Novo Código de Processo Penal diminui poder de juiz

Autor

12 de janeiro de 2013, 6h34

É consenso na comunidade jurídica a necessidade de um novo Código de Processo Penal para substituir o vetusto CPP de 1941. Anacrônico, feito para outra época e para a sociedade da primeira metade do século passado, portanto, já é mais do que o momento de modernizá-lo e de atualizá-lo.

Fruto do trabalho de uma Comissão de Juristas de alto nível intelectual o anteprojeto do Novo Código se transformou, após algumas alterações, no projeto aprovado pelo Senado Federal e em lenta tramitação na Câmara dos Deputados.

O Código de um modo geral é muito melhor do que aquele que poderá substituir, sem embargo de algumas disposições polêmicas, tais como a criação da figura do juiz de garantias, distante da realidade brasileira, e da possibilidade da ação civil de danos morais embutida na ação penal condenatória.

No entanto, uma preocupação permanece para a magistratura: é a diminuição dos poderes do juiz em face da implantação quase integral do sistema acusatório no lugar do sistema acolhido pelo Código Processual Penal de 1941.

Fica claro que o animus principal do novo Código é o garantismo e a preocupação com a ampla defesa do réu, o que é bastante louvável. No entanto, no que se refere à celeridade, efetividade e instrumentalidade em prol da luta contra a impunidade, verdadeiro clamor de toda a sociedade brasileira, o projeto deixa para plano secundário o combate à prática protelatória e à morosidade judicial.

A preocupação é que, com esse novo modelo, somado à falta de preocupação com a efetividade, poderá haver prejuízo para a aplicação da Justiça e poderá resultar num código ineficiente, na medida em que retira do juiz a função instrumental e coíbe-lhe a busca oficial da prova, quando as partes são inertes. O sistema penal acusatório como defendido no Projeto de Lei é exitosamente aplicado em outros países com cultura diversa da nossa. Historicamente, no Brasil nunca teve grande adesão, cujo direito processual secularmente funciona muito bem com a divisão comum da produção da prova entre todos os sujeitos atuantes.

O magistrado, que ao final valora as provas, sempre teve certa liberdade para, em nome do devido processo legal e da ética, determinar de ofício uma perícia, interrogar as testemunhas, ouvir o réu a qualquer momento processual, mesmo porque a acusação e a defesa não conseguem sempre examinar o processo com o olhar integral do conflito e dos fatos. Muitas vezes as partes se omitem, por exemplo, no requerimento para oitiva de uma testemunha fundamental, cabendo ao juiz supletivamente intimá-la para vir depor como testemunha do juízo. Quando o magistrado supre a prova omitida pela parte está apenas fazendo com que seu veredicto alie-se à justiça e à verdade buscada na sua decisão. Com o novo CPP, se aprovado, isso não será mais possível, uma vez que não haverá mais testemunhas do juízo, somente das partes.

É claro que não se pretende que o juiz substitua o advogado ou o Ministério Público, pois cada um exerce o seu papel institucional. Mas, ao diminuir drasticamente os poderes do juiz e ao não se preocupar em combater a má-fé do processo o Projeto precisa ser melhorado quanto aos seus objetivos, sobretudo porque torna o juiz um simples espectador do vai e vem de acusação e defesa, tendendo para a inércia e o comodismo, sem condições de recriar o cenário da infração penal.

Além disso, o projeto do novo Código de Processo Penal restringe as funções constitucionais do Poder Judiciário, quais sejam: processar e julgar. Dá-lhe apenas a missão de julgar com absoluta neutralidade, valendo a ideia de que o juiz deve obedecer somente à vontade das partes e de que se tiver iniciativa probatória ou um pouco mais de liberdade na aplicação da pena poderá ser contaminado na sua percepção da verdade.

Nesse sistema implantado o juiz fica refém da vontade das partes. O Ministério Público, autor da ação penal, uma vez que no projeto toda ação será pública, terá que se adaptar e se estruturar para ir buscar a prova, localizar as partes e tornar-se, realmente, o responsável pelo ônus e despesas da instrução, o que não deixa de ser ponto positivo tal perspectiva, se não fosse o prejuízo para o livre convencimento do juiz. Igualmente esse ônus também é da defesa na busca da absolvição do acusado. Ao juiz caberá apenas julgar, sem poder de ofício para refazer uma prova, ouvir outra testemunha, que não foi arrolada nem percebida por nenhuma das partes.

A retirada dos poderes dados ao juiz na busca da prova acarretará o risco de torná-lo um passivo ouvinte e assistente do movimento das partes, sem direito à manifestação processual, sem capacidade para influir nos rumos da justiça e da verdade. É a consagração da ideologia da verdade formal, em que o juiz deve restringir-se ao material probatório trazido pelo réu ou pelo Ministério Público.

É errôneo o pressuposto de que o juiz que determina a prova de ofício é parcial. Quando o faz, fá-lo por dever de ofício sem saber o resultado ou o conteúdo da prova, que poderá ser a favor de quaisquer das partes, não havendo assim parcialidade. Mas ao prender-se o juiz na passividade extrema, parte-se do pressuposto que juiz ativo é juiz parcial.

Juiz ativo tem o compromisso com a verdade e não com a acusação ou com a defesa; juiz ativo não substitui a atuação do promotor, mas pode a qualquer momento complementá-lo; juiz independente não deve ser obrigado a ficar preso às ordens de Corregedoria de Tribunal na sua função de julgar, nem do Conselho Nacional de Justiça para exercer a sua função primordial que é de realizar um justo processo; juiz ativo deve ter poderes para coibir qualquer ato atentatório à dignidade da Justiça e a reprimir qualquer ato com fim meramente protelatório, aplicando a multa processual seja à testemunha, à parte e aos seus representantes; juiz ativo não significa juiz acusador, juiz investigador, juiz perseguidor, nem juiz advogado de defesa, mas juiz que, diante da inércia da parte para a busca de uma prova, procura também colaborar com a verdade, porque é seu dever fazer a justiça real.

Não se nega que o projeto do novo Código Processual Penal possui inúmeros pontos positivos, sobretudo porque traz inovadores instrumentos jurídicos e atualiza manifestações já sedimentadas na doutrina e na jurisprudência. Mas, apesar de ser muito melhor e atual do que o vigente CPP de 1941, faltam ser inseridas regras necessárias para fazer valer o princípio da razoável duração do processo, da ética processual e da efetividade.

Por exemplo, não se reproduziram as regras do Código de Processo Penal em vigor, que dão poderes para o juiz multar o advogado que abandona injustificadamente o patrocínio da causa, à testemunha faltosa e ao perito que se recusa ao encargo ou que não age com profissionalismo, o que coloca mais uma vez o juiz restrito à voz do seu julgamento somente ao final. Pelo contrário, é o juiz é que passa a ser vigiado, até no seu foro íntimo, pelo seu tribunal, porque, pelo Projeto há necessidade do juiz, em caso de suspeição por motivo de foro íntimo, ter que enviar reservadamente o motivo para a Corregedoria. Ora, a suspeição por motivo de foro íntimo é algo que impede o juiz de julgar com isenção e esse motivo não precisa ser justificado para ninguém, é uma questão de consciência e às vezes até de segurança pessoal do magistrado.

O juiz que por motivo de foro íntimo declara sua impossibilidade de continuar no processo não pode sujeitar-se ao controle de outro juiz nem ao controle administrativo, salvo se caracterizar evidente abuso do magistrado, quando pretenda, por exemplo, diminuir a sua carga de trabalho, ou até mesmo prevaricar. O STF já rechaçou norma do Conselho Nacional de Justiça nesse mesmo sentido, que pretendia obrigar o juiz a dar explicações à Corregedoria toda vez que se declarasse suspeito. Desse modo, o dever de justificar o motivo íntimo amarra e torna o juiz injustificadamente fiscalizado pela sua Corregedoria e viola flagrantemente o princípio constitucional da independência da magistratura.

Como está, o projeto aprovado pelo Senado e em discussão na Câmara é prejudicial à atuação complementar da atividade probatória do magistrado (principalmente quando há omissão das partes) e lhe tolhe poderes. Preso no seu próprio campo de atuação o juiz se torna muda testemunha do conflito, neutral e isolado. É como se o pusessem no próprio cárcere do processo, como diz Eduardo Couture[1], porque perde a liberdade de conduzir devidamente o rito e de exercer o seu livre convencimento e de proclamar a justiça com independência.

O projeto do Novo Código de Processo Penal merece ser urgentemente aprovado na Câmara a fim de fazer valer novos instrumentos da adequada Justiça Criminal. No entanto, precisa ser nesse ponto revisto para conceder poderes probatórios e de combate à má-fé pelo magistrado, para não tornar o juiz penal brasileiro uma figura esquálida, ressecada de verdade e sem sustentáculo útil no seu trabalho de distribuição da justiça. A ninguém interessa um processo penal em que o juiz não tem poderes processuais de requisitar quaisquer provas não solicitadas pelas partes, de combater a má-fé, de zelar pelo princípio da razoável duração do processo e de poder buscar também a verdade em nome justiça.

Especificamente, se a proposta vingar da forma como foi aprovada no Senado somente restarão cinzas dos históricos e tradicionais poderes do Juiz no processo penal, ou, como ressaltava Nelson Hungria: “Onde havia carne, músculos e nervos, só se vê a armação de um esqueleto. Onde havia fronde ao ar livre e frutos pendentes, apenas se encontram galhos secos dentro de recintos tapados. Onde havia plantação sadia e dadivosa, somente se depara estiolada germinação de beiral de telhado velho sem raízes no solo, ou um inextricável cipoal desgarrado dos troncos de sustentação. Onde havia labaredas vivas e crepitantes, hoje só existem chamas indecisas de fogo-fátuo”[2].


[1] “O juiz é um homem que se move dentro do direito como o prisioneiro dentro de seu cárcere” (COUTURE, COUTURE. Introdução ao estudo do processo civil. Trad. Mozart Victor Russomano. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 58.

[2] Os pandectistas do direito penal. Revista dos Tribunais 724, Ano 85. São Paulo: Revista dos Tribunais, fev. 1996, p. 749.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!