Direito Comparado

Portugal pode ser inspiração em controle de dívidas

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

20 de fevereiro de 2013, 18h20

Na coluna da semana anterior (clique aqui para ler), examinou-se o tratamento jurídico dado ao superendividamento na França. Agora, interessa analisar o recente Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de outubro, do Governo da República Portuguesa, que instituiu diversas regras sobre o controle da inadimplência, a gestão do risco de crédito e as relações entre instituições financeiras e seus usuários, com o objetivo de controlar e permitir a saída do estado de “sobre-endividamento”, como se denomina essa situação em Portugal.[1] Antes desse decreto-lei, a Portaria nº 312/2009, de 30 de março, baixada pelo Ministério da Justiça português, criou mecanismos protetivos para os sobre-endividados: a) nas execuções, nas quais não houvessem sido encontrados bens penhoráveis, os executados sobre-endividados poderia retirar seus nomes do registro público de execuções, se aderissem a um “plano de pagamento elaborado por uma entidade específica e enquanto o estiverem a cumprir”; b) nos processos de execução, “submetidos a centros de arbitragem em que o executado seja uma pessoa em situação de sobre-endividamento”, possibilitar-se-ia a suspensão do processo por meio de acordo entre as partes, na hipótese de o executado “aderir a um plano de pagamentos elaborado por uma entidade específica e enquanto o estiver a cumprir”.[2]

Algumas das medidas previstas no Decreto-Lei nº 227/2012 são conhecidas dos brasileiros, que já experimentaram situações de crise do sistema financeiro nas décadas de 1980 e 1990, o que implicou uma significativa melhoria nos padrões regulatórios do setor. Além disso, o Ministério da Justiça e o Banco Central do Brasil, por meio de normas administrativas, introduziram regras de controle da atividade financeira que, em certa medida, anteciparam as formulações portuguesas.

O Decreto-Lei nº 227/2012 possui um objeto específico: um rol de espécies contratuais, conforme dispõe seu artigo 1o, destacando-se os “contratos de crédito para a aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria”; os contratos de crédito hipotecários; os contrato de crédito aos consumidores, regidos por legislação especial, exceto o “contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autônomo”; os contratos de crédito ao consumo, regidos também por normas específicas, “com exceção dos contratos em que uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de

uma coisa móvel de consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável nos termos do próprio contrato” e os “contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês”.

A lei portuguesa alude a “princípios gerais” (artigo 3o), conquanto mais se afeiçoem ao conceito de deveres das instituições de crédito e dos consumidores, assim resumíveis: a) as primeiras devem agir com “diligência e lealdade”, por meio da prevenção da inadimplência, e envidar os melhores esforços para retirar os devedores do estado de não cumprimento de suas obrigações; b) os clientes bancários devem “suas obrigações de crédito de forma responsável e, com observância do princípio da boa fé”, advertir antecipadamente o banco sobre o risco eventual de incumprimento e cooperar para o êxito de soluções extrajudiciais voltadas à extinção da dívida.

Nos artigos 5o a 7o do decreto-lei, há comandos no sentido de que a instituições financeiras devem: a) prevenir o risco de inadimplência; b) acompanhar a execução dos contratos; c) informar e alertar os consumidores, na fase pré-negocial, sobre os riscos do endividamento excessivo e relativamente aos procedimentos de regularização da inadimplência. As renegociações (rectius, novações) contratuais não podem dar margem à cobrança de comissões pelos bancos (art. 8o), exceto os custos cartorários e fiscais.

Nesse quadro normativo de prevenção e de informação da inadimplência, faz-se alusão a “indícios de degradação da capacidade financeira do cliente bancário para cumprir”, os quais, na definição legal, se caracterizam pelos seguintes elementos (artigo 9o): a) a existência de dívidas não pagas com restrito em cadastro creditício do Banco de Portugal (equivalente ao Banco Central do Brasil); b) “a devolução e inibição do uso de cheques e correspondente inserção na lista de utilizadores de cheque que oferecem risco”; c) a condição de devedor fiscal (tributário e previdenciário); d) o estado de insolvência; e) a resposta a processos judiciais; f) a penhora de contas bancárias; g) “a verificação de incumprimentos noutros contratos celebrados com a instituição de crédito”.

O modelo português de controle de risco de inadimplência é esforçado em dois pilares: o PARI (Plano de Ação para o Risco de Incumprimento) e o PERSI (Procedimento Extrajuducial de Regularização de Situações de Incumprimento).

O PARI é obrigatório para as instituições financeiras, no qual se descreverá “detalhadamente os procedimentos e as medidas adotados para o acompanhamento da execução dos contratos de crédito e a gestão de situações de risco de incumprimento” (artigo 11). Segundo a Exposição de Motivos do decreto-lei, o PARI serve para a detecção precoce dos já referidos “indícios de risco de incumprimento” e para o “acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações” contratualmente assumidas e, por último, para que sejam adotadas, da maneira mais célere possível, a medidas de prevenção ao incumprimento contratual.

O PERSI é extremamente complexo e possui diferentes fases, desde os “contactos preliminares”, que deverão ocorrer no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação não paga e que consistem no dever de informar o cliente bancário sobre o valor em débito e respectivos encargos. Nessa fase, o banco há de “apurar as razões subjacentes ao incumprimento registrado” (art. 13o).

Divide-se o PERSI em:

a) Fase inicial (artigo 14o). Se a dívida não for paga, o cliente bancário será automaticamente “integrado” ao PERSI, “entre o 31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa”. É também obrigatório o início do PERSI pela instituição credora se o cliente bancário tiver alertado para o risco de incumprimento ou se ele pedir sua integração ao PERSI, quando já se encontrar em mora. Havendo mais de um contrato entre o credor e o devedor, deve-se tentar a regularização em um único procedimento.

b) Fase de avaliação e proposta (art.15o). Nesta etapa, a instituição financeira avaliará se a situação do devedor é transitória ou se reflete uma incapacidade permanente para honrar suas obrigações. Há troca de informações e de documentos entre o banco e o cliente. Após 30 dias de integração do devedor ao PERSI, a instituição é obrigada a comunicá-lo sobre o resultado de sua avaliação, “quando verifique que o mesmo não dispõe de capacidade financeira para retomar o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, nem para regularizar a situação de incumprimento, através, designadamente, da renegociação das condições do contrato ou da sua consolidação com outros contratos de crédito, sendo inviável a obtenção de um acordo no âmbito do PERSI”. A outra hipótese é apresentar ao devedor propostas de regularização da dívida, o que poderá implicar a novação de cláusulas, o alongamento do perfil do débito ou a consolidação da dívida em um só negócio jurídico.

 c) Fase de negociação (art.16o). Na hipótese de não haver sido aceita a proposta apresentada pelo banco, instaura-se uma fase de negociações, com novas ofertas de acordo, se isso for julgado possível.

A extinção do PERSI, segundo o artigo 17o, poderá ocorrer em razão de diversas hipóteses: a) o pagamento integral da dívida; b) a extinção, por qualquer causa, da obrigação; c) a novação obrigacional; d) o decurso de 90 dias, desde a inserção do devedor no PERSI, salvo acordo que prorrogue o procedimento; e) a insolvência do cliente bancário.

Se os bens do devedor forem arrestados ou penhorados por terceiros, a instituição financeira é autorizada a extinguir unilateralmente o PERSI, bem assim se houver nomeação de administrador judicial provisório, caso em que o devedor é considerado insolvente. Outras razões podem autorizar idêntico expediente, como a ausência de colaboração do devedor ou a comprovada impossibilidade de pagar suas dívidas, considerado seu estado econômico-financeiro.

Uma preocupação especial do Decreto-Lei nº 227/2012 é com a situação jurídica do fiador, o qual deverá ser informado, “no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida” (artigo 21o). O fiador tem direito a ser integrado ao PERSI, caso assim prefira.

Esse novo texto normativo português é bastante complexo e prevê uma série de deveres institucionais, que demandarão ajustes nas instituições financeiras, na fiscalização pelo Banco de Portugal e uma mudança de cultura na contratação de serviços bancários. O excesso de regras e a estrutura colaborativa dos procedimentos instituídos podem dar causa à baixa eficácia dessa lei de prevenção ao superendividamento.

É extremamente importante comparar a opção legislativa portuguesa com o projeto de reforma do Código de Defesa do Consumidor, apresentado ao Senado Federal, que contempla o superendividamento. A alteração brasileira é conforme a portuguesa no que se refere à imposição de deveres informativos e à criação de um modelo colaborativo para se evitar ou minimizar os efeitos do superendividamento. No entanto, é o caso de se pensar se o tratamento mais analítico da lei portuguesa não seria o ideal, o que implicaria a necessidade de se pensar em uma norma específica sobre o tema ora examinado. Acompanhar os primeiros sucessos (ou insucessos) do Decreto-Lei nº 227/2012 é uma boa providência.

De qualquer sorte, alguns representantes do Direito Consumidor em Portugal, como Carlos Ferreira de Almeida, catedrático da Universidade Nova de Lisboa, têm advertido para uma “nova era” de controle de oferta de crédito. Segundo esse professor, que proferiu palestra no I Encontro Luso-Brasileiro de Direito, em Lisboa, não se pretende com essas novas medidas legislativas aumentar a proteção aos consumidores, mas proteger o sistema bancário e expulsar os usuários com baixa capacidade de pagamento. Não parece ser esse o caso do Brasil. Aqui ainda se está em busca de uma atuação regulatória eficiente, de caráter preventivo e administrativo, capaz de reduzir sensivelmente a judicialização dos contratos bancários, das relações de consumo na área de serviços de telecomunicações e do transporte aeronáutico.


[1] A íntegra da nova lei portuguesa sobre o superendividamento pode ser encontrada em: http://dre.pt/pdf1sdip/2012/10/20700/0602506033.pdf. Acesso em 14de fevereiro de 2013.

[2] Disponível em http://www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/portarias-n-331-a-2009-e/downloadFile/attachedFile_2_f0/P_312_2009.pdf?nocache=1238517440.22. Acesso em 14 de fevereiro de 2013.

Autores

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    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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