Consultor Jurídico > Entrevista: Luis Felipe Salomão, ministro do STJ
Mediação e arbitragem

"Judiciário precisa ser realmente o último recurso da cidadania"

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21 de junho de 2015, 9h30

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Quem acompanha o Superior Tribunal de Justiça há mais de cinco anos percebe que o tribunal vem mudando. Deixou de agir apenas reativamente e passou a cuidar dos próprios problemas, principalmente por meio de soluções "caseiras". Um dos representantes desse recente movimento é o ministro Luis Felipe Salomão.

No tribunal desde 2008, o ministro reúne características paradoxais: é dos mais jovens da corte, mas um dos mais experientes. Faz parte de uma composição considerada antiga, mas também integra uma geração de ministros preocupados com medidas administrativas de gestão. Não por acaso é dos ministros que mais afeta recursos como representativos de controvérsia — ou como repetitivos. Também é dos principais formadores de jurisprudência da 2ª Seção do STJ, a que trata de matérias de Direito Privado.

E não só, mas principalmente por conta dessas qualidades é que Salomão foi o presidente da comissão de juristas que escreveu a reforma de Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996) e o anteprojeto do primeiro Marco Legal da Mediação do Brasil. São duas formas de trazer ao país, ao mesmo tempo, agilidade e segurança jurídica.

No primeiro caso, foi “uma façanha” seguida por um balde de água fria. O Congresso Nacional aprovou o projeto tal qual o recebeu da comissão de juristas. Só que a Presidência da República vetou dois avanços importantes para a arbitragem brasileira: a possibilidade de juízo arbitral para relações de consumo ligadas a contratos de adesão e para causas trabalhistas. Em ambas as situações, teria de ser provocada pela parte em tese hipossuficiente.

Mas o ministro garante que há motivos para comemorar. “Os avanços foram muitos. A arbitragem sai fortalecida como uma solução extrajudicial importante. E neste momento de retomada da economia, de fluxo de contratos mais intensos, a arbitragem tende a ser, com esse novo mecanismo legal, muito mais explorada e a crescer com bastante segurança no Brasil.”

Já no caso da mediação, o ministro elogia o trabalho do Congresso. Os parlamentares tiveram de trabalhar com três projetos ao mesmo tempo: um de autoria do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), que tratava da mediação extrajudicial e muito timidamente da mediação judicial; um do Ministério da Justiça, que falava só de mediação judicial; e um da comissão de juristas, que era voltado para a mediação extrajudicial.

Os méritos, segundo Salomão, são do senador Vital do Rêgo (PMDB-PB) e do deputado Sergio Zveiter (PSD-RJ). O primeiro condensou os três textos e o segundo os adequou ao novo Código de Processo Civil, que acabara de ser aprovado quando o projeto sobre mediação chegou à Câmara dos Deputados.

Mas se a mediação é a promessa de desafogar o Judiciário, ela ainda deve percorrer um longo caminho e enfrentar velhos dogmas. Cerca de 40% dos 100 milhões de processos em trâmite no país são de autoria do Poder Público. E a imensa maioria deles é de execuções fiscais. Não podem ser resolvidos por mediação, portanto.    

“Esse é um ponto de interrogação”, reconhece Salomão. “Vamos precisar desafiar a aplicação da lei”, afirma, para arrematar: “O que eu estou querendo dizer é que para a aplicação da lei, o céu é o limite”.

Nesta segunda-feira (22/6), o ministro participa do lançamento do livro "Arbitragem e Mediação", do qual é coordenador, com o advogado Caio Rocha, na sede da Associação dos Advogados de São Paulo. Com os demais autores do anteprojeto recentemente aprovado pelo Congresso, Salomão dará palestra a partir das 19h seguida de sessão de autógrafos.

Leia a entrevista:

ConJur — A primeira coisa que chamou atenção nas mudanças na Lei de Arbitragem foram os vetos. O que o senhor achou disso?
Ministro Luís Felipe Salomão —
Foi bastante curioso. Fizemos centenas de audiências públicas no âmbito da Comissão de Juristas e depois dezenas de audiências públicas tanto no Senado quanto na Câmara. Foi um projeto que saiu e voltou íntegro, o que foi quase uma façanha. Ele saiu da Comissão de Juristas, passou pelo Senado, passou pela Câmara, voltou para o Senado e ficou íntegro. Ninguém da ala dos consumidores apareceu para dizer que não concordava, ninguém da área trabalhista disse que não concordava. Foram ouvidos centenas de depoimentos, ninguém discordou daquela fórmula.

ConJur — Institutos disseram que a arbitragem em relações de consumo iria colocar os consumidores em situação de fragilidade.
Luís Felipe Salomão —
Mas tinha que ser por provocação do próprio consumidor. A sistemática que propusemos não estabelece a arbitragem para todos os contratos de consumo. A arbitragem já pode ser utilizada para consumo, a nova lei tratava dos contratos por adesão, colocando a cláusula em negrito, com destaque, e deixando ao critério do consumidor provocar arbitragem quando ela fosse necessária para ele. E uma vez instalado o juízo arbitral, ele dizer se concorda ou não. O consumidor não poderia dizer previamente que não concorda. Ele seria intimado no momento da instalação para dizer, só nesse momento, se quer ou não.

ConJur — E qual era a reclamação?
Luís Felipe Salomão —
Diziam que se poderia afastar o Código de Defesa do Consumidor. Mas isso é um absurdo, evidentemente ninguém pode afastar o CDC. Aí, sim, se colocaria o consumidor numa posição de inferioridade. Mas seria uma arbitragem nula, e a sentença que se procedesse dessa forma seria anulada pelo Judiciário.

ConJur — Na parte trabalhista, o veto veio do próprio governo, não foi?
Luís Felipe Salomão —
Veio do Ministério do Trabalho, que até então nunca tinha aparecido para dizer nada. A única questão que se dizia era: "Não tem lei que autorize a arbitragem nos contratos individuais". Ora, se você estabelece na lei, passa a superar esses problemas. E ainda se tomou o cuidado de, nos contratos individuais, só valer a arbitragem para cargos de alta hierarquia dentro da empresa, como um CEO, ou alguém que seja um diretor importante. Para o CEO, evidentemente a arbitragem pode ser interessante. Ele não vai estar em nível de inferioridade na hora que celebrar o seu contrato de trabalho.

ConJur — Nas razões de veto, apontou-se que a lei poderia criar duas categorias de trabalhador.
Luís Felipe Salomão —
É, do ponto de vista jurídico, é bastante contestável. Eu acho que os fundamentos são menos de ordem jurídica e mais de ordem política. Talvez neste momento, politicamente, não seja interessante encaminhar essa questão.

ConJur — E seria também por provocação do trabalhador, não é?
Luís Felipe Salomão —
 Teria o mesmo sistema de gatilho. Mas ainda aguardamos serenamente a posição do Congresso quanto aos vetos. Claro que há certa frustração com esses dois vetos, mas acredito que temos muitos motivos para comemorar. Os avanços foram muitos. A arbitragem sai fortalecida como uma solução extrajudicial importante. E neste momento de retomada da economia, de fluxo de contratos mais intensos, a arbitragem tende a ser, com esse novo mecanismo legal, muito mais explorada e a crescer com bastante segurança no Brasil.

ConJur — Como ficou aquela questão de medida cautelar para garantir a arbitragem?
Luís Felipe Salomão —
É o Judiciário conceder uma medida cautelar para garantir que a arbitragem seja instalada. Ficou definido assim, também na lei, porque não se sabia exatamente em que momento cessava a competência do Judiciário quando havia o compromisso arbitral. Agora, uma vez instalada a arbitragem, a competência é passada ao árbitro. O árbitro que consegue a cautelar cessa efetivamente a competência do Judiciário.

ConJur — Outra grande discussão é sobre a divulgação da jurisprudência arbitral, ou das teses ali definidas.
Luís Felipe Salomão —
A arbitragem é confidencial. Esse é um ponto interessante, de como é feita a divulgação das decisões. Tem que respeitar a confidencialidade, mas a tese, o extrato da tese jurídica, pode muito bem ser compilado pelas câmaras arbitrais. Algumas já fazem isso por meio de compilações, resguardando o sigilo de quem participou, mas a tese jurídica é possível de ser exposta. Mas nisso a lei não mexe.

ConJur — Cada câmara resolve como faz?
Luís Felipe Salomão —
Isso, cada câmara se autorregula. Outro ponto importante que a lei tratou foi acabar com a obrigatoriedade de o árbitro estar cadastrado numa lista da câmara, desde que cada uma se responsabilize pelo árbitro. Foi um avanço. A nova lei segue o mesmo padrão da lei anterior, de não engessar. Quanto mais livre a lei deixar, melhor a arbitragem.

ConJur — E a Lei de Mediação, como foi feita?
Luís Felipe Salomão —
A opção da Comissão de Juristas foi fazer um projeto de lei que trouxesse um marco legal da mediação extrajudicial. Já havia no Senado, aguardando debate, parado há dois anos, um projeto de lei do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), que também tratava da mediação extrajudicial, mas já avançava um pouco na mediação judicial. Também já havia no Ministério da Justiça um projeto, desenvolvido por uma comissão coordenada pelo Flavio Caetano, secretário da Reforma do Judiciário. E eles apresentaram um projeto sobre mediação judicial.

ConJur — Tudo isso ao mesmo tempo?
Luís Felipe Salomão —
Concomitante ao nosso trabalho na comissão de juristas. Aí o relator da matéria, que foi o senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), juntou os três projetos, pegou o que tinha de melhor em cada um, e formou um único projeto tratando tanto da mediação judicial quanto da extrajudicial. O Senado aprovou e foi para a Câmara, onde o relator foi o deputado Sérgio Zveiter (PSD-RJ).

ConJur — Lá foi mantido o que saiu do Senado?
Luís Felipe Salomão —
O Sergio Zveiter manteve essa parte extrajudicial como nós propúnhamos, com pequenas alterações, e pegou a parte judicial, que veio do Senado e atualizou conforme o novo Código de Processo Civil.  Então ele unificou ainda mais. Por isso é uma lei moderna, é o primeiro marco legal que cuida da matéria no Brasil

ConJur — O que o senhor destaca de positivo na lei?
Luís Felipe Salomão —
Destaco alguns pontos. O primeiro deles é a mudança, ou a tentativa de mudança, da cultura. Sem esse eixo nada vai funcionar. Quando estabelecemos um incremento, a mediação como solução extrajudicial, estamos dizendo que ela é importante como alternativa à jurisdição. Mudar a cultura do litígio judicial para uma cultura da solução extrajudicial de autocomposição é muitíssimo importante. Talvez o mais importante dos desafios da lei: sair da cultura litigante para a cultura de composição. Quais foram os pontos da lei mais importantes? O primeiro: toda a causa que admite transação pode ser submetida à mediação, sem limites.

ConJur — A mediação é apontada como uma solução para o assoberbamento do Judiciário, mas o principal litigante do país é o poder público, e o maior litígio do poder público é execução fiscal. Como resolver? Dá pra fazer mediação com execução fiscal?
Luís Felipe Salomão —
Esse é um ponto de interrogação. Vamos precisar desafiar a aplicação da lei. Embora seja uma questão tributária e o tributo esteja fora, em linha de princípio, porque tributo pressupõe lei a fixá-lo, se a gente entender o processo de mediação como um processo no sentido mais amplo é possível, sim, o próprio poder público estabelecer câmaras de mediação. O que eu estou querendo dizer é que para a aplicação da lei, o céu é o limite.

ConJur — Como assim?
Luís Felipe Salomão —
Porque você pode ter centros de mediação e arbitragem nas câmaras municipais, nos governos de estado, nos Procons, dentro do Judiciário, já existem hoje os Cejuscs. Então, é tudo uma questão de aplicação da lei posterior, mudança da mentalidade. Vai ter esse ponto de interrogação na questão dos executivos fiscais? Vai, mas é um ponto que vai desafiar uma decisão judicial, uma interpretação mais efetiva. Depende da própria vontade política do poder público, da regulamentação da lei, isso tudo pode ampliar o seu escopo.

ConJur — Então isso ainda depende de passar pela jurisprudência de qualquer jeito?
Luís Felipe Salomão —
Nesse tópico, sim. O executivo fiscal é um tema a ser construído. Agora, a aplicação da lei carrega uma enorme carga de racionalidade para as demandas judiciais porque a perspectiva de desafogar o Judiciário com ela é muito grande. Pode-se estabelecer a mediação online.

ConJur — Uma crítica ao discurso do desafogamento do Judiciário é que, ao falar isso, o poder público está jogando no jurisdicionado a culpa pela morosidade da Justiça. O discurso faz sentido?
Luís Felipe Salomão —
Essa questão obedece a um movimento pendular. Houve uma grande inserção de direitos da cidadania na Constituição de 1988. Saímos de um período autoritário com uma Constituição cidadã. Anos de obscurantismo resultaram numa Constituição na qual se enumeram direitos. É diferente da Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, que só tratou de cláusulas genéricas, praticamente de organização do Estado, há uns 200 anos. Aqui, não. Tivemos um período autoritário, alguns períodos autoritários, e a Constituição de 1988 precisou ser enumerativa de direitos. E por isso é que essa afirmação da cidadania se deu por intermédio do Judiciário e o cidadão começou a buscar os seus direitos por meio do Judiciário. Antes da Constituição o chavão era "Vai procurar os seus direitos", era o que mais se ouvia. Depois, com a criação de todo o arcabouço que a Constituição exigiu, com a defesa do consumidor, juizados especiais, o que mais se escuta é “vou te processar!” Então, é uma guinada, um movimento pendular.

ConJur — O Judiciário virou válvula de escape.
Luís Felipe Salomão —
O Judiciário assumiu um protagonismo que a Constituição deu a ele de afirmar a cidadania, virou um conduto de cidadania. É bom por um lado, mas qual é o reverso dessa medalha? Era um Judiciário acostumado a lidar com uma quantidade pequena de causas sem estar preparado para essa explosão de direitos, sem ter mecanismos para lidar com essa explosão. Portanto, acredito que estamos caminhando para um meio termo.

ConJur — No sentido de se parar de procurar o Judiciário?
Luís Felipe Salomão —
O Judiciário é um poder vital da República? Claro que é! Ê evidente. Eu sou um integrante do Poder Judiciário, juiz de carreira. É difícil achar alguém que acredite mais do que eu na importância do Judiciário para a realização da cidadania. Mas o Judiciário tem que ser acionado de maneira racional. Precisa ser realmente o último recurso da cidadania, mas com soluções extrajudiciais eficientes para o cidadão. São outras portas que ele pode bater sem congestionar aquele conduto, que é um conduto muitíssimo relevante para. E nós estamos caminhando para isso. Respondendo à pergunta inicial: só as soluções extrajudiciais? Não. Claro que não. O Judiciário tem que se autogerir com eficiência. Não aprendemos a lidar com essa explosão de demandas, mas agora temos ferramentas e técnicas de gestão. Agora, com o Marco Regulatório da Mediação, temos de fazer valer a lei.

ConJur — Para uma empresa, tudo é custo. Se financeiramente vale mais a pena manter um processo na Justiça, essa ação é mantida. Se for mais barato fazer acordo, o acordo é feito. Mas como fazer para a mediação valer a pena para uma grande empresa?
Luís Felipe Salomão —
O empresário, mais do que ninguém, faz conta. E como ele vai botar um custo na mediação? Simples. A mediação extrajudicial vai abrir um novo mercado profissional. Vamos ter cada vez mais escritórios de advogados, de profissionais da área especializados em mediação. No frigir dos ovos, lá na frente, vai acontecer o que aconteceu com a arbitragem. No começo foram centenas de câmaras, algumas muito fracas, muito ruins, e só sobraram as que realmente são sérias, que realmente funcionam. Com a mediação vai ser a mesma coisa. Se esse mercado funcionar bem, os bancos vão levar para lá as questões bancárias, o consumidor vai se submeter à mediação que resolve rápido o problema dele, as concessionárias de serviço público, de telefonia etc. E aí ele vai preferir ir para a mediação, que resolve os problemas de maneira mais rápida e mais barata. Portanto, o empresário vai calcular: se for eficiente, se funcionar bem, se tivermos mediadores adequadamente preparados, se a mediação online for adequada, se ela estiver funcionando bem, claro que o custo é menor.

ConJur — Porque parece que os três maiores gargalos, as questões fiscais, bancárias e de telefonia, não vão ser resolvidos de maneira simples, já que a lei não pode resolver.
Luís Felipe Salomão —
Mas se a lei for bem aplicada, ela vai funcionar para esses três pontos de maneira prévia. Ou seja, vai impedir o entupimento da máquina por meio de uma atuação eficiente dos mediadores. Se houver mudança cultural, se nós nos prepararmos adequadamente para a aplicação da lei, com centros de formação, centros de treinamento, mediadores capacitados, centros sérios, vai ampliar o mercado de trabalho para todo mundo e vai ter um funcionamento adequado para a sociedade. Volto a dizer, tudo depende da forma como se aplicar o marco legal.

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Lentidão sem razão

Estado pode ser condenado por demora da Justiça

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1 de março de 2009, 6h25

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Itália, Portugal, Espanha e França já sofreram condenações no âmbito da União Européia por não cumprirem o princípio da razoável duração do processo, que vige no bloco europeu. Para o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, se o atual quadro no Brasil não mudar, chegará o momento em que o Estado brasileiro também será chamado a responder pela demora injustificável no desfecho das causas. E sofrerá condenações.

“Porém, mais importante do que mudar a lei, é mudar a mentalidade, a cultura do operador do Direito. A nossa mentalidade é a do litígio arrastado”, afirmou Salomão em entrevista à revista Consultor Jurídico, concedida em seu gabinete no STJ. Apesar dos mais de 18 anos de magistratura, a chegada desse juiz de carreira ao STJ em junho do ano passado foi uma experiência que misturou alegria com assombro. “Confesso que tive um grande susto quando vi carrinhos e mais carrinhos de processos chegando ao gabinete”.

O ministro é entusiasta da Lei de Recursos Repetitivos, mas acredita que é preciso criar ainda outros filtros processuais para otimizar o fluxo de processos e fazer com que juízes de todas as instâncias deixem de perder tempo julgando a mesma matéria centenas ou milhares de vezes, em diferentes processos. “São sempre poucas demandas que estrangulam a distribuição. Não vejo motivo para não ser colocada à disposição do STJ a repercussão geral, que vem sendo aplicada no Supremo com bastante eficiência”, defende.

Luis Felipe Salomão, desde a posse, assumiu uma vaga na Seção de Direito Privado, área na qual trabalhou por quase toda a carreira e se especializou. Foi titular de vara cível e também empresarial no Rio de Janeiro antes de se tornar desembargador, em 2004. A intimidade com a matéria fez com que o ministro já se destacasse e começasse a puxar votos.

Um caso que relatou fez o tribunal garantir mais uma vez a efetividade da Lei de Falências e Recuperações Judiciais. Além de reforçar o princípio de que todos os atos em relação ao patrimônio da empresa devem ser tomados pelo juízo universal da recuperação, o STJ entendeu que o prazo de 180 dias para que não haja execuções de dívidas pode ser prorrogado se o plano de recuperação estiver em pleno curso.

A entrevista com o ministro foi marcada para fazer seu perfil para o Anuário da Justiça 2009, que será lançado em maio. Na conversa, Salomão se mostrou crítico em relação à forma atual de seleção dos juízes e falou sobre a angústia de ver seu trabalho diluído na montanha de processos. Mas se mostrou esperançoso: “A curva é ascendente. O Judiciário só tem melhorado desde que se tornou independente”.

Leia a entrevista

ConJur — O que muda na vida de um juiz que deixa um tribunal estadual para compor o Superior Tribunal de Justiça?
Luis Felipe Salomão — Muda completamente o foco. A visão da jurisdição a partir do STJ é ampliada e a missão, mais do que fazer Justiça, é uniformizar a interpretação sobre a legislação infraconstitucional para garantir segurança jurídica. Aqui a estrutura de trabalho também é melhor. Há um corpo de servidores bastante qualificado, mas me preocupou o volume fenomenal de processos. Confesso que tive um grande susto quando vi carrinhos e mais carrinhos de processos chegando ao gabinete.

ConJur — A Lei de Recursos Repetitivos não mudou a situação?
Salomão — Mudou. Pouco depois de eu tomar posse, a lei entrou em vigor, o que trouxe alento. Em junho de 2008, a distribuição mensal era de 1,4 mil a 1,6 mil processos. Era isso que eu recebia no gabinete. Hoje, a distribuição é de cerca de 500 processos por mês.

ConJur — E a lei está em vigor há apenas sete meses, certo?
Salomão — Sim. Numericamente, neste curto período, a redução foi substancial. Não se pode atribuir esse resultado só à lei, mas à soma do novo rito processual com a gestão do tribunal. O ministro Cesar Asfor Rocha [presidente do STJ] vem imprimindo um modelo de administração que busca, de fato, a eficiência. A presidência vem controlando a distribuição e impedindo que subam os recursos repetitivos, o que aperfeiçoa o fluxo de processos. Além disso, há a intenção de digitalizar todos os recursos, o que certamente vai otimizar os trabalhos. O que já foi feito trouxe resultados positivos, mas ainda é preocupante o volume de processos.

ConJur — Apesar dessas medidas, o senhor considera que ainda é necessária a adoção de outros filtros processuais, como a Súmula Impeditiva de Recursos?
Salomão — Sem mecanismos de filtro, o tribunal tende a se estrangular. O fato de a distribuição ter chegado a 1,6 mil processos por mês por ministro, no âmbito do Direito Privado, é um sinal de estrangulamento. Se continuasse com essa linha ascendente, o trabalho ficaria muito difícil. O filtro da Súmula Impeditiva é positivo. Não se sabe por qual razão a Súmula Impeditiva saiu do texto da Reforma do Judiciário em relação ao Superior Tribunal de Justiça. Outro filtro que eu não vejo motivo para não ser colocado à disposição do STJ é a repercussão geral, que vem sendo aplicada no Supremo Tribunal Federal com bastante eficiência. Para os mesmos problemas, aplicaram-se dois remédios diferentes. No Supremo, o remédio é mais eficaz.

ConJur — Até porque, como a decisão tomada em recursos repetitivos não é vinculante, os bons resultados da lei dependem da boa vontade dos tribunais de segunda instância, certo?
Salomão — É a questão da mentalidade. Não são suficientes boas leis. É preciso ter consciência de que não adianta discutir as mesmas questões indefinidamente. O excesso de recursos sobre causas já decididas é ruim para todos: a primeira instância, que é um “rito de passagem”; o tribunal de segunda instância, que não tem sua decisão valorizada; o STJ, que ficará sempre abarrotado de processos. São sempre poucas demandas que estrangulam a distribuição. No meu gabinete, por exemplo, praticamente 40% do acervo era relativo a contratos de assinantes da Brasil Telecom e de disputas em torno de contratos bancários oriundas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

ConJur — Um instrumento com efeito vinculante resolveria o problema?
Salomão — Sim. Nas questões que dizem respeito ao consumidor, uma boa solução seria a ampliação do uso da ação coletiva, que é muito mal empregada no nosso país. Não existe uma só saída. São vários mecanismos que, empregados em conjunto, podem ter um resultado satisfatório. Mas, sempre e sempre, a questão principal é a da gestão para uma administração judiciária eficaz, além da mudança de mentalidade do operador do Direito, no sentido de resolver problemas e não apenas litigar e litigar.

ConJur — Diante desse quadro, quais são as suas perspectivas para 2009?
Salomão — O balanço é positivo. Olhando o que foi feito até agora, é possível descortinar um futuro melhor. Minha expectativa é a de que a aplicação mais ampla da lei dos repetitivos e dos novos instrumentos de gestão do tribunal nos permitirá aperfeiçoar o trabalho. Isso é importante porque uma das maiores aflições de um juiz de carreira, como eu sou, é ter a sensação de que o trabalho não rende, de que seu esforço não se traduz em segurança jurídica.

ConJur — O que o juiz pode fazer para atacar essa demanda, sem esperar soluções coletivas?
Salomão — Desde que tomei posse, estou fazendo um esforço inicial para julgar todos os processos que subiram ao STJ até o ano de 2005 e que estavam no meu acervo. Havia recursos que chegaram aqui em 1996, 1997. Imagine o tempo que levaram tramitando em primeira e segunda instâncias! Eu consegui julgar todos do século passado. Agora, estou entrando nos recursos que chegaram aqui em 2001.

ConJur — O senhor já se viu na situação de ter de explicar para uma parte por que o recurso dela leva mais de dez anos para ser julgado?
Salomão — Não. Como atuo há mais de cinco anos em julgamentos colegiados, não tenho tanto contato direto com as partes. Mas eu vivo no mundo, não fora dele. Então, apesar de não ter esse contato direto, conheço as reclamações e críticas de partes, da sociedade e da imprensa em relação à Justiça. O juiz precisa de um tempo para resolver o processo, para maturar a questão, meditar, colher prova. Mas, claro, esse tempo não precisa ser tão longo assim. Por outro lado, a culpa não pode ser atribuída simplesmente ao juiz. Qualquer ser humano tem uma capacidade para trabalhar e os juízes brasileiros são alguns dos que mais julgam no mundo.

ConJur — O Estado pode ser responsável pela demora?
Salomão — Vai chegar o momento em que a demora ensejará a responsabilidade do Estado. Isso já acontece em vários países da Europa. A Itália, por exemplo, é seguidamente condenada por desrespeito a esse princípio junto à Comunidade Européia. Portugal, Espanha e França já foram condenadas. Porém, mais importante do que mudar a lei, é preciso mudar a mentalidade, a cultura do operador do Direito. A nossa mentalidade é a do litígio arrastado.

ConJur — O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de onde o senhor veio, é apontado como exemplo de celeridade no julgamento. Qual é a receita?
Salomão — Sucessivas gestões que primaram pela eficiência, pela aplicação maciça de recursos em informática, em administração judiciária, em instalações adequadas e em juizados especiais. É como eu disse antes: não é uma solução só. Quando se busca a celeridade, é preciso não perder de vista que rapidez, às vezes, sacrifica um pouco a qualidade.

ConJur — É possível ter uma Justiça célere com qualidade?
Salomão — A equação é das mais difíceis, mas claro que é possível. São necessários bons instrumentos processuais, leis de qualidade, gestão eficiente. Mas precisamos ter, também, juízes preparados para decidir bem e com rapidez. E aí temos a questão da formação e seleção dos juízes. O atual modelo de concurso público para a magistratura apresenta sinais de cansaço. Está desgastado.

ConJur — Por quê?
Salomão — Porque estamos selecionando juízes que, tecnicamente, são os mais preparados, mas não necessariamente os mais vocacionados. É preciso reformular o processo de ingresso na magistratura. Na Europa continental, por exemplo, o candidato, primeiro, vai para a escola da magistratura, onde é treinado, preparado e avaliado para saber se tem ou não condições de tomar posse efetiva no cargo de juiz. No Brasil, em regra, acontece o contrário. O juiz entra, é atirado à jurisdição e, depois, avaliado. É preciso buscar os mais vocacionados, os que detêm equilíbrio emocional para julgar.

ConJur — O teste de conhecimento técnico reprova 99% dos candidatos, mas todos passam no estágio probatório, onde se avalia a vocação…
Salomão — Há uma deturpação. É possível mudar isso com a atuação firme das escolas de magistratura. Há muito para fazer, mas é importante ressaltar que a curva é ascendente. O Judiciário só tem melhorado desde que se tornou independente. Por exemplo, não há julgamento no mundo tão transparente como o da Justiça brasileira. Na maioria dos países, os julgamentos são secretos. Os juízes discutem, deliberam e depois apresentam só o resultado.

ConJur — O Judiciário não se preparou para dar conta da demanda criada com a abertura de acesso à Justiça que veio com a Constituição de 1988?
Salomão — Esse não é um fenômeno típico brasileiro. Aqui há a questão da redemocratização. Vivemos um período autoritário e, repentinamente, após a Constituição de 1988, saltamos para um período de ampla abertura. Nossa democracia é muito recente e estamos aprendendo a conviver com um Judiciário forte, independente, que é, na verdade, a salvaguarda da própria democracia. Se observarmos as curvas de distribuição de processos, o volume cresce, sim, a partir da Constituição cidadã. Mas o fenômeno também é mundial. Saímos de uma concepção absolutamente individualista do começo do século passado para uma concepção plural, em um mundo globalizado, no final do século. O mundo mudou, os direitos passaram a ser mais exigidos e mais respeitados, os Códigos Civis foram modificados, mudou a legislação de recuperação de empresas, tudo isso em curtíssimo espaço de tempo. Lidar com as demandas de uma sociedade de massa talvez seja a maior dificuldade do Judiciário moderno, justamente por nossa formação jurídica, centrada no litígio individual. O juiz é chamado pela sociedade para assumir o papel de provedor do rol de direitos estabelecidos nas leis e na Constituição (como exemplo, a questão do fornecimento de remédios). Cada vez mais, o Poder Judiciário busca a sua verdadeira identidade.

ConJur — O caso que o senhor relatou há pouco tempo sobre a Lei de Falências e Recuperação Judicial  mostra um pouco isso, não? Pelo fato de a Justiça do Trabalho querer executar as dívidas fora do plano de recuperação judicial…
Salomão — Era uma questão lateral, mas importante. Decidiu-se que o prazo de 180 dias que a lei prevê para suspender as execuções contra a empresa em recuperação pode ser estendido, desde que haja plano de recuperação em curso. O tribunal reforçou que todas as decisões em relação ao patrimônio da empresa devem ser tomadas pelo juízo universal da recuperação. A Justiça deve observar a função social da empresa e garantir os meios para que ela possa reerguer e manter os empregos que gera. A tentativa de recuperar a empresa deve prevalecer sobre o pagamento imediato de créditos trabalhistas. O valor que prepondera é o da preservação da empresa, até mesmo para, depois, se levantarem recursos para o pagamento dos empregados.

ConJur — Quais outras decisões relatadas pelo senhor até agora podem ser vistas como inovadoras sob a perspectiva da jurisprudência?
Salomão — A decisão de que as uniões homoafetivas devem ser julgadas sob a ótica do Direito de Família, por exemplo. Considerou-se possível analisar o pedido de reconhecimento da relação equiparado à união estável. A impossibilidade jurídica de um pedido só ocorre quando há expressa proibição legal. Neste caso, não existe nenhuma vedação para que prossiga uma demanda que busca o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.

ConJur — Há outras decisões?
Salomão — Decidimos também que basta o atraso injustificado no pagamento da indenização securitária para que a seguradora tenha de pagar danos morais e lucros cessantes. Outro importante julgamento é o que garantiu à mulher a metade da indenização trabalhista recebida pelo ex-cônjuge. Eu ainda acrescentaria a decisão que conferiu legitimidade ao Idec [Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor] para propor, em nome dos associados, ação para obter descontos em mensalidades escolares.

ConJur — Como o senhor identifica os casos relevantes no meio da massa de processos?
Salomão — É complicado. Eu uso uma planilha com os principais temas que se repetem para identificar aqueles que podem ser julgados pelo rito dos recursos repetitivos. Foi assim que selecionei quatro recursos para resolver nove temas relativos ao Sistema Financeiro da Habitação. Mas atacar o volume de processos não é tarefa fácil. Assim que assumi a cadeira de ministro, recebi 13 mil processos. Já consegui reduzir para pouco mais de 9 mil o acervo, mesmo com a distribuição mensal regular. É muito difícil identificar, com um acervo desses, quais são as questões relevantes.

ConJur — De que maneira o senhor trabalhou com esses milhares de processos?
Salomão — Tomei posse em junho e aproveitei o mês de julho (recesso) para fazer uma grande triagem. Primeiro, verifiquei quais processos tinham problemas de admissibilidade. A partir daí, foi possível dimensionar o tamanho do acervo real. Mas, em seguida, voltou a distribuição normal, sem contar que, das decisões, vêm embargos, agravos, recursos internos. Isso não entra na conta desse volume. Então, é quase impossível ter o controle de todos os processos, mas nos organizamos de forma a ter o melhor controle que conseguimos.

ConJur — Como?
Salomão — No gabinete, há sempre um responsável por controlar a entrada e a saída de processos e os organiza por temas. Aí temos o controle do fluxo e é possível identificar questões novas.

ConJur — O senhor estabeleceu metas?
Salomão — O que eu e minha equipe fizemos foi priorizar o julgamento de todos os processos mais antigos, seja os de pauta, seja os agravos regimentais ou embargos de declaração. Esse trabalho está sendo bem feito. Zeramos os processos que entraram no tribunal até o ano de 2000 e estamos analisando os de 2001. Nossa meta é reduzir progressivamente o acervo. O atendimento aos advogados para pedidos de preferências também é importante. O ministro acaba identificando algumas questões novas ou relevantes a partir dos memoriais. Atendo todos os advogados às segundas e sextas-feiras, das 14h às 18h horas, sem necessidade de prévia agenda de audiência.

ConJur — O senhor considera que o quinto constitucional ainda é uma fórmula válida de oxigenação dos tribunais?
Salomão — Sim, considero. Sei que essa não é a posição institucional, associativa. As associações de magistrados combatem o quinto, mas a minha experiência é boa em relação ao quinto constitucional. Na prática, ele funciona como um mecanismo de oxigenação do julgamento colegiado. Talvez pelo fato de a minha carreira ser toda na magistratura, sempre vi nos colegas do quinto pessoas que trouxeram visões diferentes, o que ajuda na formação de uma boa decisão. O problema não está, segundo penso, no instituto, mas na forma como o quinto vem sendo desnaturado. Há falta de critério na escolha, baixa sensibilidade em identificar potenciais candidatos que sejam realmente vocacionados, que tenham aptidão para a magistratura. A fórmula, em si, é boa, mas o mecanismo de escolha está inadequado.

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