Senso Incomum

Franqueamento da jurisdição? Processo eletrônico Parte II

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10 de janeiro de 2013, 7h00

Spacca
No capítulo anterior…
Na semana passada, a Coluna (clique aqui para ler) tratou do fenômeno da neo-gestão, espécie de fragmentação pós-moderna que invadiu repartições, universidades, Judiciário e Ministério Público. Hoje, a complementação.

Antes disso, apenas alguns esclarecimentos. Da Coluna anterior (a parte I), alguns juízes não entenderam a crítica ao “Sentença 10”. Muitos falaram que temos que aprimorar nosso poder de síntese, etc. E que sou jurássico, etc. Outros, para desqualificar a crítica, acusaram-me de “acadêmico”… Posso ser acadêmico, é verdade… mas com mais de 5 lustros de tempo de praia no Ministério Público, ralando processo todos os dias. Em quantos milhares de processos já oficiei?

Bueno. Quero apenas dizer que, se é virtual, porque “economizar em bytes?” Quer dizer que, além de virtual, tem de ser “sem gosto”, “sem tempero”, “sem reflexão”? Talvez por isso Pontes de Miranda tenha feito o seu Tratado Sobre o Direito Privado em… “curtos” 11 volumes. Por que a pós-modernidade quer nos tirar a reflexão? Essa é a pergunta a ser respondida. Sim, se é assim, assumo minha jurassicidade. Pois é. Acredito em Constituição dirigente, acredito em decisão artesanal, acredito na possibilidade de respostas corretas (adequadas à Constituição), abomino embargos declaratórios, e por aí afora.

Como falei, esta Coluna, dividida em duas, é uma ode aos juízes. Não é uma crítica. Não é uma ode ao juiz-gestor (um amigo juiz recebeu dia destes um ofício chamando-o de Senhor Gestor; quem assinava o ofício era um neo-gestor do Tribunal). Um procurador federal (advocacia pública) me faz um desabafo, numa paráfrase à Metamorfose, de Kafka: “Quando ele despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de… gestor. Não era mais advogado. Tudo começou quando teve que realizar estatísticas de êxito nos processos. Quase 50% de decisões integralmente favoráveis nos tribunais superiores… Somadas às parcialmente favoráveis, temos um panorama de 58% de decisões favoráveis…. Pronto, o advogado moribundo cede espaço ao incensado… gestor”.

Enfim, a Coluna é uma homenagem ao juiz-que-ainda-julga. E que resiste!

As novas testemunhas
Dizia no capítulo anterior que os funcionários — assessores em geral, mais a valorosa classe dos neo-escravos (os estagiários) — são aqueles que fazem essa tradução (não esqueçamos que o próprio Aristóteles justificava a escravidão…). Logo, são eles as testemunhas do processo. Sim, as testemunhas dos autos. Sem aqueles que leem para nós o que está no processo virtual, não há comunicação. Nunca-sabe(re)mos-o-que-os-autos-nos-dizem; só sabe(re)mos aquilo que os assessores nos dizem que os autos disseram… em uma perfeita paródia do mito de Hermes.

Estou sendo duro? Conservador? Retrógrado? Antitecnologia? Pode ser. Cada um que fale sobre como (se) sente (n)esse novo modelo de gestão de processos virtualizado. Prefiro os velhos autos de papel. Manusear uma a uma as folhas de papel. Examinar amiúde a prova pericial. A assinatura era falsa no documento? Vejo na hora. O que diz uma testemunha? O promotor perguntou alguma coisa? Foi cumprido o artigo 212 do CPP? Dobro a folha e já leio o que disse a outra testemunha. Comparo. E assim por diante.

Reconheço que, se a evolução chegar ao patamar de se poder folhear todos os autos como em um livro em IPad, poderíamos conversar a respeito. Antes disso, é o que está aí. Reconheço também que, em tese, há avanços, embora muitos advogados não concordem com esse diagnóstico. Mas, vamos lá. O desembargador Passos de Freitas informa que “No sistema e.proc (TRF-4), o advogado é quem distribui o processo e a distribuição é imediata, surgindo na tela o nome do relator. Se ele for ao tribunal no dia seguinte para explicar o motivo do agravo, certamente encontrará a decisão já pronta. O agravo não precisa de cópia disto ou daquilo (v.g., da inicial). É a petição de recurso e pronto. Isto porque o relator acessará o processo e terá à sua frente todas as peças. O advogado constituído, ao ser intimado de uma decisão, terá na tela todas as fases do processo. Portanto, não corre o risco de viajar horas de carro para atender uma decisão e daí constatar que a providência é dispensável. Ademais, ele pode estar passando suas férias em um resort do Nordeste e de lá mandar sua petição para uma ação que tramita em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul”.

De todo modo, reconhecendo que isso pode ser um avanço, o que quero dizer é que, como o próprio desembargador reconhece (vejam na coluna anterior), há ainda uma enorme dificuldade para lidar com o material eletrônico, que longe está de chegar perto da facilidade do papel e, mais ainda, longe está de ter um sistema unificado.Sim, o sistema da Justiça Federal não é igual a outros, de outras justiças do país. Só uma observação: vejam as palavras “facilidade do papel”…!Mas, se o “papel é mais fácil”, então… Bom, seguimos.

Obviamente que não sou contra a tecnologia. Sem o computador, sem internet, sem o celular e sem o meu IPhone (que tem internet embutida), eu não faria as coisas que faço. Mas não é esse o ponto. Eu lido bem com isso. Minha questão é: como lidar com processos eletrônicos nesse momento ainda de baixa tecnologia, em que as páginas “pulam” e a leitura é extremamente difícil?

Claro que temos de usar a tecnologia. Ela tem que ser útil para a humanidade. Mas não podemos ser escravos da tecnologia. Por que, por exemplo, os alemães sequer aceitam o voto eletrônico? Por que será? Quem garante que os processos eletrônicos são confiáveis? Quem garante que os testemunhos são analisados? Como verificar os documentos, se apenas temos o fac-símile? Mais: por que razão o STF não permitiu o uso de power point no julgamento da AP 470?

Fico pensando: e se o processo do mensalão fosse “virtual”? Como se daria a “vista dos autos”? Encontraríamos depoimentos com palavras-chave, em Ctrl L? Mas, e o contexto? Dá para se ter o contexto de um processo, lendo um parágrafo que encontramos mecanicamente? Minha pergunta hermenêutica: a tecnologia teria o condão de “matar” o círculo hermenêutico (hermeneutischeZirkel)? Paradoxalmente, estaremos voltando à pré-modernidade, em que há(via) a sujeição do intérprete às coisas (o mito do dado se repetindo)? Os paradigmas filosóficos estão sendo enterrados? A técnica, último princípio epocal da modernidade (trato disso amiúde em Hermenêutica Jurídica em Crise) do qual falava Heidegger, finalmente se impôs?

Outra coisa: quem disse que um processo tem que estar concluído em três ou quatro meses? Por que o Brasil quer ter o processo mais rápido do mundo? Ao mesmo tempo, com toda essa sanha de gestão, sequer pensamos, por exemplo, em dobrar o número de componentes do STJ? Como os utentes acham que milhares de processos eletrônicos são examinados nesse tribunal? E nos tribunais regionais federais?

Há vozes importantes do Judiciário que falam que o processo eletrônico consagrará uma espécie de embuste, para dizer o menos. E o que é isso? Em que sentido seria um embuste ou ficção? Simples. Porque consagra o julgamento “no escuro”. Trata-se da “terceirização da jurisdição” de que falou um dos importantes magistrados por mim ouvidos.

E reproduzo uma preocupação: quando a Justiça Estadual começa a usar essa ferramenta de TI, temo que se avizinha a maior de todas as crises do Poder Judiciário, aquela que não se resolve com mutirões, com metas, com produtividade e estatística: a crise de identidade, que, decorrência do déficit qualitativo da prestação jurisdicional, abala as estruturas do “fetiche” da solução adjudicada. E a jurisdição será demonizada. Sim, o risco é grande de cairmos em uma armadilha. A armadilha do fetiche da tecnologia.

Além disso, há o risco de aprofundarmos o fetiche da estatística. Sei de casos em que, para cumprir metas, faz-se cisão de processos-crime, para render duas sentenças. Veja-se o paradoxo: a AP 470 tomou tanto tempo e valeu por um julgamento. Tenho medo que um dia se terceirize, remunerando estagiários a R$ 50,00 por decisão. Bato na madeira. Três vezes.

Sintomas de um franqueamento anunciado. Pois. Remeto os leitores àresolução do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, que aponta quantos processos deve ter em estoque para que o juiz não perca servidores ou ganhe mais (clique aqui para ler).

Metas. Gestão. Eis as palavras mágicas. Veja-se o que pode ocorrer. No crime. O juiz reconhece a prescrição antecipada. Processo julgado. Recurso em sentido estrito interposto pelo MP. O juiz volta atrás. Decisão reformada. Processo ressurge. Processo Jason (não morre!). Renasceu. Mas para fins estatísticos acabou.

Um importante juiz e professor me contou essa, que bem ilustra a pós-modernidade e a fragmentação sentencial. Ele estava na Vara Bancária de uma capital. Veio o causídico e disse, sem cerimônia: “— O Doutor Magistrado conhece Fórmula 1?”“ Sim, respondeu o juiz.” “ Pois é. Com todo o respeito, a sua decisão é troca de pneu obrigatória. A corrida sempre vai até o tribunal. Então, Doutor”, concluiu o causídico, “peço que o Senhor não invente ou não faça floreios. Ou julga tudo procedente ou improcedente. Se julgar parcialmente, terá que processar dois recursos!” Vejam como se forma o imaginário na e da “pós-modernidade”.

Quem despacha mais?
Lamentavelmente, perdemos nossa capacidade de percepção dos problemas. Se morássemos debaixo da água, a última coisa da qual nos daríamos conta seria… a própria água.

Sempre pensei que juiz era talhado para tomar decisões qualificadas. Hoje, o “bom juiz” é o que mais decide de acordo com o que decidem os tribunais e o que despacha mais rápido. Como bem diz o juiz e professor Alexandre Morais da Rosa: É que o sujeito juiz encontra-se num dilema: se decide como deve decidir, com reflexão e enunciação, demora mais do que o Sistema exige, e traz consigo a acusação de julgar contra o que já está estabelecido, dando falsas esperanças….; se decide como já-está-decidido apaga seu nome da decisão, a saber, não faz diferença quem assina, pois qualquer um poderia assinar esta decisão (sic) sem enunciação.

E segue:

“E uma das características da Modernidade foi a de legar o lugar da enunciação, a saber, de alguém pontuar do lugar do juiz, transformada hoje em dia numa verdadeira lógica de “Franchising”, modo pelo qual a administração da Justiça, via Análise Econômica do Direito Law and Economics, promove um sistema de decisões judiciais fixadas, ex ante, pelo franqueador. A licença da marca é previamente valorizada uma decisão do TST, do STJ ou STF, a qual implica num reconhecimento do valor da decisão no mercado jurisdicional, sob o pálio de uma efusiva (…) ‘eficiência’”.

A questão do controle sobre os juízes e dessa busca por eficiência é tão complexa que o presidente da Suprema Corte, ministro Joaquim Barbosa, diz ser contrário a promoções por merecimento. Porque, para ele, tudo vira ficção (clique aqui para ler). E uma das coisas é julgar de acordo com os Tribunais Superiores. E então?

Concursos… Muitos concursos!
Paradoxalmente, enquanto queremos ser os mais high tech do mundo — o Brasil, sempre o Brasil —, continuamos com um ensino jurídico de quinta categoria, concursos públicos que são verdadeiros quiz shows ou gincanas de decorebas, em que os candidatos têm de responder a pegadinhas jurídicas. O juiz federal mais jovem do Brasil tem 25 anos. Formou-se em 2009 e, já em 2012, tinha sido aprovado em concursos para técnico do Ministério Público da União, do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Regional da 1ª Região, procurador do estado de Alagoas, defensor público do Piauí e defensor público da União. Pelo que depreendi da entrevista do novel magistrado, trata-se de uma questão de treino, verbis: Desde cedo, comecei a fazer muitas provas; inscrever-se em concursos públicos e resolver, desde logo, as questões, é um excelente termômetro para detectar, concretamente, quais os pontos a melhorar e as disciplinas que demandam mais tempo de estudo.

Ah, bom. E pronto. Provavelmente, o jovem magistrado não conhece o endereço do Fórum, nunca manejou um processo, mas, perseverante, passou na gincana e agora julgará as causas da União. Parabéns. Como será que ele se lidará com os autos eletrônicos? Ele não conhecia nem bem ainda os autos de papel … De todo modo, o sucesso do jovem juiz apaixona multidões. A notícia-entrevista com ele foi a mais lida na ConJur. Afinal, quem não quer saber os truques para passar em concurso? Os milhares de leitores devem ter ficado decepcionados, porque o Doutor não contou nenhum segredo. Pena.

Por isso, a indústria que mais cresce é a de cursinhos de preparação, que são uma mistura de igreja pentecostal com grupos motivacionais. Os autores de livros simplificadores brigam à tapa para ver quem publica coisas mais “fáceis de pegar” (como se o Direito fosse piriguete). Vejo na internet professores (?) ensinando Direito com músicas da Xuxa e com raps, falando sobre “o erro-de-tipo-é-maneiro”, “erro de proibição é sinistro” (algo desse naipe), etc.

Transferiram o call center para a Justiça
Os Juizados Especiais também foram uma grande ideia que se enquadra nesse imaginário neo-gestional pós-moderno. E as grandes empresas se transformaram nos maiores réus dos Juizados (e não só deles). Com o advento do Código do Consumidor — e do novo-modo-consumeirista-de-fazer-direito — institucionalizou-se a picaretagem. O 0800 é uma vigarice pós-moderna. As empresas sabem que nem todosaqueles que elas lesam entrarão em juízo. E os que entram, por si, já entopem o sistema. As empresas apostam no colapso. Bum! Uma empresa de telefonia ganhou em um dia mais de R$ 3 milhões fazendo as ligações caírem. E nada acontece a ela (perguntem se a multa aplicada pela agência reguladora vai ser paga?). Os utentes podem entrar em juízo, pois não? O Judiciário acaba sendo um modo de os bancos e as telefonias “se darem bem”.

Em Portugal, houve um momento em que o Judiciário “rodou a baiana”. Chamou os bancos à fala e parou com a institucionalização da vigarice. Disse o presidente do tribunal português aos dirigentes da banca: “Vocês acham que nós trabalhamos para vocês”? Pois é, o pá: os bancos usavam o Judiciário luso para “mostrar” como eles “cumpriam” a lei às avessas. De um lado, transformavam o Judiciário em “cobrador de contas”; de outro, usavam o Judiciário “para destensionar o mau atendimento ao utente”. O Código do Consumidor dá razão àqueles que sempre disseram que “hechalaley, hechalatrampa”.

Nessas demandas de massa, como as da telefonia, TV a cabo, companhias aéreas, por que o Judiciário não dá uma sentença holding, lapidar, dura, do tipo “prevenção geral”, para que as companhias não reincidam? Começar uma nova cadeia discursivo-decisional. Leio que uma juíza do Rio de Janeiro condenou a Alitalia a pagar R$ 8 mil de indenização para a cantora Marisa Monte. E qual a causa? A Alitalia atrasou 14 horas o voo. Como provavelmente apenas Marisa e mais dois ou três ousados entraram em juízo, a Alitalia lucrou com a sua torpeza. Ou seja, valeu a pena atrasar 14 horas. Parece-me que uma decisão efetivamente punitiva poderia fazer com que as demais companhias agissem de outro modo, pois não?

Atenção: uso aqui nada mais, nada menos, do que as palavras de um ministro do STJ (Luis Felipe Salomão), para roborar o que estou dizendo sobre esse assunto “massificação”: “Os grandes litigantes do Judiciário estão acomodados porque transferiram o seu call center para a Justiça (…) Deve ser mais barato deixar acionar o Judiciário do que manter um call center que efetivamente resolva os problemas. Virou uma indústria em que muitos ganham dinheiro”. Bingo. And I rest my case!

Mas, mesmo assim, não estou satisfeito. Quero seguir. Pergunto: por que não há Juizados Especiais na Alemanha? Porque lá as companhias não fazem picaretagem com os utentes como no Brasil. O que quero dizer é que quanto mais dermos respostas padrões e lenientes (respostas standards), mais as companhias terão lucro com a resposta da Justiça. Insisto: essas companhias fazem um cálculo atuarial. Sim, elas têm neo-gestores também!!! E bem espertos. Eles ensinam às empresas que vale a pena enganar o consumidor. Os que forem ao Judiciário representam — embora muitos para a máquina judicial — poucos para o número de enganados… Simples, pois. Como diz o Conselheiro Acácio, personagem de O Primo Basílio, “as consequências vêm sempre depois”. Sim. E “depois” nos queixamos da massificação. E como respondemos? Heim? Claro: com a agilização… via processos eletrônicos…!

O spam no processo digital
Veja-se. Além de tudo, um dos problemas dos processos eletrônicos é o spam! Isso mesmo. Como não se tira nem sequer cópia, os réus no cível juntam milhares de anexos de jurisprudência, contratos, o escambau. Aliás, vai aqui uma dica para dissertação de mestrado: O spam no processo digital na comarca de Ourinhos (ou outra Comarca qualquer).

Um importante magistrado da Justiça Estadual respondeu por uma vara de matéria bancária. Foram mais de mil sentenças assinadas eletronicamente! O magistrado, no ritmo daquele trabalho, virou capataz de peão e gado. Os Tribunais Superiores, nessa matéria, dizem o que o capataz deve fazer.

No caminho da pós-modernidade, o juiz Carlos Henrique Abrão, aqui na ConJur, diz que o Judiciário não pode mais julgar processos artesanalmente. E mais: A todo o momento saltam milhares de demandas, boa parte irrigada na travessia do sistema econômico, na dificuldade de pagamento, e no estado de insolvência das empresas.

Fico assustado. Em pânico. Quer dizer que estamos fadados a que nossos direitos sejam analisados por pilhas (ups, agora por nuvens eletrônicas)? Nossos direitos fundamentais são julgados ao estilo “fordista”, Doutor? É isso é normal? É como o atendimento do SUS? É isso? E ficamos falando em direitos, caso concreto, congressos, palestras, seminários, salas de aula… Estamos enganando o povo, é isso? Vamos assumir que tudo tem que ser uma realjuridik (realjuridik é uma palavra que inventei na linha da realpolitik) é isso? Não dá para lutar contra? É uma fatalidade? Uma falácia realista?

Embora as palavras apocalípticas do Doutor Carlos Henrique, sigo peleando. Se eu acreditar nisso, de verdade, paro de escrever. De ler. De estudar. E peço demissão da Faculdade. E saio do MP. Vou pescar — de forma artesanal!

Sentença em prótons e elétrons
Acho que fomos derrotados. Como conservador, acredito no caso concreto. Acredito que haja respostas adequadas à Constituição. E acredito que uma sentença não é fruto de escolha pessoal. E que sentença não vem “de sentire” (como “gosto” desse enunciado). Adoro ver os jovens mestres e doutores (muitos que fazem tese sobre “agravo de instrumento” e “o papel do oficial de Justiça” ou “embargos infringentes — uma visão sistêmica”) fazerem conferências neopentecostais dizendo essa frase “sentença vem desentire”. Outra coisa que gosto muito é o mantra “regras é no tudo ou nada eprincípios é na ponderação” (argh — onomatopeia). Também é muito “legal” ver processualistas defendendo a importação do sistema de precedentes para Pindorama. Claro: para quem sempre apostou em uma cultura de ementários (conceitos sem coisas), nada melhor do que importar pela metade coisas do common law.

Por isto, esta Coluna é uma ode ao bom juiz. O juiz que se preocupa em julgar e bem julgar. Que examina amiúde os autos (de papel). Esta Coluna é uma ode aos tribunais que discutem causas e não simplesmente decidem monocraticamente. Esta Coluna é uma ode aos desembargadores que ouvem (prestam atenção às) sustentações orais. E que espiolha(va)m provas (como o ex-desembargadorLuis Gonzaga Moura, da 5ª Câmara Criminal do TJ-RS — a quem homenageio; que baita juiz; nada lhe escapava).

E esta Coluna é uma ode aos advogados que se esforçam e acreditam que as teses podem dar certo. Sou desse tempo. Derrubávamos pilhas de processos (Nereu Giacomolli, hoje desembargador, e eu chegamos na Comarca de Itaqui, fronteira com a Argentina, onde nem TV se pegava, com 2.000 feitos para examinar; não havia computador, não havia pen drive; errava uma palavra, usava-se “errorex” (os jovens nem sabem do que se trata). Confesso: não era um bom tempo… não é isso que quero dizer; tivéssemos a tecnologia e baixaríamos a “pilha” muito mais rapidamente; mas, com toda a tecnologia, por que hoje tornamo-nos escravos do “quantitativo”? Não era para qualificar??? Esse é o busílis!). A aferição da verdade processual mudou nas últimas décadas? Crescemos em tecnologia e afrouxamos na aferição do que aconteceu na dura vida das pessoas que dependem de uma decisão judicial? Esquecemos que a vida das pessoas está naqueles autos?

Li, no final de semana, por obrigação profissional para gravar Direito & Literatura, o livro que ganhou o prêmio de melhor do ano de 2011 (Prêmio São Paulo de Literatura), chamado Passageiro do Fim do Dia, de Rubens Figueiredo. Fiquei impactado. Trata-se de um dia na vida de um passageiro de subúrbio, que traz em sua mochila um livro sobre Darwin. Imperdível. No ônibus modorrento, sua vida vai passando como em uma tela de TV. Pedro, o passageiro, trabalha em uma pequena loja de livros usados. Lá convive com várias pessoas. Com promotores, advogados, juízes e juízas. O velho juiz diz para a jovem juíza: “— Aliás, já que a senhora falou, não sente raiva da maneira como eles reproduzem os passos de um processo ali na tela de vidro? Remessa, despacho, vista… Uma listinha vagabunda. Parece que foi feito só para desmoralizar o nosso trabalho, a nossa ciência. Não, não é disso que estou falando, eu me refiro à sentença, à nossa intervenção, sabe, quando a nossa palavra se converte em força. Veja, neste mundo a eletrônica constitui um estatuto superior, quem vai negar isso? A eletrônica pode até não ser, mas aos olhos do mundo vale por uma autoridade em si mesma. E o que vale é só o que importa, esta é a chave de toda a nossa ciência. Então é isso, lá está.

Na sequência, o velho juiz ergueu e moveu as duas mãos como se esticasse uma linha no ar e disse para a jovem juíza:“— Uma sentença inscrita em prótons e elétrons. A física pura, uma instância expurgada até a última partícula. O poder por excelência…”. E paro por aqui. Dizer mais para quê? Como se diz na psicanálise, por vezes, nos faltam palavras. E como repito há tanto tempo, “palavra é pá-que-lavra…”.

Não sou, pois, pós-moderno (sem que saiba bem o que isso quer dizer). Sou lá do meio do mato. Onde o mato não tem fecho. Como um jurista germânico, inglês ou norte-americano, quero manusear processos… de papel! Sim, como os alemães e outros povos. Sou, definitivamente, uma traça. Sim, um “jurista-traça”. Pronto. Achei o epíteto. E o fecho da Coluna. 

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