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Brasil padece da “hermenêutica do interesse”

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23 de fevereiro de 2013, 7h50

A interpretação constitucional brasileira padece do mal da “hermenêutica do interesse corporativo”. A opinião é do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Para ele, um dos grandes problemas do país é a interpretação coportativista da Constituição, em que cada um lê com o intuito de “proteger” as próprias prerrogativas.

O ministro falou nesta sexta-feira (22/2) durante audiência pública organizada pela Procuradoria Regional da República da 3ª Região em São Paulo para debater a advocacia pro bono, ou voluntária, no Brasil. O assunto não é regulamentado no Brasil, ao contrário do que acontece na maioria dos demais países. A Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo é a única que tem uma regra, a Resolução Pro Bono, que permite a prestação de serviços apenas para pessoas jurídicas sem fins lucrativos, integrantes do terceiro setor e “comprovadamente desprovidas de recursos financeiros”.

Gilmar Mendes evitou comentar especificamente a resolução da OAB paulista, por ela tratar de matéria que pode vir a ser questionada no Supremo. Mas apontou que o texto da entidade revela problemas mais profundos, inclusive de interpretação constitucional. “Se há um defeito na Constituição, justamente por conta da participação de diversos grupos na Assembleia Constituinte, é o da leitura interessada. O Brasil tem de romper com a mentalidade corporativa”, disse o ministro, arrancando aplausos da plateia, formada, em sua maioria, por estudantes de Direito.

Prerrogativas
A fala do ministro é baseada em dados. O levantamento Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, mostra que o Brasil hoje conta com cerca de 90 milhões de processos judiciais em andamento. Outro levantamento, do Instituto Pro Bono, que defende a liberação da advocacia voluntária no Brasil, estima, com base no Censo 2010, que o país tenha 90 milhões de potenciais beneficiários da advocacia gratuita. Ao mesmo tempo, o Brasil conta com 5,3 mil defensores públicos.

E aí entra o debate das prerrogativas. A Defensoria Pública, de acordo com a Constituição, existe para fazer a defesa judicial dos hipossuficientes. Mas, para o ministro Gilmar Mendes, isso não quer dizer que essa função seja excluvisa da Defensoria. “Hoje o Estado Social brasileiro, se é que se pode falar em um, se dá pelo Judiciário. Então como podemos falar que a prestação jurisdicional gratuita municipal fere prerrogativas da Defensoria Pública, que não existe? São cinco mil defensores! Não existe, na prática, acesso à Justiça”, reclama o ministro.

Foi o que mostrou Flávio Crocce Caetano, secretário da Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça. Também presente ao evento, trouxe, em sua fala, outros números. Ele calcula que hoje há praticamente um processo para cada dois brasileiros, mas a divisão não é assim. Mais da metade dessas ações judiciais foram ajuizadas por governos federal, estaduais ou municipais. Outros 38%, por bancos. Os outros 12% são divididos entre todos os demais setores.

“Estamos cronologicamente no Século XXI, mas é preciso que nossos corações e mentes também cheguem ao Século XXI. É preciso romper com os grilhões corporativos e pensar em outros modelos para estimular a advocacia voluntária, atividades que possam ser complementares à advocacia pública”, resumiu Gilmar Mendes.

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