Contas à Vista

Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

26 de fevereiro de 2013, 8h00

Spacca
O Orçamento é o locus adequado para a realização das escolhas trágicas públicas, também chamadas de escolhas políticas[1]. É no espaço democrático do Parlamento que devem ser realizadas as opções políticas referentes às receitas e aos gastos públicos que determinam o caminho escolhido pela sociedade para a realização de seus ideais. Mesmo aqueles que têm de ser construídos dia a dia — ninguém dorme em uma ditadura e acorda em uma “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, CF) no dia seguinte — embora exista quem entenda ser possível fazer efetivas mudanças sociais a golpes de caneta.

Considerando que a receita pública advém em sua maior parte das receitas tributárias, e que esta arrecadação no Brasil atual gira entre 35% e 36% do PIB, os olhos da sociedade devem se voltar mais do que nunca para o gasto público, para as escolhas que devem ser democraticamente feitas no Congresso em prol da sociedade — e que, em tese, são feitas pela própria sociedade.

É o Poder Legislativo que detém a chave do cofre público para a realização dos gastos. E é a ele que a sociedade confere poderes para a realização dessas escolhas trágicas. Se, no Brasil, os canais democráticos para a escolha e a deposição de nossos parlamentares estão parcialmente obstruídos, devemos ter redobrada atenção e concentrar nossos esforços para resolver este problema. O procedimento usual para as escolhas trágicas no Brasil contemporâneo é atribuí-las ao Judiciário a exemplo de diversas situações sobre o direito à saúde (o que é errado na maior parte dos casos), ou ainda, ao Executivo — cujo âmbito de atuação deve ser delimitado pelas grandes linhas estabelecidas no Parlamento.

Não existem direitos sem custos para sua efetivação[2]. Não se trata aqui apenas dos direitos sociais, mas de todo e qualquer direito, fundamental ou não. Pode-se imaginar que alguns direitos de liberdade, tais como o de ir e vir, o de liberdade de expressão ou de liberdade religiosa seriam direitos sem custos, mas um segundo olhar indicará ser falsa esta suposição, pois pelo menos é necessária a manutenção de um aparato institucional para sua defesa e manutenção. Mesmo o pregador religioso que sobe em um caixote e discursa no meio de uma praça pública requer um mínimo de custos para o Poder Público, ao necessitar de recursos para protegê-lo e para a habitabilidade (limpeza e manutenção mínimas) daquele logradouro.

Desta maneira, o sistema orçamentário brasileiro funciona como um funil para o planejamento, na medida em que estabelece o vínculo das disposições constitucionais aos ditames do cotidiano normativo, permitindo a vinculação financeira de uma espécie normativa às outras. De que adianta proclamar em alto e bom som o “direito à educação” se no orçamento os recursos para tal fim são restritos ou inexistentes? Ou, por outro lado, se os recursos são superestimados para um direito social e subestimados para outros? É na análise do sistema orçamentário que isso será percebido.

É no âmbito do processo de elaboração do Orçamento — que deveria ser de atuação privilegiada do Poder Legislativo — que se realizam as primeiras escolhas trágicas, mesmo com os recursos vinculados estabelecidos pelo “orçamento mínimo social”.

Os economistas possuem uma expressão bastante interessante, denominada “Limite do Orçamento”, que Amartya Sen, com sua perspicácia habitual, comenta como sendo “onipresente”, pois “o fato de que cada consumidor deva fazer suas escolhas não significa que não existam limites orçamentários, mas simplesmente que a escolha deve ser feita internamente ao limite orçamentário ao qual cada indivíduo deve adequar-se. Aquilo que vale para a economia elementar vale também para a decisão política e social de alta complexidade”[3].

Esta expressão foi trasladada para o Direito a partir de uma decisão proferida em 1972 pelo Tribunal Constitucional alemão[4], com o nome de “Reserva do Possível”. O significado é o mesmo: todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com exigências de harmonização econômica geral. Desta forma, ao decidir pela inconstitucionalidade da limitação de vagas imposta pela Universidade da Baviera, o Tribunal Constitucional Alemão entendeu que existe uma limitação fática, condicionada pela “reserva do possível, no sentido do que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade. Isso deve ser avaliado em primeira linha, pelo legislador, em sua própria responsabilidade. Ele deve atender, na administração de seu orçamento, também a outros interesses da coletividade, considerando as exigências da harmonização econômica geral”.

É importante observar que esta expressão vem sendo bastante maltratada pela jurisprudência brasileira, que a hostiliza de maneira praticamente unânime, tudo indica que em virtude de sua má-compreensão. Ela vem sendo entendida como se existisse um complô no seio da Administração Pública para esconder recursos públicos visando não cumprir as determinações judiciais e não implementar os direitos fundamentais sociais, sendo a “reserva do possível” uma tentativa de refúgio das ordens judiciais. Ingo Sarlet alerta em sentido correlato, com muita precisão para “o que tem sido, de fato, falaciosa, é a forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social”[5]. Ou seja, o uso genérico acaba por matar a expressão tornando-a apenas mais um argumento do manancial de fast food jurídico à disposição dos operadores para uso como bem aprouver, sem qualquer respeito à dogmática do Direito — procedimento metralhado diuturnamente por Lenio Streck em sua coluna nesta ConJur.

Infelizmente não é isso. “Reserva do possível” é um conceito econômico que decorre da constatação da existência da escassez dos recursos, públicos ou privados, em face da vastidão das necessidades humanas, sociais, coletivas ou individuais. Cada indivíduo, ao fazer suas escolhas e eleger suas prioridades, tem que levar em conta os limites financeiros de suas disponibilidades econômicas. O mesmo vale para as escolhas políticas que devem ser realizadas no seio do Estado pelos órgãos competentes para fazê-lo.

Neste sentido, o conceito de escolhas trágicas é aplicável tanto à impossibilidade econômica que cada um de nós tem para o atendimento de nossas necessidades particulares, como de toda a sociedade para atendimento de suas necessidades por parte dos cofres públicos — daí a utilização do conceito como escolhas políticas. Este conceito — “reserva do possível” — utilizado no âmbito do direito público nos insere no universo financeiro, da extensão das necessidades públicas em face da escassez de recursos. Serve em nosso cotidiano privado (quando ocorre o estouro do cartão de crédito ou quando o mês é maior que o salário) quanto no quotidiano público, nas escolhas trágico-políticas.

Observamos que não se deve confundir a “reserva do possível de caráter econômico”, mais próxima do conceito de “escassez”, com a “impossibilidade técnica”. Haverá impossibilidade técnica quando, por exemplo, um medicamento ainda estiver sendo produzido em caráter experimental — o que poderá ocasionar que indivíduos desejem adquiri-los, mas sua escala de produção ainda não chegou à etapa industrial, pois ainda se encontra em fase de testes. Haverá escassez quando a produção atinge o nível industrial, mas ainda é insuficiente para atender a todos os consumidores, como bem ensina José Reinaldo Lima Lopes[6].

O conceito de reserva do possível pública está casado com outro, muito caro aos direitos sociais, que é o da progressividade na concretização desses direitos. Os direitos prestacionais, tal como o direito à saúde, não são direitos que se disponibilizam integralmente de uma única vez. São direitos fornecidos progressivamente pelo Estado, de modo que, passo a passo, em um ritmo crescente, ele se torna cada vez mais concretizado — o que não ocorre com outros direitos, tal como o de maioridade, a qual se obtém de um dia para outro — literalmente. Os direitos sociais são direitos implementados à prestação, de forma progressiva.

Certamente estes conceitos merecem ser melhor analisados, em espaço mais amplo, seja no âmbito da receita, despesa, orçamento, crédito e tudo o mais que, de alguma, forma influa na jornada do homem sobre a terra, vivendo em sociedade — objeto final do estudo do Direito.


[1] Guido Calabresi e Philip Bobbit. Tragic Choices – The conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resources. Norton, New York, 1978.

[2] Stephen Holmes e Cass Sustein. The Cost of Rights – Why Liberty Depends on Taxes. New York, Norton, 2000.

[3] Identitá e Violenza, Roma, Laterza, 2006, páginas 7 e 8, tradução livre deste autor.

[4] BVERFGE 33, 303, de 18/07/1972, extraído da obra “Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão” (Montevidéu, Fundação Konrad Adenauer, 2005, págs. 656/667).

[5] A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 10ª edição revista, atualizada e ampliada. Porto Alegre, 2010, pág. 356

[6] Em torno da “reserva do possível”, In: Ingo Wolfgang Sarlet e Luciano Benetti Timm (orgs), Direitos Fundamentais – Orçamento e “Reserva do Possível”, 2ª ed. ampliada, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2010, pág. 162.

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